29 de maio de 2011

Entrevista que fiz para o Novo Jornal de 27-05-2011 a Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus







Dalila Cabrita Mateus é uma insigne investigadora, doutorada magnum cum laude em História Moderna e Contemporânea, com interessante obra publicada sobre o colonialismo, as lutas de libertação nacional, a repressão, a guerra colonial, a independência das ex-colónias. Recentemente deu à estampa uma obra polémica sobre o 27 de Maio de 1977 em Angola, a Purga em Angola. Obra de que é co-autor seu marido, Álvaro Mateus, o qual, ao longo da vida, foi quadro político, jornalista, publicista, advogado e professor, tendo sido, nos anos da ditadura, dirigente da Casa dos Estudantes do Império e coordenador do jornal clandestino Anti-Colonial, em cuja redacção participaram angolanos e de que saíram 11 números, o primeiro em 1964 e o último em 1969.


Trinta e quatro anos depois do infausto “27 de Maio de 1977” acha que se pode começar a fazer a história ou ficarmo-nos pelas “estórias”?
No que nos respeita, não fazemos «estórias». E mais de 30 anos decorridos sobre os acontecimentos são tempo mais que suficiente para a História Contemporânea.

Para o livro PURGA EM ANGOLA consultámos todo o material que nos foi possível (e duvidamos seriamente que existam, em Angola, arquivos oficiais sobre estes acontecimentos).

Recolhemos 28 entrevistas e declarações, depois transcritas para umas 700 páginas. Considerando que, para a compreensão do que ocorrera, era necessário recordar a história do MPLA, consultámos 41 processos dos arquivos da PIDE e 1 processo do arquivo de Oliveira Salazar. No Arquivo Histórico Diplomático do Ministério português dos Negócios Estrangeiros (fonte de informações do governo português no que respeita aos processos ocorridos no pós independência), consultámos mais 16 processos. Consultámos, também, vários sites na Internet. Lemos uma dezena de cartas particulares, assim como uma série de documentos do MPLA e dos intervenientes nos acontecimentos. Visionámos uma série de filmes, alguns deles da Televisão Popular de Angola. Lemos mais de meia centena de livros e duas dezenas de jornais e revistas.

Muito deste material (designadamente as entrevistas e declarações gravadas e transcritas, os documentos, as cartas, os filmes, os jornais e revistas de Angola) foi avaliado por técnicos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e ali depositado na «Colecção Dalila Cabrita Mateus», para consulta nos prazos legais, até porque algumas pessoas, para sua segurança, pediram sigilo da sua identidade enquanto vivas, o que os arquivos respeitarão.

Nem se diga que não ouvimos todas as partes. Citamos passagens de dois livros, vários discursos, três artigos e algumas cartas de Agostinho Neto. Entrevistámos o senhor Dino Matross, secretário-geral do MPLA, assim como o senhor Agostinho Mendes de Carvalho, antigo governante e deputado do MPLA. Citamos passagens de livros e declarações de Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Gilberto da Silva Teixeira (Jika), César Augusto (Kiluanji) e Iko Carreira. Citamos, também, vários documentos do MPLA. E citamos, finalmente, a obra de Jean Michel Mabeko Tali, autor do único trabalho académico de fôlego sobre o MPLA.

Podemos não conhecer a verdade completa sobre os acontecimentos do 27 de Maio de 1977. Mas cremos ter chegado a uma verdade possível, que deve estar muito perto da realidade.

Dito isto, fazemos uma advertência. O historiador não é um juiz, nem enuncia verdades absolutas, dogmas como na religião. As conclusões a que chega, com base na análise de uma enorme quantidade de documentação, estão sempre sujeitas à revisão e à crítica, até a refutações, com base em novos documentos. E desde que exista seriedade nos métodos, nos processos e no uso das fontes.

Sente que a “Purga em Angola”, obra envolta em grande polémica, funcionou como algo de catártico para ambos os lados de algo que os angolanos parecem mesmo querer esquecer?

 
Não creio que os angolanos queiram esquecer. Se assim fosse, o nosso livro não estaria já na 5ª edição e muitos angolanos não o teriam adquirido e lido. Esquecer o que se passou seria, aliás, consagrar um processo totalitário de construção da História de Angola, concebida como acontecimento sem testemunhas.

Hegel dixit “se a teoria é desmentida pelos factos pior para os factos” . Como acha que consegue colocar isso no contexto do “27 de Maio de 1977” e na “Purga em Angola”?

Na nossa opinião, só recuperando a «Memória» do que aconteceu se poderá acautelar o presente. O exemplo das injustiças ontem praticadas servirá para prevenir as que amanhã possam vir a ocorrer. E quando os familiares dos milhares de mortos e desaparecidos souberem onde estão as ossadas dos seus, terão, finalmente, a possibilidade de fazer o luto da sua dor. É o mínimo que se deve fazer para que possam, finalmente, descansar em paz.

Passados quase quatro anos da primeira edição do vosso livro “Purga em Angola”, não acha que há uma maior serenidade de todo um conjunto de pessoas para uma abordagem mais fundamentada em factos e menos em emoções, e que permita visões mais esclarecedoras de uma data que marcou indelevelmente de forma negativa o dealbar de Angola enquanto nação?

 
Trinta e quatro anos decorridos sobre os acontecimentos deviam, de facto, dar uma maior serenidade para a abordagem dos factos. Infelizmente, tal não acontece. E continua a haver consciências muito intranquilas.

Meses depois da saída do livro, num conhecido jornal angolano, um colunista manifestava a sua coragem no ataque a mulheres e puxando da pena desferia uma dezena dos mais baixos insultos contra a autora do livro, num «festival de impropérios» como afirmou o jornalista Reginaldo Silva. Depois, a direcção duma conhecida fundação angolana, não se sabe com que autoridade, retirou à autora o grau académico que possui. Mais tarde, num jornal português de referência, uma senhora viúva declarava que a autora era «mentirosa e desonesta», facto pelo qual responderá no foro adequado. E ainda há dias, num telefonema de Angola atendido pelo autor do livro, o filho de um dos participantes na chamada Comissão das Lágrimas, lembrou-se, finalmente, de que o pai não participara naquela Comissão e, com propósitos que se podem adivinhar, puxou dos galões e ameaçou-nos … com a justiça.

Não pretendo levantar questões que permitam especulações pueris, e também sei que perante a honestidade intelectual da professora Dalila Mateus isso nunca aconteceria, mas posso perguntar-lhe se baseada nas suas fontes, no contexto da sua obra toda, não pode admitir que o “27 de Maio de 1977” tenha sido o prolongamento do «maquis» na sociedade urbana?

 
É sabido que o grupo dos chamados nitistas tinha ligações à 1ª Região Militar do MPLA. É também possível que houvesse rivalidade entre guerrilheiros de várias regiões na luta por lugares de comando.

Mas, quanto a nós, o que se verificou, por alturas do 27 de Maio de 1977, foi uma luta pelo poder no seio da frente política MPLA, então encarado como um partido leninista com muito centralismo e pouca ou nenhuma democracia (até porque, ao contrário do que fizeram a FRELIMO e o PAIGC, durante os anos de luta armada, não realizaram um único Congresso). Aliás, durante os anos da guerra, as divergências foram, em regra, resolvidas da pior forma.

No livro comparamos esta situação com o que se passou com a organização dirigente da África do Sul, o ANC, onde havia 36 fracções (entre elas um partido e os sindicatos). Também ali atiravam em diferentes direcções, novos contra velhos, exilados contra residentes no interior, militares contra civis, inflamados contra ponderados. Mas Mandela e os dirigentes do ANC tiveram a sensatez de todos acolher numa grande tenda, considerando que não se deviam cortar os laços com a juventude, por muito dogmática, excessiva e simplista que possa parecer, pois nunca se viu construir o futuro sem aqueles que irão vivê-lo.

Recentemente saiu um livro do professor Tiago Moreira de Sá (Estados Unidos e a descolonização de Angola) em que a relação URSS-Cuba sobre a questão angolana tem alguns pontos não de fricção mas de completa dissonância. Em 27 de Maio de 1977, repetiu-se o que tinha acontecido nos acontecimentos que precederam o 11 de Novembro de 1975?

As divergências ressaltam com nitidez da leitura do nosso livro.
Os soviéticos não tinham grande apreço por Agostinho Neto, embora isso nada tivesse a ver com a sua imparcialidade no conflito sino-soviético, argumento que acaba por ser um insulto a Amilcar Cabral e a Samora Machel, que eram bem acolhidos em Moscovo, embora o segundo fosse um simpatizante dos chineses. Pelo contrário, Fidel Castro exaltava Agostinho Neto, identificando-o com a revolução angolana.

Por outro lado, apesar das acusações feitas a soviéticos de cumplicidade com os chamados nitistas, a verdade é que estes nada tiveram a ver com o que ocorreu e, segundo diplomatas portugueses, nem sabiam muito bem o que estava a acontecer. Quanto aos cubanos sabe-se que, por intervenção de Fidel Castro, tiveram papel decisivo na repressão desencadeada, actuando ao lado da polícia política angolana.

Talvez uma pergunta que terá uma carga de muita subjectividade, mas isso também faz parte da parte especulativa de qualquer trabalho. No 27 de Maio de 1977, para além do que se sabe, do que se publica que não é exactamente o que se sabe, não terá acontecido um pouco a teoria do cadinho onde terão confluído os fenómenos racistas, tribalistas, oportunistas e um anti-comunismo a roçar o primário que muitos foram então escondendo para estarem de “corpo e alma na revolução”.

Tanto quanto se percebe há no «contra-golpe» (minuciosamente preparado) uma confluência de muitos e diversos interesses, aparentemente contraditórios. Mas há, também, influências outras, a que aludimos de forma breve, quando dizemos:

«Os promotores da repressão terão tido os seus conselheiros. Alguns embaixadores (por exemplo, os da França, Jugoslávia e Argélia) nem sempre souberam salvaguardar a necessária discrição. E também não faltaram conselheiros portugueses, civis e militares, com acesso directo a Agostinho Neto através dum amigo pessoal deste».

Talvez um dia voltemos a este assunto. Por agora, limitamo-nos a referir que dois militares portugueses que passaram na altura por Angola afirmavam que o 27 de Maio de 1977 fora o 25 de Novembro de 1975 que, em Portugal, não se pudera concretizar, com uma matança monumental de comunistas e de gente progressista.

O “27 de Maio de 1977” deixou a então Republica Popular de Angola decapitada de muitos quadros que foram mortos, presos e nalguns casos que se refugiaram no exterior para nunca mais regressar. Sente nas pessoas com quem falou que isso foi determinante para que a Angola não conseguisse substituir essa gente e tivesse permitido a ascensão rápida da mediocridade baseado na confiança política, tribal, racial ou familiar em detrimento da competência?

Angola tinha, de facto, uma enorme falta de quadros. Compreende-se porquê. Em 1974, pronunciando-se sobre a presença branca em Angola, Agostinho Neto declarava ter «dúvidas sobre se, neste momento, os mesmos indivíduos que têm sido privilegiados durante o regime colonial terão o direito de continuar no país». E em vésperas da independência, aparentemente esquecido de que a maioria dos portugueses eram simples trabalhadores, afirmava na rádio que tinham de sair de Angola antes do 11 de Novembro.

O coronel Melo Antunes, um dos homens do 25 de Abril, afirmou que a principal responsabilidade pela saída dos portugueses dos novos países foi dos movimentos de libertação porque, «contrariamente à letra e ao espírito dos acordos», se gerara «um clima de total repúdio da permanência de portugueses, um clima muitas vezes de perseguição, de insegurança de tal modo intolerável, que culminou num pânico generalizado».

Em Angola, engenheiros e quadros técnicos, médicos e professores, gestores e trabalhadores qualificados eram, na esmagadora maioria, brancos. Sem eles, a economia e as empresas, as escolas e os hospitais ou funcionariam mal ou deixariam mesmo de funcionar. Ora, depois da expulsão dos brancos, mataram-se, prenderam-se e afastaram-se dezenas de quadros angolanos, a pretexto de que estavam metidos na conjura nitista.

De modo que, muitos dos poucos quadros de que Angola dispunha foram liquidados ou afastados, sendo substituídos por gente sem qualificação. Quem acabou por pagar por tudo isso? A resposta é simples: o país e os angolanos.

Em Portugal, alguns antigos colonos aparecem a dizer que a expulsão foi inspirada pelos comunistas, pelos russos. Acusação totalmente falsa. Os teóricos da revolução davam indicações no sentido de cuidar, «como das meninas dos olhos, de cada especialista que trabalhe conscientemente, com conhecimento do seu trabalho e amor por ele». Por isso o general russo Valentim Varennikov, que cumpriu duas missões de serviço em Angola, sublinhou os enormes problemas criados pelo facto de terem sido «expulsos impensadamente todos os portugueses, que constituíam a principal força na economia, na direcção dos serviços municipais e na organização da gestão do país…».

Continuam determinados em fazer novas incursões sobre o 27 de Maio de 1977, apesar de algumas experiencias desagradáveis que passou?

Para um historiador, a história nunca está acabada. Novos documentos podem levar a reabrir o processo, para emendar, para melhorar, para completar. Aliás, se compararmos a primeira edição do Purga em Angola com a última, podemos constatar que há mudanças. Apenas um exemplo.

O acontecimento que serviu de pretexto à grande purga e justificou o facto de Agostinho Neto, no seu último discurso, ter dispensado o poder judicial, dizendo que não perderiam tempo com julgamentos, foi o aparecimento de uma série de dirigentes e quadros do MPLA, numa ambulância e num jeep, mortos e carbonizados.

A primeira versão oficial dizia que o crime era da responsabilidade dos nitistas. Depois, apareceu uma outra versão oficial a dizer que os mortos tinham sido vítimas de «excessos incontroláveis».

Contudo, apareceu uma terceira versão, a declarar que os presos tinham sido mortos por um elemento da DISA, infiltrado entre os guardas. Ora, já depois da primeira edição, mão amiga fez chegar até nós um filme da Televisão Popular de Angola, feito em colaboração com o Ministério da Defesa e intitulado Eles Vivem no Coração do Povo. Ali se vê, no Sambizanga, ao fundo de um pequeno pátio, o quarto em que estiveram os presos. A câmara filma esse quarto e mostra uma porta cravejada de balas, depois varridas e juntas no chão.

As imagens valem por mil palavras. Se os nitistas queriam matar os presos, por que não os levaram para um local que desse menos nas vistas? E se os queriam matar ali, por que não abriram a porta, atirando à queima-roupa ou matando-os à catanada, para não fazer demasiado barulho? Estranho seria, aliás, que até tivessem morto elementos da sua própria gente, Garcia Neto, José Manuel Paiva (Bula) e o comandante Nzaji que, segundo um elemento da DISA, teria estado, na noite anterior, a preparar o «golpe» nitista. Assim, se pensarmos bem, concluímos que só um agente provocador infiltrado poderia ter disparado através da porta, pois tinha pressa em sair dali, para escapar à ira dos companheiros. De resto, sabe-se hoje, esse elemento, um tal Tony Laton, ter-se-ia tornado assessor do vice-director da DISA.

Tenho a convicção de que é absolutamente necessário tirar “os esqueletos do armário”, como dizem os ingleses sobre trocar lembranças do passado, pois a sociedade angolana não pode continuar a viver especulando ou evitando lembrar o que de menos bom aconteceu naquele cada vez mais distante dia de Maio de 1977. Para fim da entrevista, pergunto-lhes como vêem o olhar angolano sobre o “27 de Maio de 1977”?
Em nossa opinião, milhares de angolanos encaram hoje os acontecimentos do 27 de Maio com outros olhos. E querem conhecer melhor a sua história. Embora persista o temor em falar do acontecimento, o que explica que a autora seja frequentemente designada como «a tal» e não pelo seu nome.

De resto, nós continuamos a «tirar esqueletos do armário», a investigar, para dar a conhecer aspectos da história de Angola e de outros países de língua oficial portuguesa. Ainda este ano, assinalando os 50 anos do início da guerra colonial, publicámos mais um livro, intitulado ANGOLA 61: Guerra Colonial, Causas e Consequências.

Divulgam-se novos dados sobre o 4 de Fevereiro. Mostramos que, apesar de a operação ter sido reivindicada quer pelo MPLA quer pela UPA, o facto é que os participantes actuaram à margem destes movimentos, por iniciativa própria, pressionados por presos que não queriam ser levados para fora de Angola. A ideia da operação nascera numa «sociedade» criada com o objectivo central de lutar pela independência nacional e cujos fundadores foram Domingos Manuel Agostinho (de Malange), Raúl Deião, Bento António e Virgílio Francisco Sotto Mayor ( de Icolo e Bengo). Segundo Raúl Deião, Domingos Agostinho, o presidente da «sociedade» ( que seria o chefe-geral do 4 de Fevereiro, acção em que perderia a vida), era um simpatizante de Agostinho Neto e de gente que seria conotada com o MPLA. E segundo Virgílio Francisco, a luta pela independência de Angola devia conjugar-se com revoltas que se verificariam em Portugal contra o governo de Salazar.

Mostramos, ainda, que, no 4 de Fevereiro, a operação assume carácter militar, havendo exemplos a mostrar que se poupam as vidas de civis. Ao passo que, no 15 de Março, a revolta assume um carácter racial e tribal, voltando-se contra brancos e negros, contra civis, contra mulheres e até contra crianças. Além disso, o 4 de Fevereiro congrega elementos de diferentes movimentos e etnias, que procuram armas para lutar pela independência nacional. Ao passo que na revolta do 15 de Março, a perspectiva aparenta ser regional e tribal, procurando-se a independência para os bacongos, porventura com o propósito de reconstituir o antigo reino de S. Salvador.



Mostramos, ainda, que o massacre dos cultivadores de algodão da Baixa de Cassange, estimado entre 5 e 10 mil pessoas (vítimas dos ataques das companhias de caçadores especiais e dos bombardeamentos com napalm) terá feito mais mortos do que o «terror negro» dos bacongos, comandados pela UPA. E este «terror negro» terá feito menos vítimas que o «terror branco» que se lhe seguiu. Só que, num caso morreram colonos brancos, ao passo que nos outros só os negros foram atingidos.



Fazemos história, com base em documentos e relatos. Não inventamos nem falsificamos. Estamos sempre abertos à discussão e a refutações sérias, que sirvam para corrigir o que não estava bem. Mas contamos, também, com as injúrias, que merecerão o tratamento dos argumentos históricos não concludentes.



Resta-nos fazer votos para que historiadores angolanos, com seriedade nos métodos, nos processos, no uso das fontes (e sem temor) possam investigar temas controversos da sua história.



Fernando Pereira ( Entrevista que fiz para sair no Novo Jornal de 27-5-2011

Cortar a Direito / Ágora / Novo Jornal nº 175/ Luanda 27-5-2011







Realizou-se em Portugal de 16 a 19 de Junho de 1977 a Conferencia Mundial Contra o Apartheid o Racismo e o Colonialismo na África Austral.
As sessões foram distribuídas pelo território tendo sido a Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, o epicentro das grandes sessões.
A minha participação no evento era apoiar algumas delegações à conferência, principalmente em Coimbra, onde era representante no Conselho para a Paz e Cooperação, o distintíssimo professor Orlando de Carvalho que poucos anos depois tive o privilégio de acompanhar em Angola, numa missão da comissão permanente saída desse congresso de 1977.
Orlando de Carvalho, catedrático de “Teoria Geral do Direito Civil” na faculdade de direito de Coimbra era um homem de grande cultura, de uma esmerada educação, muito rigoroso nos seus princípios e de grande coerência política. Nunca alijou responsabilidades nas suas intrépidas tomadas de posições políticas, assumindo-as publicamente, muitas vezes pondo em risco a sua brilhantemente longa carreira académica.
Apoiou na ditadura movimentos exigindo a libertação dos estudantes presos em resultado da crise académica de 1969, participou activamente nas campanhas eleitorais contra a ditadura e promoveu sempre sem tibiezas de qualquer ordem a denúncia do salazarismo e colonialismo português.
Era uma pessoa notável, talvez como seu maior defeito o facto de gostar de falar para si próprio com os ouvidos dos outros, e a Universidade de Coimbra tem múltiplas histórias deste professor, que se tornou uma lenda dos “direitos”.
Entre várias cadeiras que ministrava o “direito de reais” , um cadeirão que feito representava para qualquer quartanista “ultrapassar o Rubicão”. Certa vez uma aluna chegou-se ao pé de Orlando De Carvalho e disse-lhe: “Dr. podia antecipar a data do exame porque os meus pais alugaram uma casa na praia e assim ia logo com eles? O OC olhou para ela e disse-lhe que “pode ir já para a praia que o exame está feito, e que pode pois voltar na época de Setembro”. Surpreendida ouviu OC retorquir: “ Uma aluna que chega ao quarto ano de direito e não sabe a diferença entre alugar e arrendar comigo reprova já!”
Esta é uma de muitas histórias de um homem que anos mais tarde acompanhei ao Lubango para denunciar à imprensa internacional o ataque às “Madeiras da Huila” perpetrado pela aviação sul-africana onde houve algumas vítimas num objectivo que não era militar, ou naquilo que certas “intervenções humanitárias”chamam de danos colaterais. Nessa ocasião ainda foi para Xangongo e Onjiva sem que se notasse qualquer constrangimento da sua parte, já que assumia tudo isto como militante da liberdade e defensor dos direitos do homem.
O professor Orlando de Carvalho era um homem convidado para todos os centenários de repúblicas, o que não queria dizer que os republicos ganhassem alguma coisa com isso na hora de fazer os exames com ele. Muita vez recorri a ele para sessões públicas evocativas do 4 de Fevereiro de 1961 ou do 11 de Novembro de 1975, onde Orlando de Carvalho fez intervenções brilhantíssimas que se perderam para memória futura. Para a então Republica Popular de Angola nunca se negou a nada, e a sua relação com o País era apenas da luta comum que proporcionou o 25 de Abril em Portugal.
Voltando à Conferencia Mundial há um episódio curiosíssimo que se passou na Bairrada, capital do leitão assado em Portugal. Um dos jantares era precisamente esse opíparo repasto, e quando chegou à mesa de muitos convivas o leitão com a anti-oxidante laranja na boca, os representantes dos Países muçulmanos de África quedaram-se a olhar para a comida sem um gesto que fosse para “agarfar “.Interrogámo-nos das razões de se limitarem a comer salada e laranja, e só já com a refeição adiantada, alguém se lembrou que a tradição muçulmana impede que se coma carne de porco. Foi difícil arranjar cabrito e bifes de vitela para tanta gente, mas lá se conseguiu e do espectro da fome inicial só sobrou a história para contar. As malhas que o protocolo atabalhoado teceu.

Fernando Pereira
24/5/2011

20 de maio de 2011

O Senhor dos Aneis /Ágora/ Novo Jornal 174/ Luanda 20-5-2011







Num périplo com o professor Sousa Santos feito por um conjunto de províncias a propósito da feitura da “Carta do Desporto Angolano” e da “Lei das Associações Desportivas” no princípio dos anos oitenta, fui-me deparando com o bizarro de situações que hoje são “estórias” de um tempo que foi sendo feito a golpes de vontade.
Em Saurimo, fomos recebidos no aeroporto pelo velho Passos, ao tempo o delegado provincial dos desportos. Como ainda era cedo para o frugal almoço, habitual nesse tempo de penúria colectiva, pedimos para ir até à delegação para preparar a reunião da tarde com os clubes da província. O Passos levou-nos a sua casa, explicando-nos que as instalações da delegação se encontravam em obras já há uns tempos e por isso todo o expediente era gerido na sua casa. Quando chegámos, levou-nos a um anexo onde estava uma secretária, uma máquina de escrever, um armário metálico com as portas fechadas com um atilho e num canto entre duas cadeiras, uma cómoda de quarto de dormir. O Passos explicou que o armário de metal era o arquivo morto, e na primeira gaveta da cómoda estava a documentação da delegação provincial dos desportos, na segunda gaveta estava instalada a associação de futebol e a ultima gaveta era para as associações provinciais de desportos colectivos e desportos individuais. Era um tempo em que o desporto na Lunda-Sul estava literalmente arrumado em gavetas.
Hoje, o desporto angolano já nada tem a ver com o cabouqueiro de outros tempos, mas surpreende-me negativamente haver poucos quadros de excelência, que o País deveria ter nestes quase trinta e cinco de vida colectiva enquanto nação.
Num dos últimos fins-de-semana realizou-se em Benguela a Assembleia Geral da Federação Angolana de Basquetebol e penso que é muito importante este evento ter decorrido fora de Luanda, assumindo ainda mais importância pelo facto deste conclave ser da modalidade desportiva com maior visibilidade do País.
Há muitos anos que acompanho a FAB, e há muitos mais que vou acompanhando o percurso desportivo e a trajectória do seu presidente Gustavo da Conceição.
Tenho uma declaração prévia de interesses a fazer; Conheço o Gustavo da Conceição, mas não tenho relação próxima com ele, pelo que estou muito à vontade para escrever sem encolhos de qualquer ordem.
Acompanho o Gustavo da Conceição desde a sua fase inicial no basquetebol em 1973, o seu percurso desportivo, a sua formação académica e o seu carácter, para afirmar sem qualquer hesitação que é indiscutivelmente um dos melhores quadros desportivos angolanos no activo.
Possuidor de enorme probidade intelectual o actual presidente do Comité Olímpico de Angola e da FAB junta a sua bonomia, o que o tem guindado a lugares de tomo no dirigismo desportivo internacional e naturalmente prestigiando Angola. É a continuidade de um riquíssimo trajecto desportivo como atleta, vencedor de muitas provas internacionais em que capitaneou a selecção até 1988, quando abandonou a modalidade deixando também o 1º de Agosto, clube onde foi seis vezes campeão nacional entre outras vitórias nacionais e internacionais de clubes.
Gustavo da Conceição acompanhou todos os patamares do crescimento da modalidade no País e a sua argúcia apurada, aliada a uma licenciatura superior no domínio da sociologia e gestão desportiva, consolidada com um mestrado na área da direcção desportiva acrescentam a um curriculum valioso uma actividade de dirigente com trabalho feito.
No último congresso da FAB houve críticas à presidência do Gustavo da Conceição e algumas delas pertinentes, porque se terá negligenciado nos últimos tempos algumas áreas da formação e um abandono do basquetebol nas províncias. As associações provinciais mostraram o seu desagrado de forma franca e desinibida e a ideia que transpirou para o exterior é que vão ser implementadas as recomendações saídas do congresso de forma a manter o basquetebol angolano no topo em África.
O Gustavo da Conceição aceitou todas as críticas, algumas sugestões o que é revelador do comportamento de quem nos habituou desde os seus tempos de atleta a exemplos de enorme tenacidade, lealdade, combatividade e acima de tudo uma sobriedade de carácter tantas vezes invulgar num campeão.
O basquetebol angolano tem dado ao nosso País uma visibilidade única, melhor a única que certa imprensa quer ver, e por isso há que enfatizar quem o fez elevar. Aqui há tempos teve direito a isso aqui neste espaço Vitorino Cunha, hoje Gustavo da Conceição, porque merecemos exigir que eles mereçam o nosso reconhecimento.

Fernando Pereira
18/5/2011

16 de maio de 2011

APITA O COMBOIO! / Ágora /Novo Jornal / Luanda/ 13-5-2011



“Não existem países subdesenvolvidos, existem países subgeridos” Peter Drucker (1909- 2005)
De forma desinteressada comecei a ver um documentário num canal de satélite de temas históricos. Passados uns minutos comecei a interessar-me pois era um capítulo da série “Histórias dos Comboios” dedicado à introdução do caminho-de-ferro no continente africano.
Já tinha visto alguns capítulos desta série, que sempre se situou num bom nível, mas o que constatei do que vi é que esta era curiosa. Falando de comboios em África, a série, que é uma produção francesa da Pathé, e portanto acima de qualquer suspeita, sentiu-se obrigada a falar do colonialismo europeu. E teve a honestidade suficiente de o fazer com palavras suficientemente claras. Disse que o colonialismo explorou Àfrica de duas formas consecutivas, extorquindo-lhe matérias-primas e vendendo-lhas depois sob a forma de produtos manufacturados. Que os comboios que os europeus introduziram em África tiveram por exclusivo objectivo servir esse derrame de matérias-primas e, para mais foram construídos com material de rebotalho, de tal modo que os caminhos-de-ferro africanos têm doze medidas diferentes, o que de todo impossibilita agora a sua utilização conjunta. Lembrou que os colonizadores evitaram sempre proceder à industrialização dos territórios africanos, a fim de não suportarem a sua eventual concorrência. Por isso deixaram a África, quando foram obrigados a abandoná-la, num estado de total dependência económica.
Foi assim que “História dos Comboios” caracterizou suficientemente a “acção civilizadora” dos europeus em África.
Como esta série era do início dos anos 80, fui a um velho e esfarrapado atlas de África muito minucioso ver as linhas de caminho de ferro que existiam, e de igual forma recorri a mapas recentes para saber que troços de caminho de ferro foram melhorados, alterados, prolongados ou quiçá mesmo construídos de novo. Pouco mais que os mesmos troços, pelo menos em mapas recentes.
Os comboios em África têm traçados completamente diferentes da Europa, da América do Norte e da Ásia. Todos acabam num porto e invariavelmente percorrem no sentido perpendicular ao mar, em direcção ao interior, e quase todas acabam em zonas de produção de minério. Os traçados no resto do mundo são entre cidades para transporte de passageiros e normalmente num percurso Norte-Sul ( A título de curiosidade a India tem 55.000Km de via férrea e cerca de 1.200.000 funcionários).
O actual Caminho de Ferro de Luanda foi inaugurado em 1909 com uma extensão de 479km, e nunca deixou de ser uma linha de indecisões, acabando o seu traçado em Malange, por incapacidade de financiamento para o prolongar até ao Congo.
O primeiro troço é Luanda-Funda em 1888, quando ainda se pensava fazer um caminho-de-ferro a ligar Luanda ao Congo pelo Norte, acabando depois por inflectir para leste.
As peripécias do financiamento deste empreendimento foram motivo de demissões no governo português, falência de casas bancárias, rixas no Chiado com um denominador comum: Insuficiência de verbas para construir a linha de caminho de ferro do Ambaca, depois transformado em Caminho de Ferro de Angola, para aproveitar as iniciais provavelmente.
A construção inicia-se em 1885, tendo os trabalhos sido dirigidos por João Batista Burnay entre 1889-1902.
A esta “tremideira” financeira não é alheia a posição dos Ingleses que entretanto fazem um Ultimatum a Portugal em 1890, relativamente às terras do chamado “mapa cor-de-rosa”, que incluíam a Zambia e o Zimbabwe, ao tempo baptizadas de Rodésia do Norte e Rodésia do Sul, em homenagem ao colonialista Inglês Cecil Rhodes (1853-1902), o administrador e proprietário da magestática British South Africa Company.
Os estudos para a construção do caminho de ferro de Luanda a Ambaca são iniciados por documento régio de 18 de Outubro de 1876, em que é nomeado responsável o eng. João António Bisac das Neves Ferreira.
O engenheiro Neves Ferreira projectou e fabricou-se no local uma ponte perto do ramal do Dondo de 180m que maravilhou alguns engenheiros estrangeiros da obra, que julgavam impossível no ermo que era aquela região construir e implantar no terreno uma estrutura metálica arrojada e segura para o tráfego ferroviário.
Hoje recuperada a linha vai ser certamente um motor de desenvolvimento do interior de Angola, não sendo de negligenciar a sua utilização recorrente no percurso urbano na cidade de Luanda, como um dos transportes de eleição quer nos países desenvolvidos, quer nos países em vias de desenvolvimento, terminologia que substitui “O Terceiro Mundo”, denominação que deve a sua paternidade a Alfred Sauvy.
Fernando Pereira
7/4/2011

Pra não dizer que não falei das flores! / O Interior / 12-5-2011



Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário. / Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável. / Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho o meu emprego/ Também não me importei. / Agora estão-me levando / Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht (1898-1956)


Começo esta crónica com um poema de uma das poucas referências que trouxe da “idade da razão” e que vou mantendo, quase como espólio, nestes anos que preenchem a “razão da idade”.

Guardei sempre de Brecht alguns versos para ilustrar situações e esta “Do rio que tudo arrasta/ Se diz que é violento. / Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem” tem sido a recorrentemente utilizada nas mais variadas ocasiões e, pelos vistos, tem que ser mais lembrada que o cartão de débito ou crédito.

Não vou falar de Brecht, porque, de certa forma, sou demasiado “possessivo” para o partilhar, mas vou dar um pouco de ruído a gente aparentemente silenciada.

Daniel Filipe (1925-1964) foi um dos poetas cabo-verdianos de pouca obra mas profícua e importante para muitos da minha geração. A sua “Invenção do amor” era para muitos de nós “um cartão/ que o amigo maninho tipografou/ por ti sofre o meu coração/ num canto ‘sim’/ noutro canto ‘não’/, como estava no “Namoro” de Viriato da Cruz. Era o livro que dávamos a alguém, esperando receber o seu amor em troca ou, não sendo possível, pelo menos uma atençãozinha de “sua parte”. Ainda hoje tenho um que me devolveram e ainda bem porque já não se encontra à venda em lado nenhum. Há um disco de Mário Viegas, reeditado recentemente em CD, notável pela força do poema, reforçado pela declamação virtuosa e talentosa do actor.

Combatente da ditadura salazarista, anti-colonialista, Daniel Filipe foi cedo para Portugal onde estudou. Preso e torturado pela PIDE, regressa a Cabo Verde onde dirige jornais, morre precocemente, ignorado e esquecido por todos. “Pátria, Lugar de Exílio” é outra das suas obras poéticas de tomo que, de certa forma, me faz lembrar muito dos poemas de outro “espoliado de pátria”, Jorge de Sena.

Poderia estar a escrever sobre troikas e baldroikas mas preferi esforçar-me por me esquecer dos dislates constantes que todos nós vamos quase “catando” e rindo.

Talvez vos surpreenda este texto aparentemente descontextualizado, e acima de tudo as minhas desculpas a Geraldo Vandré por lhe ter “usurpado” o título de uma canção emblemática de contestação à ditadura dos generais, iniciada por Castelo Branco em 1964 no Brasil. “Vem, vamos embora/ Que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora/ Não espera acontecer”.


Fernando Pereira

6 de maio de 2011

História sem Estórias! / Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 6-4-2011




Foi recentemente apresentado em Lisboa o livro de Tiago Moreira de Sá, “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola”, editado pela D.Quixote, que irá certamente dar mais um contributo a um período da história do território que tem sido ao longo dos anos motivo de especulação e opiniões divergentes entre protagonistas, observadores e politólogos, um estatuto melhorado do comum “achólogo”.


Já neste espaço em 2009 tive ocasião de comentar algumas passagens do livro “ Carlucci vs. Kissinger” (Dom Quixote,2008) em que o autor em colaboração com Bernardino Gomes, fez uma busca aos arquivos entretanto abertos pela administração americana à correspondência, memorandos e contactos que se encontravam classificados no departamento de Estado sobre os tempos da revolução portuguesa, da descolonização e consequente independência dos Países africanos de língua oficial portuguesa.

Penso que este “Os Estados Unidos e a descolonização de Angola” feita pelo doutorado em História Contemporânea, Tiago Moreira de Sá, passa por ser um complemento da outra obra, circunscrita apenas ao “dossier” Angola nos anos setenta.

Repito-me quando digo que é excelente que jovens professores universitários, jornalistas ou outros eméritos investigadores de outras áreas, longe das paixões vividas ao tempo, distanciados das questiúnculas internas de Angola, fisicamente sem nunca terem conhecido o território, consigam fazer trabalhos que são indispensáveis para conhecermos realidades que vivemos e que julgávamos ter tido enquadramentos em que as nossas antigas certezas são abaladas pela actual teimosia dos factos.

O livro que li num fôlego é um aturado trabalho de pesquisa não apenas dos documentos da correspondência epistolar, trocada entre vários intervenientes e o departamento de Estado Americano, mas também o recurso a outras obras, algumas já aqui comentadas, como a depoimentos de alguns intervenientes.

O que ressalta do muito que a obra contém é que a história oficial precisa de ser desmontada, e é de certa forma lastimável que certas personalidades envolvidas no processo de descolonização de Angola continuem a perpetuar discursos completamente distorcidos das suas próprias práticas ao tempo. Cito a título de exemplo entre outros, o caso de Almeida Santos, que na sua extensa obra “Quase Memórias” evidencia uma prática que os documentos colocados neste livro permitem ter outra leitura completamente divergente.

O livro não é laudatório para ninguém ou nenhum movimento, nem era esse o objectivo, mas pode permitir que outros factos em Angola possam ser analisados de forma diversa, como por exemplo o enquadramento e as desinteligências entre cubanos e soviéticos em alguns períodos quentes da história contemporânea de Angola.

O que Mobutu pensava de Holden, de Neto, Savimbi e Chipenda. Rosa Coutinho era o “homem dos americanos”, segundo informações do cônsul americano em Luanda. O alinhamento despudorado de Kaunda com Savimbi. A insistência de Almeida Santos em Savimbi para a presidência de Angola. A simpatia de Julius Nyerere pela UNITA e as suas tentativas para afastar Neto da presidência de Angola, tentando que Samora Machel o seguisse. A falta de interesse dos EUA em Angola. As razões pelas quais Mao não queria ligar-se a nenhum movimento que tivesse apoio sul-africano. As posições pró-Unita de Melo Antunes e a sua rápida mudança de tabuleiro. As razões da quebra de apoio à FNLA e à UNITA numa determinada fase. Tudo isto o livro aborda, ainda que ocasionalmente não de uma forma muita exaustiva, provavelmente por critérios que terão a ver com a necessidade de não transformar o livro num “tijolo” sensaborão.

Surpreende-me de certa forma a conclusão que o autor retira do conjunto de documentos, livros, depoimentos e alguma ajuda de certos intervenientes directos como Heitor Almendra, homem forte da conjuntura militar portuguesa em 74/75 em Angola, e que se tem remetido a prudente silencio. Tiago Moreira de Sá afirma categoricamente que a intervenção dos americanos numa primeira fase foi causada pela envolvência dos soviéticos e cubanos, destes pela “solidariedade internacionalista” sem terem consultado a URSS, e esta intervêm porque os chineses se posicionavam para criar tentáculos em África. Os sul-africanos e os zairenses eram trocos, em todo um esquema de intervenções pouco pensadas e afirmadas e perpetuadas no tempo por razões que nada tiveram no seu âmago.

Acho que é um livro essencial para dar novos conteúdos a outras realidades que julgávamos verosímeis, e pode ser mais um instrumento para novas discussões e outros trabalhos que valorizem o estudo da Angola contemporânea, que muito começa a dever a estes jovens investigadores.



Fernando Pereira

30/4/2011
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