18 de julho de 2015

A verdade é a única realidade / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 17-7-2015









Saiu recentemente o livro “Guerra e Paz, Portugal/Angola (1961-1974)" escrito pelo vice-cônsul da África do Sul em Luanda, de 1970 a 1973, W. S. van der Waals, editado pela “Casa das Letras”.
Tive alguma curiosidade em lê-lo, por razões evidentes. O autor foi protagonista num período de relações próximas entre o aparelho militar do “apartheid” e as autoridades militares coloniais em Angola. Era um militar colocado num lugar normalmente ocupado por um civil, e com ligações aos serviços de informação militar da África do Sul, o que não deixa de ser uma exceção, mesmo em contextos pouco vulgares. Como recentemente se abriram os arquivos da SADF (Forças Armadas Sul Africanas), havia naturais expectativas de que este trabalho pudesse trazer mais alguns contributos para um conhecimento maior do estertor do período colonial.
O livro revelou-se uma verdadeira deceção, não apenas pelas vulgaridades que enchem perto de quinhentas páginas, mas acima de tudo pela falta de precisão histórica e factual, num trabalho que pretendia ser rigoroso, pois foi a base da dissertação de doutoramento do autor na Universidade de Orange Free State em Bloemfontain, na República da África do Sul.
O suporte do livro, nomeadamente no recurso a vários documentos, revela que o Brigadeiro General W. S. van der Waals se apoia em autores de textos que, de certa forma, enfatizam o papel do exército colonial, omitindo situações em que prevaleceu alguma combatividade por parte dos movimentos de libertação. A própria organização clandestina do MPLA é secundarizada, apesar de, pontualmente, haver menção ao trabalho da PIDE o que, convenhamos, revela alguma incongruência, pois havendo trabalhos redobrados seria sempre um evidente sinal de que haveria, simultâneamente, atividade por parte das células urbanas clandestinas.
Os próprios documentos “classificados” do SADF revelam-se de importância residual, e em nada acrescentam ao muito que se vai sabendo sobre esses tempos que muita gente ”estoria”, mas com um contributo pouco decisivo para a história.
Talvez valha a pena lembrar Edgar Morin: "Pensar autonomamente significa reflectir na sua crença e na sua descrença, na sua confiança e na sua desconfiança. A cultura, que deveria permitir-nos pensar por nós mesmos, leva-nos demasiadas vezes a pensar 'culturalmente', de forma convencional e estereotipada, e assim, sem sabermos, somos submetidos às crenças e descrenças estabelecidas, às confianças e desconfianças que são de regra. Devemos portanto desconfiar das nossas confianças, sem por isso nos entregarmos às nossas desconfianças."
Estes trabalhos sobre o período colonial, publicados por um conjunto de protagonistas, historiadores, jornalistas, investigadores, deparam-se com barreiras que urgiria ultrapassar rapidamente, e o que sobressai é a ausência de oportunidade de recorrer aos documentos militares do tempo colonial em vários países, a começar naturalmente por Portugal, e com acesso facilitado aos arquivos da PIDE/ DGS em Angola. Seria excelente poder consultar o maior número de documentos para confrontar as muitas pessoas ainda vivas, e com memória, sobre situações que ocorreram num determinado contexto, onde foram protagonistas ou observadores.
Esse “documentar a memória” era um contributo decisivo para se fazer a história de períodos onde há silêncios, ocultações deliberadas e muitas suspeições, que conviria que não se perpetuassem no tempo, para que a especulação não ocupasse o lugar do rigor.
Há pouco tempo ouvi acidentalmente um indivíduo explicar, em detalhe, como ocorreu a morte do comandante Kwenha, já que ele fazia parte do grupo que o abateu. Fiquei com natural interesse em saber se estava disposto a dar-me um depoimento para este jornal. Não me manifestou qualquer reserva e combinámos que, oportunamente, lhe faria um conjunto de perguntas sobre o assunto. Vim fazer o meu trabalho de casa e, surpresa das surpresas, quando faço uma pesquisa sobre o Comandante Kwenha, herói do MPLA no combate contra os portugueses, não encontro rigorosamente nada a não ser a menção à sua presença na toponímia de várias cidades e do recentemente inaugurado aeroporto de Menongue, a quem muito justamente foi dado o seu nome.
Da sua vida, da data da sua morte, da sua participação na guerrilha, rigorosamente nada, o que não deixa de ser bizarro!
Qualquer boa ideia para recuperar a memória coletiva recente é bem-vinda. Não há sociedade sem cultura nem cultura sem instrumentação de juízos prévios.
Ou será, como diz Isaac de Ninive, “A palavra é o órgão do mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo que está a chegar”?




Fernando Pereira
13/7/2015

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