24 de junho de 2016

Bom senso com o censo / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 24-6-2016

Bom senso com o censo.
Estive hoje a analisar com algum detalhe o censo geral da população publicado em Março de 2016. Fico com a ideia que é um trabalho sério e responsável e reúne todas as condições para que seja um instrumento indispensável para nortear decisões políticas assertivas, estratégias de desenvolvimento económico com razoabilidade e um planeamento social mais rigoroso.
               Este trabalho, que tem um carater científico, pode transformar “ideias feitas”, do discurso político prevalecente em “situações desfeitas”, baseada na evidência que são a teimosia dos números!
               Todos sabemos que temos uma população jovem com 65% da população com idade até aos 24 anos, num universo de 25.789.24 pessoas, das quais perto de sete milhões vivem em Luanda.
               Desvalerá pouco continuar a debitar números, porque eles estão acessíveis a todos os cidadãos, mas há leituras que urgem ser feitas rapidamente, e encontrarem-se algumas soluções na sociedade angolana num momento que o tempo urge, sob pena de perdermos o futuro!
               Será que o discurso das assimetrias e segregação social, económica e cultural do colonialismo continuam a ter eco na generalidade dos angolanos, quando apenas 7% dos angolanos teriam entre 18 e 21 anos à data de 11 de Novembro de 1975? Quantos se lembram do enfático 4 de Fevereiro, ou do 15 de Março de 1961?
               Com base neste trabalho pergunto quantas pessoas se lembram da transição de poderes do falecido presidente Agostinho Neto para José Eduardo dos Santos num cada vez mais longínquo 1979? Quantas pessoas têm presente a institucionalização da democracia pelo “decreto” que determinou o desaparecimento da sociedade socialista de partido único? A própria guerra contra a UNITA já começa a entrar no “esquecimento” das pessoas, e por isso hoje, eventuais sacrifícios pedidos são mal compreendidos, o que não deixa de ser de todo natural.
               A própria UNITA, ou o seu sucedâneo CASA, também não conseguem que as pessoas se lembrem do que foi politicamente Jonas Savimbi, porque quando ele morreu metade da população do País ainda não tinha 12 anos! Isto é mau para a oposição, mas também não é bom para os dirigentes do MPLA, a quem daria sempre um certo jeito ter um inimigo externo, ou interno, para que assacasse com as culpas de muita situação mal gerida e inapropriadas decisões na gestão da coisa pública.
               Pode-se dizer que a história transmite-se de umas gerações para outras, e que o facto da pessoa não ter vivido determinado momento, não quer dizer que não saiba o que aconteceu, nem que o valorize! Mas aqui também há muito pouco trabalho, de divulgação de tudo que aconteceu em Angola nos últimos cem anos, e a própria “história” recente de Angola é descrita um pouco de forma panfletária, e deixa pairar muitas dúvidas e desconfianças justificáveis nas gerações mais novas.
               O censo evidencia números preocupantes sobre um conjunto de situações que o discurso oficial tenta ignorar, nomeadamente no que concerne à esperança de vida dos angolanos, situações de desemprego, condições de salubridade das habitações e outras.
               Obviamente que este trabalho também reflete algum esforço que o executivo foi fazendo ao longo dos anos no sentido de melhorar alguns números, nomeadamente os valores da população alfabetizada e também a percentagem de homens e mulheres que frequentaram o ensino médio nas diferentes províncias do País, e outros que demonstram à saciedade que parte do caminho fez-se caminhando, e há números que refletem esperança no futuro, se não se teimar trilhar caminhos que se revelaram tortuosos ou sem rumo certo!
               O que ressalta disto tudo é a certeza que a Republica de Angola, nas suas amplas diversidades tem necessidade de olhar para o futuro com respostas cabais, porque cada vez se vê menos uma população remetida à sua condição de mera assistente. É aliás desejável que seja assim, porque uma população jovem e pouco exigente torna-se amorfa, e disponível para ser manobrada para propostas de transformação politica, social e económica que redundam a maiorias das vezes em “aventureirismo oportunizável”!
               O exercício do poder tem obrigação de dar cada vez mais respostas, porque as pessoas com cada vez mais formação e maior informação assim o exigem. O silêncio, as frases feitas, o panfletário, já não colhem no momento de “afogadilho” económico e a desconfiança é crescente nas instituições do Estado, o que leva a desacreditar a democracia que ainda dá tímidos e pouco resolutos passos no nosso País.
Para Max Weber o Estado Moderno era uma manifestação do movimento de racionalização da civilização moderna. Tratava-se, portanto, da materialização de uma estrutura burocrática, fundamentada em regras juridicamente estabelecidas e de poderes específicos independentes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Pegue-se em Weber, trabalhem-se os dados do censo e haja bom senso que talvez renasça uma esperança que se vai teimando em manter à tona, mas com evidentes dificuldades de permeio!

Fernando Pereira

15/6/2016

18 de junho de 2016

TRRIM-TRIM! / O Interior / Guarda / 9-6-2016



TRRIM-TRIM!
Ainda não vieram os dias quentes de um esperado Verão depois de um ano pluvioso quanto baste! Aguardemos.
               Pode parecer paradoxal, mas um dos temas dominantes desta croniqueta serve para que se abra uma petição nacional para o retorno às campainhas estridentes dos telefones, em detrimento da pequenina luzinha intermitente que aparece junto às teclas de qualquer recetor colocado nas portarias da maior parte dos serviços públicos do País.
               Vamos lá ver se me explico melhor, ou se consigo que a mensagem chegue sem interferências a quem pacientemente me lê.
               Se alguém “ousar” telefonar para um serviço publico entre as 9 e as 10 horas da manhã, ou a partir das 16 horas é quase certo que ninguém lhe atenderá o telefone, e muitas vezes a pessoa responsável por esse trabalho está ali mesmo ao lado. Esta é a verdade, constatável ao longo de muitas tentativas goradas para telefonar para alguns serviços públicos. Infelizmente um cada vez maior número de gente destes serviços adere a esta “praga” que se vai instalando no quotidiano dos serviços do Estado, de norte a sul de Portugal e Regiões Autónomas.
               Não me cabe a mim fazer juízos de valor sobre o comportamento destas pessoas, que substituiu a “rapariga da cavilha”, ou a “menina dos telefones” imortalizada na canção de 1961 de Maria José Valério, mas a realidade é que cada vez mais o estar num PBX (ou correlativo) é uma tarefa entediante e que ninguém faz por gosto, tudo para desgosto de quem precisar de entrar em contacto com alguém a partir de horas que pelos vistos passaram a ser consuetudinariamente incomodativas.
               Hoje sou a favor do retorno à campainha estridente nos telefones, já que nem que fosse para calar o som incomodativo as pessoas obrigavam-se a atender e nem que seja  para evitar os olhares reprovadores das pessoas que circulam por perto. Aí voltaríamos ao tempo de ouvir frases como, “Ninguém atende a porcaria do telefone!” ou outras entrecortadas com palavras bem mais ordinárias!
               Podem ter a certeza mais que absoluta que a maioria dos telefonemas eram atendidos, e dispensar-se-iam as músicas enfadonhas que certa gente escolhe para o demasiado tempo que se está à espera de uma ligação para alguém, que estando lá manda dizer que não está para não ter que se aborrecer com mais um utente, ou mais uma situação imponderável perto da hora de saída.
               Aos telefones estridentes haveremos de voltar, neste SIMPLEX de proximidade, principalmente para apoio aos muitos utentes que não tem possibilidade alguma de se deslocar a certos lugares, e muitas vezes terem que ir a determinado serviço para assuntos comezinhos que se resolveriam numa chamada feita a tempo.
               Outra questão bem mais grave que esta tem a ver com o tempo prolongado com que muitas vezes os telefones estão avariados em certos serviços, com prejuízo evidente para os utentes que precisam de contactar . Às vezes as avarias prolongam-se por meses e até um ano e meio, como já aconteceu recentemente num determinado serviço publico na região, e as pessoas obrigam-se aos maiores incómodos para conseguirem tentar resolver os seus problemas.
               Vamos pois voltar ao tinir estridente dos telefones e posso dizê-lo sem errar que a resolução de certos problemas e a resposta a algumas questões passarão a ser céleres.


Fernando Pereira

7/6/2016

Turismo passado sem presente para o futuro! /Ágora / Novo Jornal / Luanda 17-6-2016

   
             

  Turismo passado sem presente para  o futuro!
Muito se tem falado no desenvolvimento sustentavelmente acelerado do turismo no nosso País, e seria bom que se fizesse uma análise retrospetiva do que foi a insipiente atividade turística no tempo colonial para se pensar no presente e no futuro.
De acordo com a Organização Mundial do Turismo, a atividade turística contribui para o crescimento económico, para a criação do emprego e para a redução dos desequilíbrios da balança de pagamentos. Contabilizando efeitos diretos e indiretos, o turismo representa 10% do PIB mundial; Concorre para 30% das exportações de serviços, 6% das exportações totais, igualando ou excedendo até as do petróleo, produtos alimentares ou automóveis, e é responsável por um em cada onze empregos. Razões mais que suficientes para o considerarem um motor essencial do desenvolvimento.
A Sociedade das Nações instituiu em 1937, a primeira definição de turista, como “toda a pessoa que viaja por um período de 24 horas ou mais, para um país diferente do da sua residência”. Relativamente ao entendimento inicial, alarga o conceito estendendo-o às pessoas que se deslocavam com um objetivo que não propriamente o do lazer. Mistura quem viaja para lazer com quem mistura  outra atividade.
Em 1942 foi proposta à Association Internationale des Experts Scientifiques du Tourisme ultrapassar alguns hiatos da definição anterior e para  HunziKer e Krapf o turismo é “ o conjunto de relações e fenómenos produzidos pelo deslocamento e permanência de pessoas fora do seu local habitual de residência, desde que esses deslocamentos e permanência não sejam motivados por uma atividade lucrativa principal, permanente ou temporária.”
Em 4 de Junho de 1954, a ONU, na convenção sobre facilidades aduaneiras a favor do turismo, reformula a noção de turista, que passa a ser “toda pessoa, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião, que entra no território de um Estado contratante, que não seja aquele onde reside habitualmente, e nele permanece durante 24 horas, pelo menos e não mais de 6 meses, no decurso de um período contínuo de doze meses, se a sua viagem  tiver um motivo legitimo que não seja a emigração, tal como: turismo, recreio, desporto, saúde, família, estudo, peregrinações religiosas ou negócios”.
Pontualmente foram feitas novas adaptações a este conceito mas só em 1991, a Organização Mundial de Turismo, conseguiu ultrapassar inúmeras críticas e tentar encontrar uma definição consensual, até para efeitos de uniformização estatística, definindo o conceito como “um fenómeno social, cultural e económico relacionado com o movimento das pessoas a lugares que se encontram fora do seu lugar de residência habitual por motivos pessoais ou profissionais. Estas pessoas são denominadas visitantes (podem ser turistas ou excursionistas; residentes ou não residentes) e o turismo tem a ver com as suas atividades, das quais algumas implicam um gasto turístico”.
O turismo tem conhecido assinalável desenvolvimento. Segundo dados da OMT, as chegadas internacionais turísticas totalizavam os 25 milhões em 1950, os 278 em 1980, os 527 em 1995 e mais de 1100 em 2014. A Europa é o principal destino recebendo mais de metade dos turistas internacionais.
Angola, enquanto colónia de Portugal não tinha qualquer iniciativa no domínio da promoção e desenvolvimento do turismo. As razões eram evidentes, um pouco à semelhança do que acontecia com a estrutura do estado central em Lisboa.
Já vimos que o turismo, enquanto atividade de relevância económica e social, só apareceu com algum significado depois do primeiro quartel do século XX. Coincidiu temporalmente em Portugal com a ascensão do Estado Novo e da ditadura de Salazar e Caetano.
Uma das revelações, se é que assim se pode chamar, da ditadura foi a xenofobia exacerbada, aliada a uma desconfiança a tudo que viesse de fora, principalmente o que pudesse fazer contrastar de forma evidente os hábitos “abençoados” do “Povo Português”, e alterar a letargia a que se chamava eufemisticamente “brandos costumes”!
Houve inicialmente no governo central o Secretariado Nacional da Propaganda (3-2-1940) tutelada por António Ferro, sob alçada direta de António Salazar e que tinha a supervisão do turismo a nível central. O turismo era primordialmente um meio de propaganda e não era encarado como uma atividade económica importante. Em 1944 o SNP muda a terminologia para o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, sendo pouco mais que um órgão consultivo. Entre mudanças, recuos, progressos a verdade é que nunca, até ao 25 de Abril de 1974, o turismo se conseguiu separar organicamente da Informação ao nível central. A censura prévia vigiava toda a imprensa, editoras, espetáculos ou outras iniciativas culturais e recreativas , mas dependia do Ministério do Interior enquanto o secretário de estado da informação e turismo dependia diretamente do 1º ministro.
Explica-se isto, porque não havia em Angola nenhuma estrutura desconcentrada deste quadro que se observava na “Metrópole”. A censura era muito branda, a que não era alheia a percentagem de 97% de analfabetos no território e a estratificação social era tão acentuada que praticamente era desnecessário “perder tempo com coisas de poucos”!
Havia nalgumas camaras municipais um pequeno sector do turismo, que pouca mais atividade tinha que a fiscalização do paupérrimo parque hoteleiro da colónia, restaurantes e bares. Angola não queria cá turistas nem ninguém que alterasse o status quo prevalecente!
Pelo decreto-lei 42194 , de 27-03-1959 é criado no âmbito do Ministério do Ultramar o CITA, Centro de Informação e Turismo de Angola, entidade localmente dependente do governador-geral, mas sob a orientação e coordenação da Agencia Geral do Ultramar. Extingue este diploma a Casa da Metrópole de Luanda, criada em 1934 para apoiar o SNP nas feiras internacionais em que Portugal foi participando.
Isto é um tema que merece bem mais que este artigo,  porque a criação do CITA é objetivamente para montar em Angola uma estrutura poderosa que tinha funções de propaganda e simultaneamente de orientação metodológica e ideológica de toda a imprensa local. A título de exemplo o diretor do CITA é que tinha a responsabilidade de nomear o diretor da “Emissora Oficial de Angola” (decreto 47699 de 15-5-1967)! As atribuições do CITA eram enormes, e a preocupação de qualquer governador-geral era a de ter um “fiel” no seu topo e em lugares de subalternidade direta, para a caso de advirem complicações.
Prova evidente que uma estrutura deste tipo, está perfeitamente de acordo com a manifesta vontade de tudo controlar, de filtrar ao máximo tudo o que pudesse sair para o exterio,r e que tivesse entre quem visitava a colónia gente que “fosse só dizer bem”. Claro que quando sobreveio a guerra colonial, o CITA via-se com redobradas dificuldades, para manter a imagem de uma “Angola pacífica e harmoniosa” que se tentava vender no exterior!
Um dos homens que foi transversal em todo o final da governação colonial, Álvaro de Moura Koch Fritz, foi o poderoso chefe de gabinete de vários governadores, e nessa qualidade controlava as atividades do CITA. Dizia uma vez na esplanada do Arcádia, ao lado do Banco de Angola na Marginal, quando via o paquete Vera Cruz levar um contingente de militares de regresso a Portugal: “ Andamos aqui com tanto trabalho para sensibilizarmos meia dúzia de jornalistas sob a justeza da nossa presença em Áfric,a e vão ali mil e quinhentos militares que vão destruir tudo mal comecem a abrir a boca. Cada um daqueles tipos é uma voz contra nós” Convém dizer que terá sido esta figura discreta, um dos homens mais poderosos  da estrutura governativa colonial.
As preocupações do CITA eram sobretudo de informação, e a divulgação do turismo era sobretudo avaliada nesse contexto. O turismo não era visto como atividade económica, mas fundamentalmente era olhado como uma via de propaganda de tudo o que o governo colonial queria quer se mostrasse lá fora. Como havia muita coisa que “desagradava”, nunca terá havido uma ação significativa por parte das autoridades, para a promoção real do território, que teria merecido um maior empenhamento, e que não se estivesse chegado á independência com um paupérrimo parque hoteleiro, só para falar numa das áreas deste importante setor de atividade.
Aqui está uma abordagem indispensável para conhecer o ontem do turismo em Angola.

Fernando Pereira

12/6/2016

28 de maio de 2016

Remendo! / Àgora/ Novo Jornal /Luanda 26-5-2016



Remendo!
Num tempo em que 29, 622 kwanzas valiam um dólar, e outras mordomias como por exemplo partilharmos muito mais o pouco que se tinha, havia que se ter engenho e arte para conseguirmos matar o “tédio revolucionário”; bem mais tolerável que o “fastídio dos mercados”!
               Numa noite abafada de Fevereiro de há trinta e cinco anos fui com uns amigos ao Kussunguila, um dancing na Ilha de Luanda, construída no tempo colonial junto a um higienizado e apelativo mercado do artesanato. Formávamos dois casais e entrámos numa sala enorme que estava praticamente às moscas. Os decibéis roufenhos e alterados de uma música razoavelmente má, num espaço onde o ar condicionado emitia um estridente e pautado som metálico enviando golfadas de ar quente, para uma sala que já se tornara quase uma camara de tortura.
               As mesas eram para duas pessoas e apesar de as termos aproximado uma da outra só nos conseguíamos entender aos berros. Veio solícito o empregado e perguntou: Que desejam os camaradas? Pedimos cerveja, ao que ele adiantou que não havia rigorosamente nada fresco, e que já teria informado a Emprotel UEE, ou a Angotel UEE da avaria há uns tempos e ainda não se tinha diligenciado nada até ao momento. Perguntámos que é que havia para beber, e ele muito lesto disse: “Aguardente búlgara, Macieira e Havana Club”. Animados com a oferta disponível resolvemos arriscar a Macieira, e sinceramente ainda hoje guardo o travo daquele cognac de pacotilha que nos foi servido. Passou a ser urgente debandar e foi isso que fizemos deixando o funcionário na sordidez pouco iluminada de um dancing vazio. Saímos do Kussunguila e sinceramente jamais esqueci o bafo de calor que tão bem me soube!
               Mais ou menos na mesma altura fiz uma viagem ao Lubango e entrei na que outrora tinha sido uma pastelaria de eleição no tempo colonial, a Tirol, em pleno “Picadeiro” , rua central da única cidade em toda a África que tinha mais brancos que pretos. A pastelaria tinha três balcões envidraçados, num tinha alguns bolos de aspeto manhoso, noutra uma mistura esquisita de velas e bolachas e numa outra rebuçados, confeccionados numa fábrica local ainda em funcionamento ao tempo. Naturalmente que quis comprar uns pacotes para trazer para Luanda, e pedi às duas camaradas que estavam em cada um dos dois outros balcões envidraçadas para me darem os rebuçados, e uma delas prontamente disse que não mos podia vender porque o camarada responsável por aquele sector não estava. Perplexo, mas resignado pela organização deste espaço quase vazio, mas cheio de gente e regras.
               No dia seguinte, porque o voo para Luanda resolveu atrasar três dias, voltei e mais uma vez não consegui ter acesso aos rebuçados, porque o camarada responsável pelos “dropes, caramelos e correlativos” tinha-se ausentado nesse fim da tarde em que lá estive. Não consegui levar rebuçados nenhuns, mas fiquei sempre com a história para repetidamente contar.
               Num restaurante manhoso no Dondo sentei-me e pedi o prato do dia, a bem dizer não havia alternativa, e lá veio o arroz maçudinho a acompanhar um espinhadíssimo peixe frito do rio. A bebida era uma cerveja EKA morna, e quando chegou à mesa o empregado resolveu utilizar os dentes para abrir a garrafa. Naturalmente aborrecido disse que não iria tocar na garrafa o que o levou a abespinhar-se e perguntar-me: “ O camarada tem nojo de mim?”; Repliquei que “sim, não tenho nojo, mas acho que é pouco higiénico”. Ele indignado disse-me: “Sabe, eu devia era ter aberto a garrafa lá dentro e o camarada bebia-a toda”. Apesar de resignado e esperando que “desamparasse a loja”, o tipo resolveu encostar-se à minha mesa e fazer uma teorização da luta de classes, do fim do colonialismo e da implantação do socialismo científico, asseverando que eu enquanto angolano branco não tinha ainda compreendido as mudanças. Farto de ouvir palavras de ordem, agilizei a degustação do paupérrimo menu, paguei e saí para a rua onde me esperava o ar abafado do desmazelado Dondo ainda com resquícios de tempos áureos na sua decadente malha urbana.
               Desculpem a puerilidade do artigo, com histórias tão banais, mas na realidade no dia em que comemoro os sessenta anos do meu nascimento na então Casa de Saúde de Luanda, hoje maternidade Augusto Ngangula, muita coisa me ocorreu para escrever, mas nada saía com a fluidez desejada. Fica o remendo!
               Como dizia Gabriel Garcia Marquez “A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como recorda para conta-la”

Fernando Pereira

25/5/2016

22 de maio de 2016

O FIM COMEÇA A TER PRINCÍPIOS! / O INTERIOR/ Guarda 11-5-2016




O FIM COMEÇA A TER PRINCÍPIOS!


O interior do país está-se a transformar há muitos anos num quotidiano de desesperança.

               Não há área nenhuma que não deixe de patentear o perfeito estado de absoluto catatonismo, em que os estados de excitação são cada vez mais fugazes e os de passividade a eternizarem-se no tempo.

               Portugal, ”o meu remorso de todos nós” como disse O’Neill, está a transformar-se num deserto, onde vai sobrevivendo a burocracia, que os serviços cada vez mais concentrados na malha urbana de grandes cidades vão impondo, sem tampouco se aperceberem que a realidade no terreno é bem diferente das iluminadas salas climatizadas dos gabinetes.

Quando Portugal ficou pejado de autoestradas e vias estruturantes, o que se conseguiu foi acabar definitivamente com um resto de ruralidade que ia pejando nostalgicamente o imaginário de todos. A ruralidade dos sabores, dos odores e das paisagens eram fatores de unidade num país que se tornou higienizado em demasia, onde a madeira e o mármore é substituído pelo azulejo e o inox.

Não era desejável prevalecer a mentalidade “ruralizante” que se impôs no País desde os tempos da monarquia decrépita, Do caciquismo antirrepublicano da 1ª Republica e Do corporativismo serôdio do Estado Novo. Era importante manter alguma identidade que diferenciasse o interior “rural”, e que conseguisse ser uma referência num território. Tudo se vai paulatinamente perdendo, e vamos sobrando por aqui uns quantos, que vão acendendo e apagando a lâmpada em função da movimentação do sol. Somos nós os que vamos teimosamente ficando a pagar as portagens de estradas quase desertas, a gastar mais eletricidade e gaz porque o clima é mais agreste, enfim a envelhecer sem vontade nenhuma de rir, porque os recursos são cada vez mais parcos.

O associativismo, que nesta fase podia ser importante para manter alguma atividade económica e algum dinamismo social, está à beira do fim porque as pessoas estão cansadas, desmotivadas e não disponíveis para um trabalho pouco dignificado e com cada vez mais encolho por parte da burocracia instalada. O associativismo juvenil já vive dalguma “peste grisalha”!!! dos seus dirigentes e animadores, e cada vez menos se vê gente nova e propostas inovadoras nas associações juvenis, incubadora de eleição dos potenciais dinamizadores do futuro nas associações 
.
Podem dizer que sou pessimista, mas sou-o com a legitimidade de há quase trinta anos manter as mesmas ideias e convicções em relação à “saharização” do interior, e a verdade é que os factos são infelizmente teimosos e tem-me dado a razão troda.

Confesso que desvislumbro melhorias, e não vai ser nada fácil inverter o estado das coisas porque é um circulo vicioso e desvirtuado, em que a economia vai perdendo importância e inerentemente as pessoas deixam de ter opções para se empregar e buscam novas paragens e outras aragens.

Exigia-se há muito uma descriminação positiva para o interior mas como não há força aqui, nem interesse nos órgãos centrais, mantém-se tudo como está e com tendência para piorar!

               Para tudo há um começo e um fim, o interior há muito que começou o trilho do fim!


Fernando Pereira

8/5/2016

29 de abril de 2016

ABRIL SEMPRE DENTRO DE NÓS /Àgora/ Novo Jornal / Luanda 29-4-2016




ABRIL SEMPRE DENTRO DE NÓS

Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade
José Afonso

               Foi esta a senha que deu início às movimentações militares que mudaram tudo, que há muito esperava uma sapatada definitiva.
               Atolado em três frentes de combate, com os empresários a exigirem a integração europeia em detrimento do atávico mercado colonial, assoberbado pela fuga desenfreada de trabalhadores para uma Europa onde se lidava com a reconstrução dos Países devastados da 2ª Guerra mundial,  a braços com uma crescente multiplicação de greves, lutas estudantis e com a oposição ao regime a florescer nas classes sociais que o tinham apoiado até então , era por demais evidente que se esperava o rápido estertor do regime que há 48 anos governava Portugal e colónias.
               O 25 de Abril de 1974 foi a vontade de uns valorosos, ajudados pelas circunstâncias e encontraram o modelo corporativista-colonial em estado de prostração final.
               Há quarenta e dois anos vivia em Coimbra e preparava-me para ingressar na Universidade, e naturalmente avultava o receio de mais cedo que tarde ser mobilizado para a guerra colonial. A minha posição era partilhada por muitos colegas portugueses, que à surdina iam dizendo que quando chegasse a altura “davam o salto”! Poucos dos que iriam à “inspeção” esse ano estavam dispostos a defender “a fé e o Império”, que mais não eram que os Espírito Santo, Fonsecas e Burnay, Mellos, Champalimaud, Quina, Feiteira-Bordalo, Vinhas, Abecassis, Sousa Lara e as suas componentes locais Mota Veiga, Mota & Irmão, Herdeiros de Mário Cunha e outros. Como diria muitos anos antes Alexandre O’Neill: “Portugal, o meu remorso de todos nós”!
               O” Império Português” que como dizia C. R. Boxer era “essencialmente, uma talassocracia, um império marítimo e comercial (…) vazado em molde militar e eclesiástico”, estava-se a preparar para restar encaixotado, por ironia do destino, no mesmo local onde os achadores portugueses partiam “navegando desenhavam os mapas que não tinham”, como dizia Sophia de Mello Breyner Anderson.
               Durante muitos anos fui discutindo com compatriotas angolanos a importância do 25 de Abril de 1974 em Angola. Talvez pelo facto de o ter vivido a cada minuto com grande entusiamo, nos locais onde “se construiu a democracia”, tenha uma relação militantemente afetiva com o Movimento das Forças Armadas, e confesso que me custa aceitar que haja pessoas angolanas com responsabilidade e já homens feitos ao tempo queminimizem a importância do golpe de estado de Abril em Portugal e os reflexos que isso teve na libertação dos povos sob dominação colonial.
               O 25 de Abril de 1974 foi sempre olhado em Angola como uma data estranha no contexto das efemérides externas que os angolanos vão dando enfase! “Isso é uma data dos portugueses”, “Se não fossem os movimentos de libertação o 25 de Abril nunca teria acontecido”, “Que ganharam os angolanos com o 25 de Abril?”, e outros dislates que normalmente surgem quando se fala do Movimento das Forças Armadas.
               O 25 de Abril de 1974 não surgiu da vontade de um punhado de militares, apareceu num contexto, e naturalmente que quando eles corporizaram o golpe o fim da guerra colonial era um dos objetivos principais. Foi depois um corolário de movimentações, de gente das mais variadas profissões, de um amplo espectro político que obrigaram a tomarem-se certas decisões em relação às colónias, diferentes das que alguns se propunham perpetuar de outras formas.
               Nós enquanto angolanos devemos ter orgulho no 25 de Abril, porque foi uma luta comum, que afinal surtiu em objetivos comuns nomeadamente a Independência de Angola em Novembro de 1975.
               Posso entender que o meu entusiasmo pelo 25 de Abril de 1974 seja olhado de forma indiferente pelas gerações mais novas, por exemplo a da minha filha, visto da mesma forma como eu olhava atónito o entusiasmo do meu avô a falar da Republica ou até do meu pai na sua participação na campanha presidencial de Norton de Matos, que lhe valeu o despedimento da Sociedade Agrícola do  Cassequel na vila da Catumbela!
               Mas tenha-se em atenção que este esquecimento, justificado, das gerações do 25 de Abril de 1974, é o mesmo que gerações tem da luta de libertação e da batalha do Kuito-Kanavale. Estou a falar de gente jovem mas já politicamente enquadrada, e inseridas no atual tecido económico e social angolano Deixemo-nos de romantismos serôdios, porque Savimbi já morreu há doze anos, e pelos números do censo recentemente divulgado 46% da população tinha entre 10 a 12 anos, quando isso aconteceu, por isso já nada lhe começam a dizer essas “batalhas do antanho”!
               Hoje como ontem e como amanhã espero comemorar o 25 de Abril de 1974, talvez com cada vez menos gente que esteve comigo por razões de desaparecimento físico de gerações.
               Como diria José Gomes Ferreira, esse tão esquecido poeta português: Tenho “saudades de não poder inventar o futuro”.

Fernando Pereira
20/4/2015


14 de março de 2016

Os cedros também se abatem! /O Interior 11-3-2015




Os cedros também se abatem!
As pessoas andam indignadas com o abate de cedros numa rua da Guarda (indiscriminado segundo uns, discriminado no parecer de outros). Como não moro por ali, talvez esteja a favor dos que acham que é um abate indiscriminado, mas confesso que não é uma “guerrazinha” que me interesse de sobremaneira!
               Acho que este momento de tanta indignação, já deveria ter ocorrido há muito e razões mais que muitas haveria nestes quarenta anos de gestão democrática da autarquia da cidade.
               Conseguiu colocar-se a Guarda como provavelmente a mais feia cidade capital de distrito do País, quando tinha todas as condições de poder ter tido um desenvolvimento harmonioso adaptado a uma configuração natural de cidade de montanha.
               Ao invés o patobravismo tomou conta da cidad,e e rapidamente surgiram os disparates e o ordenamento urbano faz lembrar um pouco a faixa de Gaza. Ruas que apertam e desapertam em função de interesses diversos, que finalizam de forma abrupta, o que faz que bairros recentes se consigam transformar em locais labirínticos.
               Foi a cidade que foi deixando morrer o seu centro histórico, a sua notável praça, onde a grande preocupação das pessoas é saberem onde vão colocar um rei, que na Guarda tinha interesses de alcova que ultrapassavam os desígnios do Estado. Por mim pode ficar onde está, desde que haja coragem e incentivos para que os edifícios circundantes possam ser reabilitados para promover a atividade económica da cidade. Se isso acontecesse de certeza que se dispensaria a construção de um chapéu-de-chuva na rua do Comércio.
               Ninguém se indignou quando deitaram abaixo um mercado com algum interesse arquitetónico, e que em Portugal e noutros países transformam-se estes espaços em novos lugares que potenciam locais de dinâmica económica inovadora e são centro de confluência de gentes para usufruir das novidades que estes centros proporcionam.
               Em seu lugar nasceu um megatério, num horrível granito polido com uma torre de controlo, que teria alguma utilidade para apoiar uma pista de 2.000 metros e que na cidade da Guarda nem um farol de boas ideias conseguiu ser para se inverter o caos urbanístico em que a cidade se tornou.
               Quando se vê uma movimentação em torno do abate de uns cedros, interrogo-me onde andou esta gente que assistiu anos a fio à degradação da cidade, sem ver nascer qualquer movimento cívico que apoiados em técnicos pudessem ter permitido inverter a realidade pungente que hoje assistimos.
               Para que conste, não habito na Guarda, nem sou de cá mas julgo que tenho direito a opinar sobre o assunto!

Fernando Pereira

6/3/2016 

4 de fevereiro de 2016

Entrevista a Margarida Paredes / Mutamba /Novo Jornal / 4 de Fevereiro de 2016 /Luanda



Margarida Paredes (MP), nascida em Coimbra, no emblemático bairro do Penedo da Saudade, local da alta burguesia da cidade é filha de um prestigiado professor universitário doutorado em Londres, e neta de uma aristocrata e latifundiária alentejana.
Depois de um percurso por alguns lugares do antigo “Império Português” acompanhando o pai, um eminente biólogo marinho e oceanógrafo de reconhecida competência, Margarida Paredes assume um corte com penates e faz um percurso que a leva sucessivamente a Lovaina na Bélgica, Brazzaville, Luanda, Lisboa e finalmente S. Salvador da Baía onde é investigadora e professora na Universidade Federal da Bahia.
No seu percurso de combate e de múltiplas vivências licenciou-se “tarde e a boas horas” em Estudos Africanos, tendo-se abalançado para um doutoramento em Antropologia Social, orientada pelo Prof. Miguel Vale Almeida e financiada por uma bolsa da FCT, e no seguimento de todo esse trabalho elaborado durante quase seis anos (um ano de Trabalho de Campo em Angola) fez sair recentemente o livro “Combater Duas Vezes, Mulheres na Luta Armada em Angola”.
NJ- Tive oportunidade de ler o seu romance “O Tibete de África” editado em 2006 e li com particular atenção o ensaio, que afinal é a sua prova de doutoramento “Combater Duas vezes”, e sinceramente pareceu-me que uma parte significativa do segundo tem a sua parte romanceada no primeiro.
Lamento discordar, “O Tibete de África” é uma ficção, é a história de uma menina da comunidade branca que deixou Angola antes da independência, uma retornada, é uma história sobre o retorno e sobre a descolonização e é um romance que faz parte do corpus da literatura portuguesa. O “Combater Duas Vezes” é um ensaio que obedece a protocolos académicos e que exigiu uma investigação aprofundada do meu objeto de estudo, ou seja as mulheres angolanas que estiveram envolvidas nos conflitos armados em Angola desde 1961 a 2002 e combateram de armas nas mãos. Este livro é sobre as suas memórias de guerra, sobre as suas histórias de vida, sobre a invisibilidade de que são alvo na construção da nação, sobre as suas lutas pelo reconhecimento e pela representatividade política ou como negoceiam a ordem de género entre outras particularidades. Um dos aspetos que é importante realçar neste meu trabalho é que é uma versão africana e afrocêntrica da História de Angola no feminino. Durante todo o meu trabalho estive sempre a dialogar com teóricos africanos e com o conhecimento produzido em África. Fanon tem um grande peso nas minhas reflexões analíticas mas também as académicas africanas Ifi Amadiume, antropóloga, Oyèrónké Oyèwùmi, socióloga, e Nkiru Nzegwu, filósofa. Cada história individual das ex-combatentes resgata um palimpsesto de memórias que contribui para a História esquecida das mulheres angolanas tendo-me cabido apenas o papel de interpretar e contextualizar as suas narrativas. Agora, talvez tenha alguma razão sobre a fluidez da minha escrita que é um exercício herdado da ficção, mas, como sabe, os antropólogos também são escritores.

NJ- A Margarida, enquanto investigadora, ter-se-á deparado com um conjunto de dificuldades na prossecução do seu trabalho, mas a realidade que tenho ao ler o seu livro é que terá conseguido torneá-las com alguma facilidade, algo que não é muito habitual aos investigadores de diferentes domínios quando pretendem fazer trabalhos em Angola. Como o conseguiu?
Não foi com facilidade, tive que lutar muito para conseguir fazer o Trabalho de Campo e no livro faço uma descrição etnográfica de todas as dificuldades e desafios que tive de ultrapassar para realizar a pesquisa. Mas numa coisa tem razão, o facto de ter sido uma das “antigas” do MPLA, aderi ao movimento em 1973, e o facto de ter sido das FAPLA abriu-me muitas portas. As minhas antigas camaradas das FAPLA foram uma grande ajuda e fui sempre muito acarinhada pelas veteranas.
NJ- A pergunta anterior leva-nos para o estado geral de desconfiança que as autoridades angolanas têm perante investigadores de todo o tipo, e alguma resistência a que haja trabalho científico sobre Angola. Parece-me de todo paradoxal já que o angolano é extrovertido e afável no seu relacionamento com quem o visita! Que condicionamentos acha que levam a esta atitude, tantas vezes referida?
É verdade, há em Angola uma grande desconfiança em relação aos pesquisadores estrangeiros, ouvimos constantemente a frase – depois vocês vão dizer mal de nós, mas a desconfiança não é do cidadão comum, é dos governantes que não entendem que a ciência social é crítica e o que criticamos são as dinâmicas sociais e políticas, não as pessoas. A guerra contribuiu para afastar muitos cientistas e estou-me a lembrar que sempre recusaram o visto ao Patrick Chabal. Isso levou a que haja uma extensa produção científica sobre Moçambique com o apoio da Universidade Mondlane e quase nenhuma em relação a Angola. Num país que se quer democrático os cientistas sociais não podem ser sentidos como uma ameaça ou tratados como inimigos.
NJ- O seu passado militante está muito presente ao longo do livro, relegando algumas vezes o social enquanto a ciência e o técnico para um lugar secundário, sem subalternidade contudo. Esta é uma visão, que não sei se está de acordo!
Sim, apareço no meu trabalho na dupla condição de antropóloga e de nativa (como categoria antropológica), isto é como ex-combatente do MPLA. Tive que fazer um exercício de autorreflexão antropológica para definir esse duplo lugar de enunciação, mas sempre que apareço como nativa foi para dar testemunho e enriquecer as interpretações, por exemplo, quando falo da reunião em que o comandante Gika entregou o comando do Destacamento Feminino à Virinha e à Nandi eu sou a única pessoa dessa reunião que sobreviveu para contar a história.
NJ-Uma das situações que me deixa atónito no livro é a percentagem de mulheres entrevistadas que depois de lutarem por uma causa, de terem sido maltratadas e torturadas pelas autoridades coloniais e aviltadas até pelos companheiros de guerrilha, hoje são praticamente ignoradas por aqueles com quem partilharam ideais e com quem lutaram por uma sociedade mais digna. Acho que isso é provavelmente a sua grande mensagem, mas se o presente é muito mau para elas as sombras do futuro adensam-se!
Pois é, as antigas guerrilheiras do MPLA, assim como as mulheres-soldado das FAPLA ou as ex-combatentes da FNLA e UNITA todas elas têm em comum o facto de terem sido esquecidas, abandonadas ou discriminadas, o que é motivo de grande revolta e sofrimento para estas mulheres. Os homens tiveram direito a proteção social ao abrigo da Lei do Antigo Combatente de Guerra, n.º 13/02 de 15 de Outubro, mas as mulheres são marginalizadas deliberadamente. Estou-me a lembrar de casais que entregaram o processo ao mesmo tempo no Ministério dos Antigos Combatentes e Veteranos da Pátria, o do marido foi despachado, recebe a pensão militar e a mulher espera há anos por uma resposta ao seu processo. As guerrilheiras que foram desmobilizadas das FAPLA também foram dispensadas sem um documento comprovativo dos anos de serviço militar e da patente, o que as exclui da reforma da Caixa de Segurança Social das FAA. Mas o caso mais grave é o das ex-combatentes da UNITA, a militarização não lhes assegurou direitos iguais ou tratamento idêntico aos homens no processo de paz e durante o desarmamento, desmobilização e reintegração, porque foram consideradas familiares dos soldados, que tiveram direito a proteção social, enquanto elas foram enviadas para casa, cuidar da família. No entanto devo dizer que as participações das mulheres das elites partidárias nas lutas tem sido reconhecidas e algumas condecoradas mas de qualquer maneira foi um processo arrancado a ferros.
NJ-Vamos por partes, cada mulher ou conjunto de mulheres que entrevista para o seu trabalho demonstram a sua preocupação em “revisitar” cada uma das fases da luta anticolonial, dos tempos agitados da independência, do fraccionismo, da guerrilha contra a RPA e a guerra civil surgida na sequência do “Setembro” de 1992. Qual é o denominador comum de todas as entrevistadas, se é que há algum?
Uma das hipóteses que levantei para pesquisar quando elaborei o meu projeto foi se a condição de “combatente” teria construído em termos coletivos um “nós” que combateu, ou seja, uma espécie de “comunidade imaginada” de mulheres combatentes que pudessem partilhar um sentimento comum forjado na luta armada, independentemente do lado em que se encontravam no teatro da guerra e ultrapassando a categoria de “inimigas”. As considerações finais do meu livro respondem a essa pergunta.
NJ- O seu livro é ponto de partida para muito debate se houvesse um terreno propício a isso, o que não me parece que haja, por circunstâncias diversas. Qual é a sensação de ter escrito um livro que tem sido lido com atenção, que tem motivado críticas e elogios, que tem permitido uma visibilidade de temas que normalmente são pouco relevados como a “desigualdade de género”, o “machismo” em sociedades africanas de forte tradição matrilinear, a submissão aos ritos e fenómenos religiosos, e outros?

Não tenho tido quase feedback nenhum em relação ao meu livro, ainda não chegaram até mim ecos desses debates. Tem havido é um grande interesse da comunicação social. Mas uma coisa é certa, creio que é a primeira tese de doutoramento feminista sobre Angola. Não sei como os homens estão a reagir mas imagino que as mulheres se sentem empoderadas e orgulhosas de entrar na História de Angola pelos seus próprios meios, história que até agora tinha sido escrita apenas no masculino. Deixe-me também dizer-lhe que África tem movimentos feministas poderosíssimos e as angolanas fazem parte deste processo.
NJ- Não leve a mal a pergunta mas este livro é mais Margarida ou mais as mulheres a quem Margarida dá finalmente a palavra e o rosto?

Não tenho a menor duvida que este livro é resultado de um projeto comum construído pela antropóloga e pelas mulheres que foram objeto do meu estudo, as ex-combatentes. Foram os seus depoimentos, os seus testemunhos, as suas memórias e as suas vozes que dão sentido ao livro. Foram também as suas contribuições que deram origem a esta reflexão e análise. Este livro é das mulheres angolanas mas é também das mulheres do mundo inteiro porque a luta pela igualdade de género é uma questão de direitos humanos e universal.


















29 de janeiro de 2016

Diferença entre o Sino e o Signo!/ Novo Jornal / Luanda 29-1-2016





Mais um tema sobre o futebol, dos sorrisos da vitória e da “estúpida vontade de chorar das tardes de derrota", como disse um dia um homem que foi guarda-redes num clube de Argel e se chamou Albert Camus.
Não vou falar da seleção nacional de futebol que continua no continente a manter os seus níveis de incumprimento num quadro que se alastra há tempo demais, e quando se pretendem encontrar culpados mete-se algo escatológico na mão e abre-se a ventoinha espalhando-se tudo para cima dos mais expostos: Selecionador e jogadores!
O problema é mesmo um e difícil de ser agarrado: falta de politica desportiva, e inerentemente criar uma estrutura de responsabilidade partilhada por muitos agentes, de hábitos consolidados, que quando as coisas acontecem de mau, assobiam para o ar, quando das poucas vezes correm bem, eis que aparecem logo na primeira fila e a assumirem um protagonismo risível.
Isto traz-me à lembrança um filme dos anos ontem, o “Trevo de Quatro Folhas” que reproduz num ambiente jocoso a derrota da seleção portuguesa em Madrid em 1934 por 9-0!
Uma das muitas histórias que se conta que, no dia seguinte ao encontro, um jogador português, ao ser interpelado pelo criado do hotel castelhano com o habitual “Desayno?”, respondeu: “Desayuno, não. Nove a Zero!”
Barrigana foi um dos grandes guarda-redes portugueses, e durante muitos anos foi o baluarte das balizas do Futebol Clube do Porto nos anos 50 do século passado. Era corticeiro de profissão, e quando chegou ao Porto não sabia ler nem escrever, situação normal no quotidiano da maioria dos jogadores de futebol ao tempo! Como tinha que dar autógrafos resolveu fazer uma assinatura numa chancela e carimbava todos os papéis que lhe eram estendidos. As crianças nos treinos ovacionavam-no gritando “Barrigana, Barrigana” e ele chegava ao pé deles e dizia: “Barrigana não, Senhor Barrigana”
A propósito, que a crónica é uma conversa e as “conversas são como as cerejas”, lembrei-me que se contava que Sammy Davis no princípio da sua carreira e no final dos seus espetáculos, com uma multidão de admiradores lá fora, manifestou a Sinatra, que o apadrinhava, a sua grande apreensão em relação aos autógrafos. Não sabia escrever. Sinatra disse-lhe o que só um Sinatra poderia dizer: «Não faz mal! Faz uns gatafunhos! Chega…».
Barrigana foi contemporâneo do angolano Miguel Arcanjo, que alguns anos depois de acabar o futebol resolveu estudar e foi colega do filho no curso de direito na Universidade de Coimbra, tendo-se licenciado os dois no mesmo dia.
Num estágio da seleção de Portugal nessa altura e num estágio antes de um Portugal-Áustria, em plena concentração em Braga surgiu um tema aliciante: O problema da existência de Deus.
O debate foi animado, visto que havia uma clara divergência de opiniões.
Até que o Barrigana foi perentório na sua afirmação: Acreditava na existência de Deus e podia prova-lo! Claro que a assembleia “exigiu” imediatamente essa justificação.
“Quando se aproximava da minha baliza um avançado contrário isolado-explicou o guardião nortenho- faço rapidamente uma prece mental e o certo é que acabo por defender”
“Nesse caso - retorquiu-lhe um dos seus companheiros de equipa – tu nunca sofrias um golo…”
A resposta do homem a quem durante muito tempo foram confiadas as balizas da seleção portuguesa de futebol foi rápida e decisiva: “ Eu sou o melhor guarda-redes português. Há bolas que tenho obrigação de defender, mesmo sem recorrer a Deus!”.
Barrigana foi para Angola no dealbar dos anos setenta treinar a equipa dos “Dinizes de Salazar”, que era uma equipa financiada pelo maior capitalista da região, Santos Diniz. Os treinos eram à porta aberta no bar do clube, no Hotel Paixão, na Pensão Chique e acima de tudo no Bar Oásis, onde a hidratação à base de cerveja era continuada, o que levou o Barrigana a estar pouco tempo em Salazar (N’Dalatando). Recordo-me dele se queixar que tinham que fazer uma viagem ao Moxico, ao Lubango, a Porto Alexandre (Tombwa) e demorarem dois dias num autocarro sem a modernice do “ar condicionado” , o que obrigava os jogadores a “acompanhar” o treinador e dirigentes em exercícios de rehidratação continuada em sumo de cevada e lúpulo fermentado!
Os” Dinizes” que andaram uns anos na divisão maior do futebol angolano tinham sob orientação de Barrigana uma equipa onde pontificavam Carlos Alberto, Azevedo, Chipau, Nélson, Lóló, Cardeal, Pirolito, Sá Pereira, Rudolfo, Beto Truka, Jorge, Rómulo, Arlindo Soares, Dudu, Mendonças(2), Oliveira Duarte, Napoleão ,Rosas, Caipira, Bira, Noé e Carmona.
Uma passagem atribulada e curta do Sr. Barrigana por terras de África, pois os resultados desportivos estavam na proporção aritmética da proporção geométrica da cerveja consumida!
Engraçado mesmo, é que o título nada tem a ver com a crónica!

Fernando Pereira
26/1/2016

22 de janeiro de 2016

Futebol por causa!/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda 22-1-2006



Futebol por causa!
Vou retomar o tema do futebol no contexto colonial, recuperando o tema do recente artigo que fiz para este jornal com o título “Desporto por linhas entortadas”!
“Football is not a matter of life and death; it’s much more importante than that” (O futebol não é uma questão de vida ou de morte; é muito mais importante do que isso), referiu a propósito do futebol, Bill Spankly, um dos mais importantes treinadores do futebol mundial, que esteve à frente do Liverpool de 1959 a 1974.
O futebol desempenha um papel preponderante na transmissão cultural intergeracional. Com os anos, o futebol, tanto a sua prática como o seu consumo enquanto espetáculo, tornou-se um elemento fundamental da relação entre pais e seus filhos no quotidiano de vida.O futebol atenua algumas das ruturas que a vida do dia-a-dia provoca no seio das famílias!
Em 1953, o Goal fez uma outra reportagem sobre o futebol dos subúrbios, desta vez a propósito de uma competição organizada pelo próprio jornal:” Dois terços da cidade vivem para além da cidade formada pela Brito Godins (hoje conhecida no anedotário luandense pela Brito Lenine), Emílio de Carvalho (Hospital Militar) e a estrada denominada da Circunvalação. Do Mota ao Sambizanga, do Pedrosa ao Cayate, da Pepita às proximidades do Braga, todos aqueles musseques fervilham de vida, numa amálgama impressionante de gentes de diversa condição rácica, económica e social. Mais de 100 mil indígenas coabitam com alguns milhares de brancos e mestiços (…) Aos sábados e aos domingos toda aquela vasta zona populacional se anima. São os bailes e as reuniões, os batuques e os “risca-risca”, vibrantes harmonias e ritmos, produzindo ruídos que mordem singularmente o silêncio da noite”
Nos campos da Boavista e da ESMIPA (propriedade da Missão de S. Paulo, onde os padres asseguravam a organização e a segurança) havia pouco mais do que as balizas. Salientava a reportagem a utilidade do desporto com um velho argumentário:” Os rapazes precisam de quem os oriente (…) assim não vão para a taberna”.
O regulamento do torneio determinava duas condições fundamentais para a participação. Por um lado só podiam concorrer clubes não filiados na Associação de Futebol de Luanda (AFL). Procurava-se com esta medida convocar um conjunto de clubes que se encontravam afastados da organização oficial do futebol local e das suas competições, revelando uma intenção inclusiva. Noutro sentido, o regulamento excluía os jogadores que não possuíssem o estatuto de “assimilados”, o que significava que os “indígenas” ficavam de fora.
Nesse mesmo ano de 1953 o Presidente da AFL sugeriu a necessidade de ser criada uma segunda divisão do campeonato local que “serviria para regular a vida dos inúmeros clubes existentes na área urbana da cidade”. O torneio iniciado em Julho foi um teste, em que se colocaram os clubes de “assimilados” na segunda divisão. O campeonato decorreu no campo do Ferrovia e participaram o Bungo, o Malhoas, o Vasco da Gama, o OK Clube, o Canaxixe, o Vila Clotilde, o Ocidental e o ASA. Integrados os “assimilados” na vida colonial, os clubes formados por “indígenas” continuaram a organizar o seu campeonato, no campo da Boavista.
No projeto colonial, o desporto não desempenhava um papel decisivo. A Liga de Football de Luanda nasceu em 1914 (a AFL em 1929). O Conselho Provincial de Educação Física surgiu em 1956. O Sporting de Luanda surge em 1920 e o Sport Luanda e Benfica em 1922, clubes marcadamente elitistas. Acompanhando o ritmo de crescimento da população colona, as delegações do Benfica e do Sporting espalharam-se por todo o território, sendo os únicos focos de associativismo colono em algumas localidades. A popularidade destes clubes alargou-se e passou a haver disputas clubísticas no informal jogo de rua, em que as equipas escolhiam os nomes desses clubes para se defrontarem.
As grandes empresas viram no futebol uma forma excelente de poderem dar aos trabalhadores uma forma organizada de gestão do seu pouco tempo livre, e por exemplo a Diamang fazia campeonatos internos entre os trabalhadores das suas minas. A organização desportiva criada dentro da própria empresa, tanto na sua vertente de oferta de lazer, sem objetivos competitivos, como enquanto base de constituição de clubes desportivos a competir em provas oficiais, reproduziu formas prevalecentes de descriminação e desigualdades sociais.
Como a própria hierarquia das empresas revelava uma estrutura social que reforçava as lógicas de desigualdade económica, étnica, religiosa e de género, a oferta de desporto era feita discriminatoriamente.
Este tema suscita-me particular curiosidade, e penso que não se esgotará num conjunto de crónicas que tenho feito sobre o desporto no período colonial. Faz parte de um projeto que tive em mente desenvolver quando fui o 1º diretor do Centro Nacional de Documentação e Informação da ex- Secretaria de Estado de Educação Física e Desportos, mas que por razões do foro pessoal me foi impossível levar a bom termo, apesar do entusiasmo de todos no Organismo e do apoio nunca regateado.
Voltarei, e quero desde já agradecer a contribuição do Professor Dr. Nuno Domingos, através do seu trabalho, “O desporto e o Império Português”, sem o qual estaria limitado na organização, de um conjunto de dados que pudessem dar corpo a estas crónicas!

Fernando Pereira
13/1/2015

15 de janeiro de 2016

A geração entupida! / Ágora / Novo Jornal/ 16-1-2016/ Luanda


A geração entupida!
Um dos livros relevantes da literatura angolana é “A Geração da Utopia” de Pepetela, o autor traz para a escrita os anos de sonhos, utopias, poucas dúvidas, excesso de certezas num futuro a construir num quadro de igualdade e solidariedade.
Na sociedade angolana assistimos, há já a alguns anos a esta parte, ao desmoronar de um sonho coletivo assente na solidariedade, na democracia, na liberdade, e todo um conjunto de valores, que levaram a geração dos entas a lutar pela construção de um país e concomitantemente aquele “homem novo” que pertencia a um tempo que havia de vir sem ser futuro.
Habituei-me a olhar para um grupo alargado de pessoas, a grande maioria mais velha que eu, de uma forma quase reverencial do ponto de vista ideológico, alicerçado naturalmente no seu percurso de luta e resistência contra o colonialismo e o fascismo. Vi nessa gente a alegria de construir, a vontade de criar, a persistência no aprender e de facto o MPLA ganhou o respeito, a credibilidade e a adesão de muita gente, um pouco por todos esses exemplos transmitidos.
Para nós, e para esses mais velhos era completamente despiciendo que houvesse desorganização, purgas, fome, tribalismo e racismo na luta armada, como nos confidenciavam os que por lá passaram nas conversas que tínhamos num tempo em que nos juntávamos, e também quando militantemente nos ajuntavam!
Que importavam as dificuldades do quotidiano da novel RPA se o que interessava era construir e “o mais importante era resolver os problemas do povo”! E víamos as pessoas entusiasmadas a fazer, mobilizadas no querer e no meio de tanto voluntarismo, asneiras, imponderáveis ideológicos, as pessoas confiavam que o futuro estaria a passar por ali.
Afirmámos tanta coisa, irritámo-nos com todos os que nos diziam que nunca poderia ser assim nem mais assim, fazíamos juras às convicções mais pueris e gritávamos a plenos pulmões: “Ao inimigo nem um palmo da nossa terra”! Um tempo em que sabíamos que a diferença entre ser membro do governo ou do CC era o azul ou o branco do carro distribuído, e a maior indignação era ter que ver o “Bem-amado” segunda vez porque um qualquer mwata não tinha visto o episódio todo.
Era um tempo em que nos indignávamos pela gravidade de situações que hoje se revelam cândidas e banais no quotidiano da nossa sociedade!
Estávamos com a confiança em pleno e havia inimigos comuns e alguns que ao tempo nos pareciam amigos, deviam ter estado bem disfarçados, para trinta anos depois serem exatamente o que são.
A verdade é que os da minha geração e anteriores se deparam hoje com um dilema terrível, que é não conseguirmos assumir a plenitude do nosso fracasso. Os anglo-saxónicos têm uma frase que sintetiza tudo: Permanecemos com os esqueletos nos armários! A minha geração muito pouco, mas a geração anterior foi quem montou um esquema mental e tentou criar uma carapaça que defendesse a luta por um coletivo que pudesse ser digno de merecer “o seu bocado de pão”!
Essa geração está num perfeito estado de quase “catatonismo” porque não consegue discernir se defende o status-quo prevalecente no País, se aceita passivamente tudo!
Nós, angolanos destas gerações temos um problema grave entre mãos: Ou damos o flanco e vamos dizer aos que durante quarenta anos ou mais, que no essencial tinham razão e que quem estava errado éramos nós, ou perpetuamo-nos nalgumas mentiras agitando as bandeiras descoloradas de uma sociedade em que cada vez nos revemos menos.
Há sempre uma fuga, e isso é patente nas redes sociais, e tem a ver com a dificuldade que com o avançar da idade cada vez temos mais dificuldade de despir uma camisa, que está ideologicamente enrodilhada e com as convicções cheias de buracos.
Do marxismo que tentámos implementar resta muito pouco, e por vezes o que sobra é muito mal utilizado. A partir de determinada altura largou-se Karl Marx para se adequar a sociedade ao Groucho Marx: ”Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros”.
Olho com um certo esgar os que acham que somos idiotas em defender algumas ideias que dizem ser passadistas, mas na realidade o que assistimos é que o conformismo assaltou muita gente que julgávamos ter convicções inabaláveis. Ortega Y Gasset em pleno na sociedade angolana de hoje com a estafada frase que “a vida somos nós e as circunstancias”?
Agitam os números de participantes em comícios, percentagens eleitorais de grande dimensão, publicitam os encómios dos que perpetuam os mercados dos favores e dos tráficos de toda a ordem e desordem, mas ainda não consegui esquecer que um autocarro completamente lotado ao entrar em contramão numa autoestrada não tem razão nenhuma quando colide com carro de pequena cilindrada com um só ocupante que vinha na via certa. Muitos continuam a usar as palavras de ordem de um passado perdido para justificar o que não é fácil perante as evidências quotidianas.
Hoje tornámo-nos na geração entupida porque nos recusamos a fechar o ciclo virtuoso das nossas convicções para ao invés entrarmos no niilismo que é o ciclo vicioso da Angola atual.

Fernando Pereira
10/1/2015


23 de dezembro de 2015

Desporto por linhas entortadas / Novo Jornal / Luanda 23-12-2015



Desporto por linhas entortadas
Faleceu recentemente o professor José Esteves, uma figura incontornável na pedagogia e na sociologia do desporto que fala português.
Pessoa de grande dimensão humana e muito arreigado a princípios de democracia e liberdade, José Esteves assumiu na ditadura um combate permanente, o que lhe valeram vários castigos, um dos quais ter sido obrigado a lecionar em Luanda, no Liceu Salvador Correia em 1949 e 1950.
Da sua experiencia saiu um conjunto de textos onde sintetiza a pungente realidade da colónia no dealbar dos anos 50, onde o racismo e a consequente segregação social eram evidentes, e assumia maior evidência perante o olhar de quem foi coagido a trabalhar em Angola.
Partilhei com ele alguns momentos, e uma das histórias que contava era sobre uma das muitas conversas que manteve com o sacerdote e antropólogo Carlos Easterman, em Sá da Bandeira (Lubango); Ter-lhe-á perguntado quantas “assimilações” tinha havido na Huíla desde que o “Estatuto do Indígena”(1921) tinha sido instituído. Carlos Easterman respondeu: “Umas sete ou oito”. E depois acrescentou:” Mas este ano parece que não haverá nenhuma. O administrador que há poucos dias encontrei, casualmente, já me foi dizendo que não estava na disposição de continuar a diminuir a mão-de-obra indígena, cada vez mais necessária e procurada…”. Os assimilados podiam, por exemplo, adquirir propriedade e não eram obrigados pela autoridade a trabalhar em obras públicas. Porém, tinham que prestar o serviço militar e trabalhar para o serviço publico, apresentar formação escolar em português, comprovar bens e manter uma vida cristã.
Uma das coisas que o surpreendeu em Luanda foi que a filial do “popularíssimo” Sport Lisboa e Benfica ( Sport Luanda e Benfica) não admitia praticantes negros, algo que só acabou já no fim da década de 1950.
Deixa publicado um trabalho excecional: “O Desporto e as Estruturas Sociais”, um estudo brilhante sobre a ligação do desporto à sociedade e a sua interação com a realidade social e política. Um livro de leitura obrigatória, embora o seu enquadramento histórico corresponda a todo o seculo XX. O “Racismo e Desporto” foi um livro de grande impacto no fim dos anos 70, e recordo com apreço que me autorizou a copiá-lo integralmente para o Boletim Desportivo editado pelo CNDI da ex-Secretaria de Estado de Educação Física e Desportos, no dealbar dos anos 80.
Um estudo interessantíssimo saído recentemente no domínio da intervenção política no desporto é o do brasileiro Marcello Bittencourt, “Jogando no Campo do Inimigo: Futebol e Luta política em Angola”. Este texto faz parte de um trabalho maior em que o autor participa como coorganizador de uma coletânea partilhada com Victor Andrade Melo e Augusto Nascimento: “Mais que um jogo: O Esporte e o Continente Africano” (2010).
Em Luanda o desporto constituiu-se como um espaço de negociação entre a população colona e estratos da pequena burguesia crioula, que criaram os seus clubes como a Liga Angolana, o Grémio Luso-Angolano e mais tarde o Clube Atlético de Loanda, fundado em resposta à discriminação existente no Clube Naval.
Em Luanda, como refere Marcello Bittencourt, o campeonato local juntava clubes de brancos, como o Benfica, o Sporting ou o Futebol Clube de Luanda, o clube de mulatos, o Atlético, e o clube dos contratados, o Ferroviário do Bungo, onde os negros jogavam ao lado dos brancos pobres, filhos dos trabalhadores do caminho-de-ferro.
Nos subúrbios de Luanda subsistiam ligas de futebol separadas do universo do colono e com as quais as pequenas burguesias africanas mantinham uma relação de controlo associativo.
Curiosamente o atletismo, sobretudo as corridas, prática que não exigia material específico ou o desenvolvimento de uma técnica apurada, foi uma das modalidades que mais rapidamente integrou elementos de grupos socialmente segregados.
Porque o texto é um conjunto de evocações, vale a pena reproduzir a experiencia e a surpresa do repórter do jornal desportivo Goal ,no seu relato em 1950, de um jogo de um “campeonato indígena de futebol” que decorria nos campos da Boavista e da Exposição Feira (Hoje na zona do Bungo e do Miramar respetivamente).
O campo de jogo, para espanto do repórter, estava marcado, as balizas tinham redes e a assistência era superior à que comparecia habitualmente no estádio municipal dos Coqueiros.
A entrada era gratuita: “ A nossa deslocação tinha em vista dois objetivos bem determinados: em primeiro lugar, havia interesse em conhecer das possibilidades dos grupos indígenas, sua capacidade de organização e sentido desportivo; em segundo lugar, como girava a orgânica do campeonato, valor real das equipas e o conceito formado pelo indígena relativamente à prática do desporto como meio de desenvolvimento físico” Conclusão: “Esperávamos muito pior. No jogo entre o Atlético de Icolo e Bengo e o Futebol Clube do Porto Malanjinos, o árbitro e os fiscais de linha foram pescados entre os assistentes. Muitos dos jogadores jogavam descalços. A taça do campeonato em disputa, designada Taça Francezinhos, havia sido oferecida pela Empresa dos Tabacos de Angola”.
Os jogos, considerou o repórter, eram fracos tecnicamente e taticamente, mas ainda assim há “uma noção muito apreciável de conjunto e cada um dos elementos constitutivos da equipa sabe sempre o que lhe cumpre fazer”. As “torcidas” eram “pitorescas”!
No campo da Boavista tudo era semelhante. O recinto possuía uma tribuna de honra coberta por folhas de palmeira. Uma das características destas equipas suburbanas, registou o jornalista, foi que “quase todas são homónimas das que disputam o Nacional da 1ª divisão na Metrópole”, o que assinalava a circulação de referências e informações que ultrapassavam em muito o âmbito do subúrbio e que evoluíam pelas vias criadas por um sistema de relações urbano.
As autoridades coloniais, sobretudo a partir da década de cinquenta e seguintes, começaram a olhar para estas práticas desportivas autónom,as, separadas social e geograficamente das populações colonas, com uma atenção inédita, na sequencia dos problemas de gestão social que se multiplicaram neste período.
Em Angola continuaram a realizar-se, de modo mais ou menos informal, campeonatos suburbanos, durante a vigência da administração colonial. Neste sentido, inspiraram e ajudaram a concretizar algumas das “expectativas de modernidade” (Ferguson) de parte da população urbana e suburbana das maiores cidades.
Durante décadas estas competições, mais ou menos informais, fizeram parte de um processo de construção comunitária repleto de tensões e conflitos. A apropriação do desporto, nomeadamente do futebol, afirmava-se como um elemento da relação das populações com um conjunto de hábitos sociais modernos e urbanos.
Fernando Pereira
20/12/2015


6 de novembro de 2015

Cultura Física e Desporto na Angola independente. / Revista Dipanda 40 anos/ Luanda /6-11-2015

Artigo que saiu na revista DIPANDA 40 ANOS.
Revista do Novo Jornal e do Expansão

Cultura Física e Desporto na Angola independente.
Nestes quarenta anos de Angola enquanto País, a cultura física e o desporto foram um poderoso aliado da afirmação da unidade da nação angolana, e um fator agregador de múltiplas vontades num dinamismo associativo participativo.
O desporto no tempo colonial jamais conseguiu sair do espartilho em que as autoridades o ataram e a realidade é que, em nenhuma modalidade, a colónia de Angola conseguia alguma notoriedade no paupérrimo espaço do “império português”. Nos chamados confrontos com equipas da então “Metrópole”, os resultados eram confrangedores com a agravante de que Portugal era dos países europeus com piores desempenhos ao nível de modalidades coletivas ou individuais, para além da reduzida percentagem de praticantes que tinha no conjunto da sua população.
Porque este artigo é uma tentativa limitada de fazer uma retrospetiva do que foram estes quarenta anos de construção de um desporto na afirmação de um país, não é muito importante fazer um exercício de memória sobre o tempo colonial, onde a atividade desportiva pouco mais conseguia ser para além de um desporto recreativo e de competição doméstica sem expressão.
Houve no fim do período da administração colonial uma tentativa de se criar um conjunto de estruturas que permitissem, de uma forma profissional e com métodos pedagógicos inovadores, melhorar a qualidade desportiva através de um exercício que possibilitasse o acesso das crianças e jovens em idade escolar à prática regular da educação física e desporto.
Cercearam-se entretanto as atividades da Mocidade Portuguesa que era, no contexto do ensino primário e secundário, a única estrutura organizada que permitia a prática de educação física, contaminada por uma forte componente ideológica assente nos valores que eram indispensáveis à sobrevivência da estrutura ideológica salazarista.
Quando da independência existia um Conselho Provincial de Educação Física e Desportos, a entidade do governo que supervisionava todo o desporto no território e, simultaneamente, fiscalizava o movimento associativo que se “desejava” cordato e portador da ideologia prevalecente. Ao tempo já existia uma escola de formação de professores de educação física, de nível médio, que pretendia que os recém formados ocupassem as vagas nas escolas onde normalmente militares e alguns antigos praticantes lecionavam.
No dealbar da independência, o quadro no desporto era semelhante ao que aconteceu nos outros sectores: fuga maciça de quadros, um abandono e degradação de muitas estruturas físicas pelo País inteiro.
Havia que começar a trabalhar e no primeiro governo de Angola criou-se, na dependência do Ministério da Educação, o Conselho Nacional dos Desportos, liderado pelo António Augusto, que teve um curto e atribulado período, tendo acabado o seu mandato no 27 de Maio de 1977. Em 30 de Agosto de 1977 é empossado Hermenegildo de Sousa, como Secretário Nacional do Conselho Superior de Educação Física e Desportos que cumpre o seu mandato até 4 de Julho de 1979,altura em que a lei 7/79 extingue o CSEFD e cria em sua substituição a Secretaria de Estado de Educação Física e Desportos, autónoma do Ministério da Educação. Como Secretário de Estado toma posse Rui Alberto Vieira Dias Mingas e este facto marca o início de um período, provavelmente o mais pujante, do grande desenvolvimento no desporto de Angola.
Refira-se que em 21 de Janeiro de 1978 são nacionalizados todos os bens que integram o património desportivo da Cidadela Desportiva de Luanda, que compreendia o estádio, o pavilhão desportivo, os prédios inacabados em redor e os terrenos circundantes. No seguimento desta nacionalização, o Secretário de Estado exara um despacho publicado em 19 de Fevereiro de 1980 que “determina que todas as instalações municipais, assim como as instalações de clubes da era colonial que se encontrem em estado de abandono, passem para a gestão direta da SEEFD” .
Iniciam-se os primeiros passos para a edificação de uma estrutura desportiva que permitia iniciarem-se campeonatos nacionais federados e simultaneamente proverem-se os lugares que, no contexto das associações desportivas internacionais, cabiam a Angola. Durante o período entre Agosto de 1979 e Fevereiro de 1980 decorreu a instalação das Federações desportivas da maior parte das modalidades e, inerentemente, a criação de associações provinciais. Este edifício organizativo associado à publicação do diploma orgânico da SEEFD, publicado em DR em 16 de Novembro de 1981, permite que tudo comece a correr dentro da legalidade institucional.
Em Novembro de 1980 Luanda recebe a organização de uma competição continental, a primeira em solo angolano, o Campeonato Africano de Juniores em Basquetebol, que a RPA ganhou numa final épica contra a República Centro-Africana. Foi a partir dessa conquista que a RPA se consolidou como uma das maiores potências africanas na modalidade tendo conquistado, a nível de seleção, onze títulos continentais, o que tem permitido a presença do País nos diferentes Jogos Olímpicos e Campeonatos Mundiais.
O Comité Olímpico de Angola fundado no início de 1979, teve como primeiro presidente o Dr. Augusto Lopes Teixeira seguido de Augusto Germano de Araújo, de Rogério Nunes da Silva e de Gustavo Vaz da Conceição. O COA permitiu ao longo dos anos levar aos Jogos Olímpicos uma representação que dignificasse o País, mesmo em momentos em que a vida coletiva era difícil e o futuro da Nação incerto.
Em Agosto de 1981 organizaram-se em Luanda os 2ºs Jogos da África Central, a maior realização de sempre na Angola independente. Milhares de participantes, voluntários, árbitros e dirigentes aliados ao entusiasmo e engajamento das populações nas cidades que acolheram os jogos, fizeram deste evento algo inolvidável. “A realização destes jogos em Angola não acontece por acaso, nem é fachada vistosa que escondemos para utilizar as debilidades de um desporto sem princípios, sem organização, sem praticantes. E nem persegue sequer outros objetivos senão os bem generosos que norteiam as relações desportivas internacionais, particularmente entre os Países do nosso continente”; estas palavras fazem parte do discurso proferido pelo Secretário de Estado de Educação Física e Deportos Rui Mingas, no dia 20 de Agosto de 1981, no ato de abertura dos Jogos, numa Cidadela recuperada e com as bancadas cheias de público e animadas por um extraordinário trabalho de quadros humanos, escolhidos entre a juventude das escolas de Luanda que aceitaram o desafio que lhes foi proposto de forma empenhada e voluntária.
Entretanto, ia-se reconstruindo o parque desportivo que se degradara fruto do abandono a que tinha sido votado. Simultaneamente iam-se construindo novas infraestruturas, nomeadamente campos relvados, pavilhões cobertos e centros de Estágio para desportistas. Instalaram-se por todo o País novas “Casas do Desportista”, para alojar com dignidade os atletas dos diferentes campeonatos nacionais de modalidades coletivas e individuais.
Desde 1980 que iam decorrendo os Conselhos Consultivos da SEEFD, o primeiro dos quais no Bié, que eram fóruns de intervenção de eleição por parte de dirigentes e responsáveis das estruturas centrais e descentralizadas da Secretaria de Estado e dos dirigentes máximos das federações nacionais.
Simultaneamente ia-se construindo a estrutura organizativa de todos os organismos ligados ao desporto e cultura física no País, e dois instrumentos fundamentais para o futuro saíram nos anos 80: a Lei de Bases do Sistema Desportivo em 1986 e 1987 e a Lei das Associações Desportivas. Esta legislação foi o corolário da ampla discussão do 1º encontro Nacional de Desporto realizado em Luanda (7 a 29/10/1984).
Em 1985, ano em que começa a ser disputada em futebol a Supertaça de Angola, defrontam-se, para a sua conquista, os vencedores do “Girabola” e da Taça de Angola (nessa 1ª edição o Estrela 1º de Maio de Benguela, campeão, vence o Ferroviário da Huíla, vencedor da Taça). Em 1985 foram inauguradas, a 10 de Dezembro, a “Casa do Desportista” na Ilha do Cabo e o Estádio da Cidadela Desportiva assim como alguns pavilhões anexos construídos de raiz. Neste mesmo ano realizou-se em Angola o prestigiado torneio internacional de Andebol Marien Ngouabi, o primeiro torneio de uma modalidade que, no sector feminino, tem trazido ao longo de quarenta anos um prestígio enorme ao País (onze títulos africanos, medalha de ouro em seis jogos africanos). A par do basquetebol masculino e feminino (vencedores do campeonato africano em 2011 e 2013) o andebol feminino é o orgulho de toda uma nação pelo conjunto de títulos conquistados.
A deterioração da situação militar no território não conseguiu parar os campeonatos, mas impôs uma degradação das infraestruturas desportivas que obrigou a deslocalizar algumas equipas para outros locais, onde a segurança dos protagonistas fosse assegurada.
Os esforços em manter a prática desportiva redobravam-se num contexto de valorização do cidadão, e como processo integrador não só no desenvolvimento físico como no seu conteúdo educativo e formativo.
Foi muito fácil integrar as crianças e jovens na prática desportiva, quer na componente de recreação quer na competição e consequentemente inseri-las nas estruturas federadas. A educação física e desporto mobilizavam as pessoas, e muita gente aderiu às atividades desportivas. Nas empresas, nos organismos do Estado a nível central e provincial, nas forças armadas, nos bairros, na comunicação social e naturalmente nas escolas havia uma apetência quase generalizada para se organizarem uma quantidade de torneios e campeonatos que engajavam muita gente, recorrendo aos parcos recursos que ia havendo. A título de exemplo podia referir o extraordinário torneio dos “Caçulinhas da Bola”, uma organização da Rádio Nacional de Angola, que nos anos 80 mobilizou milhares de crianças num torneio de futebol infantil, com um êxito que não conseguiu ver repetido noutras iniciativas. Desse torneio saíram alguns jogadores que acabaram em clubes de primeiro plano no País.
Apesar de terem participado como convidados nos Jogos Olímpicos de Moscovo em 1980, oficialmente Angola entra pela primeira vez nos JO em Seul 1988, com uma delegação em várias modalidades individuais, depois de ter boicotado os Jogos de Los Angeles em 1984.
Em 1989, a SEEFD dá lugar ao Ministério da Juventude e Desportos ao abrigo da Lei Nº 3/89 , sendo nomeado ministro o Dr. Marcolino Moco, passando a ocupar o lugar de Vice-ministro do Desporto o Professor José da Rocha Sardinha de Castro, pessoa que desde 1979 ocupava o lugar de Diretor Nacional dos Desportos com grande competência e sobriedade.
É uma opinião muito subjetiva, mas ao alterar-se a missão do Ministério e ao ser-lhe configurado um novo quadro orgânico, alguma importância terá sido retirada ao enquadramento político do desporto no País, alijando uma parte significativa das responsabilidades da ex-SEEFD e remetendo-as para as Federações desportivas. Convenhamos que já se antecipava alguma mutação ideológica no quadro da política global da República Popular de Angola, e obviamente a cultura física e o desporto teriam outro figurino nos novos tempos que se adivinhavam.
Em 1992 toma posse como Ministro, por um ano, Osvaldo Serra Van-Dunen que mantém Sardinha de Castro como Vice-ministro, num período fervilhante da política angolana. Nesta fase, só acabou por ser relevante a participação nos Jogos Olímpicos de Barcelona em 1992, onde a equipa masculina de Angola de basquetebol, campeã africana, venceu a superfavorita seleção espanhola, ainda hoje um feito nos anais da modalidade.
A Osvaldo Van-Dunen sucede, também durante um ano, Justino Fernandes, ex-defesa direito do ASA nos anos sessenta, que entretanto passara por algumas pastas ministeriais e que deixa o Ministério para ir ocupar o lugar de Governador de Luanda. Foi mais uma passagem transitória em que, dadas as circunstâncias, também nada de desportivamente notório aconteceu.
Em 1994 toma posse como Ministro o Dr. José da Rocha Sardinha de Castro e como Vice-Ministro para o desporto o Prof. Guilherme Espirito Santo Carvalho, dois homens da “casa” e que acompanharam todo o desenvolvimento do desporto angolano e foram protagonistas ativos nas suas múltiplas transformações.
O Dr. Sardinha de Castro é um profundo conhecedor da realidade do desporto angolano, professor de educação física e uma pessoa de convicções saudavelmente fortes, o que por vezes lhe trouxe algumas situações muito incómodas por parte de uns quantos, habituados a tentar colher benefícios por meios pouco claros e cumplicidades com ligações espúrias. Foi durante o seu mandato que se reorganizou o Ministério da Juventude e Desportos sendo publicada a lei n.º 10/98, (Lei de Bases do Sistema Desportivo Angolano).É aprovado o diploma do regime de prémios aos Atletas na Alta Competição em Novembro de 1996, regulamentação que veio colocar um ponto final num critério pessoalizado e aleatório sobre a distribuição de prémios e outras menções aos que representavam o País em competições internacionais. O Estatuto Orgânico do Ministério da Juventude e do Desporto, Lei 7 /97, foi também aprovado nesse mandato.
Os problemas que o País ia vivendo nesses anos 90 eram transversais a todos os sectores da sociedade angolana, e as dificuldades em conseguir que os campeonatos federados decorressem a um ritmo normal exigiam uma mobilização total dos recursos, que naturalmente eram parcos dada a dimensão das exigências colocadas. Simultaneamente, ia-se assistindo à destruição das infraestruturas desportivas um pouco por todo o País, e ao tempo, até as próprias instalações desportivas nas escolas e clubes, serviram para acolher refugiados de uma guerra sem quartel e que se generalizou a todo o território.
As participações das seleções nacionais em campeonatos continentais, campeonatos do mundo, Jogos Olímpicos e outros compromissos internacionais iam sendo cumpridos, com grande dignidade, por parte de todos e com algumas excelentes performances.
A juventude angolana continuava a ver na prática desportiva a única hipótese de preencher os seus tempos livres, que aumentavam com o encerramento prolongado de escolas e o atrofiamento da atividade económica, por razões perfeitamente justificadas.
Em 1999 Sardinha de Castro é substituído pelo seu Vice-ministro da Juventude, Dr. José Marcos Barrica, e o ministério tenta adaptar-se aos novos tempos de Angola.
Havia que começar a reconstruir todo o equipamento que foi sendo destruído e, simultaneamente, disponibilizar aos delegados provinciais meios para promoverem o reequipamento dos clubes, dotarem-nos de quadros técnicos e reativar as associações provinciais.
Com o fim da guerra em 2002, com a abertura da circulação em todo o País e com fundos postos à disposição, Angola assiste a um período de grande euforia, as infraestruturas de apoio às seleções são significativamente melhoradas e os clubes mais representativos na capital e nas províncias começam a construir todo um conjunto de equipamentos, úteis para o desenvolvimento do desporto de competição no País.
Com a nova orientação política, o Estado começa a demitir-se de algumas competências e atribuições passando a entregá-las às federações, associações e, claro, aos clubes. A formação de técnicos, árbitros, dirigentes foi saindo da órbita do Ministério da Juventude e Desportos e só a escola e os clubes passaram a mobilizar a iniciação desportiva.
Em 2005 Angola apura-se, pela primeira e única vez, para a fase final de um campeonato do mundo de futebol que decorre na Alemanha em 2006, não tendo o País logrado passar da fase de grupos.
Em 2008, o Ministro Marcos Barrica é substituído pelo Vice-Ministro Gonçalves Manuel Muandumba, que herda o pesado encargo de organizar no País o Campeonato Africano das Nações em Futebol (CAN), ideia que germinou do Mundial da Coreia Japão (2002).
Este era, indiscutivelmente, o maior desafio que se colocava à Angola em paz, já que organizar um CAN em 2010 exigia um esforço enorme para conseguir que um evento deste nível pudesse correr de forma satisfatória. Construíram-se estádios de raiz em Luanda, Huíla, Cabinda e Benguela, todos eles com lotações superiores a 25.000 espectadores. Alteraram-se profundamente as infraestruturas circundantes desses estádios, tal como a construção de novas vias a envolverem esses parques desportivos, que cresciam como fruto de trabalho continuado para cumprimento de prazos. Emergiram dezenas de novos hotéis, muitos deles de excelente qualidade, adaptaram-se e construíram-se de raiz novas instalações aeroportuárias e houve necessidade de se disponibilizarem novos campos relvados, ginásios, spas, instalações para apoio médico, em síntese: montou-se uma pequena parte do País.
A verdade é que tudo correu quase bem, ensombrado apenas pelo que ocorreu com a seleção do Togo em Cabinda,o que terá diminuído o pleno êxito dum CAN disputado por 16 nações, a maior parte delas atuais estrelas do futebol mundial. Angola mais uma vez fracassou no aspeto desportivo, mas no cômputo geral foi positiva e muito boa a organização por parte do COCAN, liderado pelo ex-Ministro Justino Fernandes.
Em 2013 Angola organiza o campeonato do Mundo de hóquei em patins, distribuído nas cidades de Luanda e Namibe, cidades onde se constroem dois novos pavilhões para receber um evento de importância relativa, já que é uma modalidade de pouca expressão ao nível internacional, e que mesmo no País tem muito poucos praticantes.

SINTESE FINAL

Neste pequeno e incompleto percurso nos caminhos da educação física e desporto angolano ao longo dos quarenta anos de Angola, enquanto País soberano e independente, um fator que não deve ser negligenciado: foi através da expressão desportiva que Angola conseguiu uma visibilidade exterior importante, que dificilmente seria possível noutros sectores de atividade, quer na área social, quer na área económica.
Quando da opção socialista do País, a educação física e o desporto foi uma área onde se terão conseguido assinaláveis progressos, pela mobilização de recursos, na constante procura de formação de quadros e otimização de novas competências,na promoção de acordos de cooperação assertivos com partilha continuada de experiências e, acima de tudo, a vontade de promover uma República Popular de Angola nova, com dificuldades, mas orgulhosa da sua soberania e acima de tudo muito ciosa em defender valores solidários no contexto das nações.
Não foi fácil edificar uma estrutura deste tipo, e ainda hoje se vão colhendo os frutos das sementes que se colocaram nesses anos em que muito se discutia, mas que também muito se fazia.
O basquetebol e o andebol feminino continuam a ser as nossas mais honoráveis representações a nível internacional, mas são urgentes novos desafios porque aquilo a que vamos assistindo é a um niilismo, que substituiu a erradamente chamada “massificação”. Pouco mais se faz que navegação à vista o que não é nada bom augúrio para o futuro!
É muito importante repensar estratégias, e também fazer um apelo a contribuições que permitam que não se perca a formação, porque será aí que se irão buscar os que hoje precisam de ser substituídos. Não se pede necessáriamente “injeção de sangue novo”, mas alerta-se para que talvez seja a hora de oxigenar o sangue que existe.
Convém também alertar que o desvario urbanístico e imobiliário impediu as pessoas de terem espaços para a prática de modalidades, e nem o jogo de futebol de rua, tão popular entre nós,pode ser praticado, já que os largos, os terrenos baldios e os becos desapareceram para se construir a esmo.
Nunca teremos gente para os estádios inaugurados por toda a parte se não tivermos muita juventude a praticar um pouco por todo o lado, num País em que as condições climáticas aliadas à apetência inata da nossa população pela prática da educação física e desporto são motivos suficientes para termos muita gente engajada.
Viva o 11 de Novembro de 1975!

Fernando Pereira
27/10/2015


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