29 de maio de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (2) / Ágora /Novo Jornal/ Luanda 29/5/2015



Nos tempos da Kaparandanda (2)

Continuo a dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração que nos deixou algumas preciosidades e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha - Angola (1949 – 1975)” editado pela Cá de Caxinde, fez uma reflexão do que foram os seus vinte e seis anos de Angola.
São histórias simples, numa linguagem despretensiosa e num enquadramento de um tempo em que Angola era uma colónia de Portugal num contexto muito diferente dos tempos de hoje.
“O Moutinho
Hoje há quem se prepare convenientemente e com diploma passado, para animador cultural. Naquele tempo não era assim. O maior e melhor diploma era a aparelhagem sonora e o amplificador.
Este conjunto entregue a quem tivesse alguma habilidade e espírito alegre, nada mais era necessário. Pois, no Uíge, conheci um desses indivíduos que era chamado para todos os eventos: festas de rua, homenagens a personalidades, casamentos, batizados e outros. E ele era elemento imprescindível.
Tinha uma boa aparelhagem, muitos discos, com músicas brasileiras que ainda hoje, e já lá vão tantos anos, de volta e meia ainda oiço algumas delas.

Mas vamos então fazer a apresentação da personagem: chamava-se José Moutinho, homem de mediana estatura, de boa compleição física, sardento, cabelo ondulado avermelhado, de cerca de pouco mais de 40 anos, casado com uma senhora nutrida e muito simpática que sempre o acompanhava para todos os lados.
Não tinha filhos e tinha toda a disponibilidade para ir onde fosse necessário. Com uma locução agradável e fluente, caíra no goto da gente do Uíge, mas muita gente desconhecia um acontecimento que lhe deu fama e pouco proveito.
Em tempos, tinha ele cerca de vinte e poucos anos, juntamente com mais três amigos resolveram que haviam de fazer uma viagem, de bicicleta, ligando Luanda a Lisboa. Era um feito inédito e com bicicletas pasteleiras mas que teria uma grande repercussão; trataram das pasteleiras juntaram o necessário para o caminho, uma credencial para permitir abrir fronteiras, levaram a roupa necessária e água.
Faltar-lhes-ia o essencial que era um planeamento muito cuidado do itinerário e ainda a Comunicação Social que nestes eventos é sempre necessária. Mas gente de sangue na guelra e cheios de esperança, lá arrancaram certo dia de Luanda, a caminho de Lisboa, não pensando muito naquilo que era o esforço diário e as contrariedades que poderiam acontecer. O mais entusiasta foi o José Moutinho, talvez o mais bem preparado para a grande jornada. Os primeiros dias foram passados mais ou menos, depois foram surgindo as dificuldades, falta de capacidade física, e aos poucos e à medida que os quilómetros eram percorridos e noites mal dormidas, iam fazendo mossa que já diziam mal da sua vida por se meterem em tal aventura. Quantos mais quilómetros percorriam parecia-lhes que muitos mais outros lhes faltavam para andar. Começaram a dar sinais de fraqueza e a falta de ânimo conjuntamente com as indisposições e as pequenas mazelas que os iam afetando cada vez mais.
É preciso não esquecer que estavam nos anos 30, e nesse tempo, muito havia ainda a explorar. Primeiro, e há sempre um primeiro que piora, completamente exausto obrigou os restantes a pararem para o ajudar. Mas o mal não era fácil de debelar e acusando uma forte anemia, que apesar dos esforços de todos e dos cuidados médicos e hospitalares, foi internado numa pequena Vila da República do Congo, não resistindo ao mal que o afetava, acabou por falecer.
Os outros dois elementos permaneceram ali alguns dias para cumprirem com as formalidades legais; depois continuaram a viagem, agora só dois, sendo o José Moutinho o mais resistente e o mais bem preparado, e à medida que se aproximavam do norte de África já ambos iam bem desgastados e a verdade é que o companheiro do Moutinho, quando já estava perto de Marrocos ali desistiu, continuando assim a viagem completamente só o Moutinho, que para sua grande alegria entrou em território português Vilar Formoso , de onde seu pai era natural.
Veio para Lisboa, onde o Moutinho julgava que seria recebido depois daquela viagem única sem apoios de qualquer espécie, e pensou até que exultassem o feito e o custo da viagem...
Mas 105 dias depois internaram-no na Casa Pia de Lisboa como indigente, onde lhe facultaram comida e dormida, bem como o pagamento da viagem de regresso.
Ao ter-me contado esta aventura, levou-me a concluir que tinha à minha frente um homem de coragem e de grande espírito de sacrifício.
Por estas e por outros foi sempre um amigo que eu estimei, e o seu último gesto para comigo, foi, depois de gravar a minha festa de despedida no novo Hotel do Uíge, ter-me oferecido o original da gravação com um abraço muito apertado de amizade que quando me recordo daquele tempo, sempre vem à minha mente o José Moutinho, que para mim foi um herói injustiçado.”
Não deixa de ser interessante quando se consegue reproduzir uma aventura com 75 anos de um tempo em que tudo era difícil para alguns e muitíssimo difícil para muitos!
Às histórias havemos de voltar!

Fernando Pereira
26/5/2015
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