27 de maio de 2012

Laranja amarga e doce! / Ágora/ Novo Jornal nº227 / Luanda 25-5-2012





A Embaixada de Portugal em Luanda vai realizar uma merecida homenagem a um dos mais talentosos cineastas portugueses, João César Monteiro (1939-2003), com a exibição de três dos seus filmes, dos quais, numa escolha particularmente difícil, “As Bodas de Deus” merece a minha preferência.
Enquanto decorria o que, durante anos, foi o Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, íamo-nos cruzando, nas noites, em bares que circundavam o Casino Peninsular, com os protagonistas dos filmes a concurso, com uma parafernália de críticos, realizadores, produtores, atores e público que enchia de gente a cidade, lhe dava um colorido especial e, de certa forma, marcava o final da época balnear, na que era então a mais prestigiada praia da costa portuguesa. No distante ano de 1976 conheci João César Monteiro, que me foi apresentado pelo saudoso músico Mário Simões. Confesso que, nesse único contacto, fiquei francamente dececionado pela forma deselegante como se referia a todos que passavam no “Picadeiro”, designação comum do passeio das vaidades onde circulam as pessoas no estio figueirense.
Talvez pela deceção provocada, comecei a ver os filmes de JCM com alguma reserva, mas rapidamente me confrontei com uma obra a raiar a genialidade. Nem o “obscuro” Branca de Neve conseguiu beliscar o muito que gosto de toda a sua controversa obra. “Recordações da Casa Amarela” é provavelmente o melhor da sua filmografia.
Já que se fala do Festival é bom lembrar que o primeiro prémio internacional de cinema ganho por Angola foi precisamente na Figueira da Foz em 1981, na ocasião em que o “Prémio Glauber Rocha” foi outorgado a António Ole com “No Caminho das Estrelas”.
A recente visita da argentina Cristina Kirchner a Luanda fez-me recordar que, nos tempos das visitas de “ Amizade, Partido e Estado”, na ex-República Popular de Angola, fazia-se uma distribuição de bandeirinhas aos meninos das escolas para agitar à passagem dos ilustres visitantes. Desses tempos, entre recordações várias, lembro com saudade as tolerâncias de ponto que nos aliviavam um pouco do “espírito voluntário” dos “Sábados Vermelhos”.
Uma dessas visitas foi a de Erich Honecker (1912-1994), SG do Partido Socialista Unificado da Alemanha, Presidente da RDA, que trouxe uma grande delegação para assinar projetos de cooperação em várias áreas. Entre os ministros vinha sua esposa, Margot Honecker, que detinha a pasta da Educação. Uma delegação da SEEFD foi apresentar cumprimentos de boas vindas e, na verdade, deparámo-nos com uma alemã, para quem qualquer tamanho “S” ficaria inadequadamente grande. Eu, do alto dos meus 1,87m de talento e altura, fui obrigado a vergar-me bem mais que outros colegas que estavam mais ao nível, e a verdade é que a senhora só balbuciou:"Was so groß angolanischen" (que angolano tão grande) e lá foi sorridente a distribuir beijos a esmo, nenhum ao nível daquele que o marido deu a Brejnev e que é uma foto iconográfica do capitalismo provisoriamente triunfante no centro da Europa.
Integravam essa delegação o director da FDTJ, organização que geria o desporto na RDA, e alguns técnicos. Após um conjunto de reuniões, teve lugar um jantar no ex-Hotel Costa do Sol, localizado no morro da Corimba onde, nos anos 60, os luandenses mostravam a cidade ao longe a quem nos visitava.
Num ambiente distendido estulticiamente, resolvi contar ao dirigente e aos técnicos a célebre anedota das laranjas:“ Uma criança alemã ocidental estava no muro de Berlim a brincar com uma laranja e a fazer pirraça a uma criança alemã oriental: não tens laranjas,eh,eh! O miúdo da RDA foi para casa danado e contou ao pai, que o ensinou a responder a essa provocação com a frase: não tens socialismo. A cena repete-se no dia seguinte, tendo o miúdo da RDA argumentado como o pai lhe ensinara. A criança da RFA vai para casa, conta ao pai, que lhe promete que também há-de ter socialismo. No dia seguinte, no muro, a mesma ladainha: não tens laranjas/ não tens socialismo. Ao que o miúdo da RFA responde: hei-de ter socialismo. O miúdo da RDA então responde, perante a perplexidade do outro: quando tiveres socialismo nunca mais terás laranjas.“
Escusado será dizer que não caiu nada bem esta história. O silêncio dos alemães foi ensurdecedor e o riso amarelo, aliado à gaguez da tradutora, terá conduzido à minha saída de cena de forma o mais discreta possível.
Quando vi o“Good Bye, Lenine“(Adeus Lenine-2003) de Wolfgang Becker perguntei-me de que lado estavam os meus interlocutores daquela noite quente de há trinta e poucos anos.
Citando Millor Fernandes: "Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a ficar calado." Ao tempo, nem imaginava o que era ter quarenta anos, quanto mais o que era estar calado.

Fernando Pereira
21/5/2012

18 de maio de 2012







Fernando Tavares Pimenta é doutorado em História e Civilização pelo Instituto Universitário Europeu de Florença e investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, onde frequenta uma bolsa de pós-doutoramento financiada pela FCT. È simultaneamente colaborador do Instituto de História Contemporânea de Ferrara e da Universidade de Bolonha.
Acedeu a ser entrevistado pelo Novo Jornal, na qualidade de investigador da história de Angola no século XX.
NJ- Nascido depois do 25 de Abril de 1974 (1980), em Soure, num concelho rural do distrito de Coimbra, com nenhumas afinidades familiares a Angola, o que o levou há já uns anos a interessar-se por um tema que aparentemente tem muitas “estórias” mas pouca história?

FP – O meu interesse por Angola foi sempre de carácter historiográfico, nomeadamente pelas suas estreitas ligações a Portugal. Interessei-me pela história dos brancos angolanos, em especial pela identidades e comportamentos políticos dessa minoria, por ser um assunto que considero fulcral para um correcto entendimento da historia quer do colonialismo português, quer do nacionalismo angolano. Contudo, antes da publicação dos meus estudos, essa temática era praticamente ignorada pela historiografia. Havia uma lacuna de conhecimento, que contrastava com a relativa abundância de estudos para outros países africanos, por exemplo a África do Sul, o Quénia ou o Zimbabwe. No fundo, foi isso o que levou a interessar-me pelo tema.
NJ- Surpreende-me, e admito com satisfação, ver um tão grande número de jovens investigadores portugueses, com nenhuma ligação familiar, económica ou afectiva a Angola, desenvolver trabalhos que dão hoje contributos indispensáveis a uma História de Angola que se pretende despartidarizada e despida de preconceitos. Provavelmente admite que já começa a ser citado com alguma insistência por angolanos em trabalhos científicos, artigos de opinião ou tertúlias em Angola? Isso deixa-o confortado?
FP – Fico satisfeito pelo meu trabalho servir para uma clarificação da Historia de Angola. Mas o mais importante é ter a consciencia de ter realizado um trabalho sério e rigoroso e que contribui de algum modo para a construçao de um conhecimento mais estruturado do passado angolano.
NJ- Fernando Tavares Pimenta, Claudia Castelo, Nuno Moreira de Sá, Margarida Calafate Ribeiro e alguns outros investigadores tem acabado por trazer para a história recente de Angola contribuições que, quer se queira ou não, acabam por fazer cair alguns dogmas, que se transformaram em quase palavras de ordem para a independência e vida colectiva de Angola enquanto País independente. Naturalmente que gostava de ter a sua opinião de investigador de uma ciência com método e objectivo próprio sobre isto.
FP – A historiografia é uma ciencia social com métodos especificos e que se fundamenta na leitura de fontes documentais. Por isso, a historiografia nao pode ser conivente com a existencia de dogmas – muito menos de dogmas do foro politico. Dogmas e mitos nao podem – ou pelo menos nao devem – interferir na pesquisa historica, que deve ser efectuada com isenção e rigor científico. Isto aplica-se à história de Angola e de todos os paises. Na minha investigaçao procuro sempre manter essa isenção – é essa a minha formação, e julgo que muitos outros historiadores se pautam pelo rigor nas suas pesquisas.
NJ – Há relativamente pouco tempo, em conversa com o nosso comum amigo, Fernando Catroga, insigne catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, homem de grandes cumplicidades políticas e ideológicas com muito angolano, estudantes em Coimbra nos anos 60, e que depois abraçaram a causa independentista, dizia-me algo consternado, que não havia mais jovens historiadores angolanos a trabalhar em áreas que ainda hoje permanecem “nebulosas” na história de Angola. Tem sido procurado por colegas seus de Angola para alguma partilha de conhecimentos?
FP – Tenho poucas relaçoes com a historiografia angolana. Alias, nunca fui “procurado” – em termos cientificos – por nenhuma instituiçao angolana. Contudo, mantenho alguns contactos informais com alguns historiadores angolanos, nomeadamente com Maria da Conceiçao Neto, cujo trabalho aprecio. Certamente, seria positivo haver maiores contactos entre as historiografias portuguesa e angolana.
NJ- Citando Catroga:” Historia e memórias partilham uma mesma feição de ser: são ambas narrativas, formas de dizer o mundo, de olhar o real. São discursos, pois. Falas que discorrem, descrevem, explicam, interpretam, atribuem significados à realidade.”, e lembrando que tem morrido recentemente angolanos protagonistas de lutas de libertação e cabouqueiros de Angola enquanto País, o mais recente Paulo Jorge, não acha que se devia apelar à memória dos que ainda são vivos para legar vivencias para memória futura?
FP – Os testemunhos e os depoimentos dos agentes historicos sao sempre importantes para a conservaçao da memoria e para a investigaçao historica, na medida em que sao fontes que os historiadores nao devem ignorar no seu trabalho de pesquisa. Em termos historiograficos, cada testemunho é uma fonte, cuja valencia cientifica deve ser apurada através de uma analise criteriosa e critica. Neste sentido, seria salutar que esses agentes historicos escrevessem as suas memorias ou transmitissem doutra forma os respectivos testemunhos para que nao se perca uma parte significativa da memoria do passado.
NJ- Tem acompanhado o trabalho de alguns centros de investigação e documentação em Angola, a título de exemplo a Associação Tchiweka?
FP – Acompanho os progressos da historiografia angolana, que julgo serem significativos, bem como os esforços desenvolvidos por algumas instituiçoes e pessoas no sentido da preservaçao da memoria historica. Mas, tal como jà referi, nao tenho qualquer ligaçao a nenhuma instituiçao angolana.
NJ- O seu livro, editado pela Minerva de Coimbra “Brancos de Angola – Autonomismo e Nacionalismo”, acabou por motivá-lo para um trabalho mais detalhado na obra editada pela Afrontamento (2008), os “Brancos e a Independência”. Há na esteira destes dois trabalhos mais alguma obra em preparação sobre o tema?
FP – Continuo a trabalhar sobre a realidade colonial angolana em termos de artigos, capitulos de livros, conferencias ou mesmo aulas, mas para jà nao tenho nenhum outro livro em preparaçao sobre Angola. Neste momento estou mais interessado em Moçambique, cuja realidade colonial tenho estudado nos ultimos tempos. Embora diferente da angolana, a historia moçambicana também é muito interessante.
NJ- Sei que um académico não gosta de se ver envolvido em questões de vulgar discussão política, mas tem que admitir que a sua obra “Angola no percurso de um nacionalista. Conversas com Adolfo Maria” terá sido a sua obra mais lida, comentada e controvertida no seio da sociedade política angolana! Só procurou história nessa entusiasmante conversa?
FP – O meu interesse por Angola é puramente cientifico. Esse livro tem um intuito historiografico e de conservaçao da memoria de um agente da historia angolana, neste caso o senhor Adolfo Maria. Nao tenho interesse na discussao politica angolana. É algo que nao me diz respeito. Julgo, porém, que esse livro deu um contributo importante para uma clarificaçao da historia recente de Angola, sobretudo para o periodo da guerra de independencia.
NJ- A título de informação tenho que lhe dizer que é uma obra muito procurada, e a realidade é que a paupérrima distribuição faz com que não se encontre esse livro no circuito convencional em Portugal ou Angola. Não está a pensar reeditar o livro, com novas conversas com Adolfo Maria, que talvez por causa dessa obra começou a ser olhado duma forma mais respeitada num País que muitas vezes convive mal com a sua própria memória?
FP – Esse livro é fruto de um trabalho concluido em 2006. Nao faz parte da minha agenda efectuar “novas conversas” ou entrevistas com o senhor Adolfo Maria. Contudo, o livro acaba de ser reeditado – no formato original – pela Afrontamento. Espero que seja feita uma boa distribuiçao da obra.
NJ- No fim desta nossa pequena entrevista posso perguntar-lhe com que olhos vêem uma Angola que apenas conhece no mapa, pois não teve a dolorosa experiencia de seus pais de terem que saber que a serra maior de Angola era Tala Mungongo, que o caminho de ferro de Luanda tinha o ramal do Dondo e que o rio Cunene limitava Angola no sul, entre outras aparentes estultices. Os angolanos eram obrigados a estudar o goiveiro em ciências naturais, a linha do Douro, estações e apeadeiros, o monte Ramelau em Timor e outras bizarrices do tipo, que faziam de Portugal uma imitação serôdia da Inglaterra, num conceito de uma “Nação onde o sol nunca se punha”.
FP – Angola é um grande pais, com muito potencial humano, para além de economico. A sua historia ainda està em larga medida por investigar, mas a historiografia està a fazer passos importantes no sentido de produzir um conhecimento mais aprofundado sobre o passado angolano. O futuro depende sobretudo do trabalho dos proprios angolanos, que tem a oportunidade de construir um pais melhor para si e para os seus filhos e netos. Embora nao tenha ligaçoes pessoais a Angola, desejo paz e prosperidade a todo o Povo Angolano.
NJ- Muito obrigado por esta entrevista e a convicção que Angola vai aproveitar o seu contributo quando se fizer a “história de Angola”.

Fernando Pereira
20/11/2011

Quem muito viu! / Ágora/ Novo Jornal 226/Luanda 18-5-2012





Benguela comemorou a 17 de Maio de 2012 os seus trezentos e noventa e cinco anos de “idade”, fundada que foi pelo Cerveira Pereira, um pouco maltratado pelo Pepetela, no seu o “a Sul, o Sombreiro”, o seu mais recente romance.
A incontornável macrocefalia de Luanda acaba por não dar o devido relevo ao desenvolvimento que se vai assistindo um pouco por todo o País e ignora-se como Benguela se tem afirmado num polo de desenvolvimento económico e cultural do centro sul de Angola, conseguindo recuperar alguma da auréola que o Lobito foi usurpando na fase final da ocupação colonial, mercê da posição privilegiada do seu porto e do terminal do CFB.
As gentes de Benguela foram sempre muito ciosas na defesa da sua cidade, e veja-se a luta que travaram quando o Caminho de Ferro de Benguela, a então majestática empresa inglesa se preparava para atravessar a cidade, como fez no Lobito, Huambo e outras vilas no seu percurso até ao Luau. A população não deixou, e nem as promessas da administração do CFB, acolitados pela indiferença cumplice das autoridades, conseguiram demover a população para que a cidade fosse dividida. Este é apenas um dos múltiplos exemplos da tenacidade das gentes da cidade, a segunda fundada pelos portugueses na costa do que veio mais tarde a ser a colónia de Angola.
Outra vetusta povoação de Angola, outrora um grande porto de exportação de café tem o seu rico património a degradar-se sem que se veja uma atitude coerente e incisiva por parte das autoridades para manter de pé uma vila que durante muitos anos foi marco importante no tecido económico do território. O Ambriz, situada na foz do Loge vê os seus edifícios a degradarem-se, nomeadamente a torre sineira da Camara Municipal, que era só um dos edifícios do início do século XX, orgulho das suas gentes e de características únicas no País.
Lembro-me, ainda que vagamente, da horrível estrada que ligava Luanda ao Uige, num total de 386km, no meio de lamaçais que passava no Cacuako, Kifangondo, Libongo, Capulo, Ambriz, Toto, Bembe, Lukunga, Songo e finalmente Uíge. O stress da viagem para além da necessidade de enfrentar lodaçais onde chegavam a estar atolados centenas de viaturas dias a fio, aumentava quando havia necessidade de se chegar a tempo das jangadas que placidamente cruzavam os rios Loge e Dande (Dange, na provincia do Uíge). Se perdesse a jangada Luanda ficava para o dia seguinte e lá tinham as pessoas que se arrumar numa sórdida pensão, que era a única solução para mitigar o desespero dos viajantes.
Há ainda que em mau estado um conjunto harmonioso de vivendas e lojas que atestam a vitalidade dos tempos áureos do café principalmente nos anos 50 com o boom do preço do “ouro negro” de então. Luanda e Lisboa crescem com prédios, bairros e avenidas novas, a construção civil dispara e nessas cidades surgem novas centralidades e um novo ordenamento do perímetro urbano.
Este alerta para a recuperação da vila do Ambriz é extensível ao património arquitetónico e cultural do País alertando que na antiga fazenda Tentativa, paredes meias com o Caxito, ainda era possível juntar algum material para perpetuar o duro trabalho da cana e a sua transformação em açúcar e álcool, criando-se um núcleo de arqueologia industrial que se revelaria útil para memória futura dos cidadãos.
O Ambriz perde toda a sua importância como porto de exportação, quando Luanda passa a ser o destino final da chamada “Estrada do Café”, que sai do Caxito, Sassa, Ucua, Puri, Quibaxe, Aldeia Viçosa, Vista Alegre, Quitexe e Uige. Esta estrada esteve sempre fechada ao tráfego normal no tempo colonial, recorrendo-se às colunas militares. A insofismável verdade que mesmo com a 1ª região político-militar do MPLA debilitada por razões sobejamente conhecidas, as tropas coloniais nunca conseguiram pacificar-se em relação à realidade quotidiana da guerra colonial nesta região dos Dembos, naquela que é das estradas mais bonitas do País, com o verde extasiante da sua paisagem ao logo dos 340km que ligam Luanda à capital da província.
Já que se falou no rio Dange não gostava de deixar de referenciar uma obra de grande probidade intelectual de um antigo habitante do Quitexe já falecido, João Nogueira Garcia, que ao longo de um livro pouco mais de cem páginas conta detalhadamente, com recurso a fotos e a documentos, o que foi o 15 de Março de 1961. João Garcia viveu esses dias e faz uma análise muito cuidada dos antecedentes e revela as vicissitudes desses dias que marcaram o futuro da guerra colonial e determinaram o princípio do fim da presença portuguesa em Angola enquanto colónia.
Um livro que merece uma leitura, sendo que talvez o mais difícil será mesmo encontrar. Sugiro que procurem um blog interessante sobre o Quitexe onde o filho, Engº João Garcia tem estado a postar partes do livro e outras histórias que não foram ainda publicadas em livro.

Fernando Pereira
16/5/2012

11 de maio de 2012

“Nas Brumas da Memória” / Ágora / Novo Jornal nº 225/ Luanda 11-5-2012








Um destes dias tive necessidade de recorrer ao livro “Desporto e Estruturas Sociais”, do professor José Esteves, para tirar uma dúvida sobre o número de praticantes desportivos numa determinada modalidade, em Portugal, na primeira metade dos anos sessenta e assim corrigir, com precisão, um amigo sobre o assunto.
Como sempre acontece quando estou com algum livro do professor José Esteves, continuo a relê-lo e gostaria de partilhar aqui algumas histórias que marcaram o quotidiano político do “Portugal uno e indivisível”.
O Diretor Geral dos Desportos era, no distante ano de 1958, o tenente-coronel Sacramento Monteiro que, cheio de boas intenções, resolve pedir uma audiência a Salazar para a discussão de um plano de construção de instalações desportivas em Portugal e colónias.
Com a frieza habitual com que recebia os subalternos, mesmo que titulares de cargos de responsabilidade governativa, recebeu o Diretor que lhe entregou um dossier. Salazar perguntou que era aquilo. “ Trata-se de um plano de construção de piscinas, para o fomento da natação entre a nossa juventude, Sr. Presidente”. O militar Sacramento Monteiro contou ainda: “o homem olhou para mim, olhou para o dossier, afastou-o logo a seguir, com um dedo só, com um ar de muito desprezo e despede-me com esta simples frase: Senhor Diretor Geral, está muito frio para tratar desse assunto. Venha lá mais para o Verão!”.
Em 1959, numa visita efetuada ao Estádio Universitário de Lisboa, ao verificar, na planta geral das instalações, que havia um espaço destinado a uma piscina, ali mesmo decidiu a eliminação pura e simples de tal hipótese. O homem abominava a natação.
A verdade é que em Angola, a iniciação à natação e a sua prática competitiva era apenas dirigida a sectores bem determinados da sociedade angolana, no caso a filhos da burguesia colonial, ou a funcionários de companhias majestáticas como era o caso da “Diamang” e “CFB”.
Em Angola, a primeira piscina olímpica, ainda a única no País, está em Luanda e foi inaugurada em 1969. Tudo o resto eram tanques e piscinas de vinte e cinco e trinta e três metros, como a velhinha do Nun’Álvares, hoje Clube Náutico da Ilha.
No elitista Lobito Sports Club e no Ferroviário de Nova Lisboa, hoje Huambo, havia duas piscinas que, para além de estarem ligadas à natação enquanto modalidade competitiva, eram usadas para práticas de lazer dos funcionários e familiares do CFB. Em determinada altura a construção de piscinas passou a ser uma obra de grande visibilidade dos governadores e administradores nomeados pela administração colonial, mas quase nenhuma delas desenhadas para a prática da natação enquanto modalidade desportiva. Curiosamente nem a “Bufa”, corruptela que correntemente designava a Mocidade Portuguesa, tão ligada a desportos náuticos como a vela e o remo, manifestava algum interesse em desenvolver a natação.
No contexto continental continuamos infelizmente ao nível da maioria dos Países no quadro da iniciação e competição da natação, onde a Républica da África do Sul domina em toda a linha, com alguns medalhados olímpicos de permeio.
Como estou com o livro do José Esteves entre mãos, e porque tenho muita consideração e estima pelo Ruy Mingas, gostaria de lembrar uma entrevista sua concedida ao jornal “A Bola” de 17-6-1974. Referindo-se ao panorama sociodesportivo do seu País dizia: “os negros nunca puderam beneficiar da integração, mesmo mínima, ao nível da atividade desportiva (…). Mesmo assim, no entanto, os negros ainda conseguiram afirmar uma certa posição, ainda que muito relativa, no desporto. Sem escolas, sem empregos decentes, sem nível económico que lhes permita chegar aos divertimentos que, então ao alcance dos brancos, os negros têm como único escape para a sua vida oprimida- para não dizer, já, escravizada- o desporto e a música. E é assim que interligam e interpenetram ambas. Jogar com uma bola, correr ao lado de um camarada e dançar ao som da música feita por mãos a percutir madeira, não custa dinheiro”.
Já agora alguém me pode explicar porque é que quase toda a gente chama falta de luz à falta de eletricidade? Confesso que nunca vi ninguém chamar falta de fogão à falta de gás, ou falta de torneira à falta de água!..
«Se um artista tem uma obra dentro de si, deve sacrificar os outros ou a obra?» Agostinho da Silva (1906-1996)

Fernando Pereira
8/5/2012

4 de maio de 2012

QUEM VÊ CARAS NÃO ESCUTA VOZES.../ Ágora / Novo Jornal 224 / Luanda 4-5-2012


A geofinança esmaga a geoeconomia, e a comunidade internacional chama geopolítica à antipolítica, que tanto mata repúblicas como não deixa renascer a república universal. Por outras palavras, há uma inversão de valores. É na Europa e no mundo.
Esperemos que a legitimidade regresse. A estrela do norte da política sempre foi a justiça e, sem esta medidas, não há democracia, porque não há liberdade sem igualdade e ambas, sem fraternidade. É urgente repolitizar o Estado e os Estados, em síntese, o mundo. De outra maneira, virão os despotismos. Sobretudo os privados, aqueles que já clandestinamente nos condicionam e proíbem.
Há dias, o Gustavo Costa indignou-se, e justificadamente, com a utilização abusiva de uma parte da Escola Nzinga Mbandi para casamentos, batizados e outras farras. Acho que as escolas têm que ser preservadas, e não devem recorrer a expedientes deste tipo para conseguir recursos destinados a preservar e remodelar instalações e material pedagógico. Em 1961, o espaço que foi o Liceu Guiomar de Lencastre (que não sei quem foi) e que é o Liceu Nzinga Mbandi (que sei quem foi) foi o local que alojou os primeiros militares em Abril de 1961, quando chegaram a Angola e se começou a construir o Grafanil. Na altura estavam em curso obras terminais para a instalação da escola, que só abriu como liceu feminino no ano letivo de 1962/63. Aqueles corredores, salas e ginásio continuam a acompanhar a “história”.
Recupera-se periodicamente a história da Ilha de Páscoa, território chileno com cinco mil habitantes, a maior parte deles idos do continente. A ilha de Páscoa é famosa pelas suas inúteis estátuas. Num filme, Rapa Nui, contava-se a história dos Moai, povo que, vindo da Polinésia,se tinha instalado na ilha, onde desenvolveu uma civilização. As gigantescas estátuas de pedra, património da Humanidade certificado pela UNESCO, eram construídas como oferendas a divindades e, naturalmente, para serem transportadas até ao seu destino final onde estão esculpidas, houve necessidade de abater árvores para as arrastar desde a pedreira. Esse foi o princípio do fim dos Moai, segundo o filme que afinal corrobora a opinião da maior parte dos investigadores. Em determinada altura começaram algumas tribos a digladiar-se com o objetivo de atingir a supremacia de uns sobre os outros, e cada um dos vencedores ia fazendo estátuas maiores para oferecer às divindades. A guerra acabou, provavelmente por falta de guerreiros, míngua de árvores e de Moai em número suficiente para obter os favores ou aplacar as fúrias dos sempre silenciosos deuses. As árvores eram mais necessárias que os Moai, mais férteis, e ofereciam sombra e abrigo contra os ventos oceânicos. Sem elas, depressa os solos se degradaram e a ilha ficou desértica. O ecossistema da ilha foi destruído e acabou para se revelar insuficiente para alimentar a população de dezenas de milhares de pessoas. Quando os primeiros europeus ali aportaram, num qualquer domingo de Páscoa, encontraram pouco mais de dois mil habitantes, depauperados fisicamente, sem a grandeza dos Moai, que acabaram por legar ao futuro uma ilha deserta, inóspita e habitada por continentais que vivem do turismo, a sua única fonte de receita. As doenças que os europeus trouxeram acabaram com o que restava dos Moai, porque os habitantes não tinham defesas para elas.
Esta história estava para ser contada quando se comemoraram os dez anos de paz em Angola, mas houve outras de maior atualidade, e esta só hoje aqui coloco.
Tambien, como la tierra yo pertenezco a todos.
no hay una sola gota de odio en mi pecho.
Abiertas van mis manos esparciendo las uvas en el viento
Pablo Neruda

Fernando Pereira 1/5/2012
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