9 de abril de 2015

Água de pouca dura / Ágora / Novo Jornal / Luanda 10-4-2015






Um historiador inglês, Nigel Cliff, num livro recentemente traduzido para português com o título “Guerra Santa”, assenta toda a investigação na viagem de Vasco da Gama (um dos estatuados justamente forçados da fortaleza de S. Miguel) para justificar como foram financiadas, programadas e executadas todas as viagens dos navegadores portugueses pelos mares, que depois se soube já antes terem sido navegados por outros.
Este livro é polémico, e só não assumiu foros de maior discussão porque tentou limitá-la a meios muito reservados. Nigel Cliff fez uma análise do que foram as motivações guerreiras dos Europeus em determinadas fases da sua história contra os “infiéis”, e fundamentalmente o papel de determinada burguesia, com uma clara presença judaica, na busca de novos mercados e na procura de matérias-primas mais baratas num mundo dominado pelos mercadores descristianizados. O Cristianismo passou a ser o aparelho ideológico adequado à expansão de novos donos que puseram novos tronos noutros lugares.
Paulo Dias de Novais, fundador da cidade de Luanda, achou que a baía era perfeita para que os barcos se abrigassem de perigos vários. Ao tempo, tinha que se preocupar mais com a rendabilidade dos seus proventos, do que saber se o lugar insalubre onde se fortificava teria água ao longo dos séculos. Novais precisava de produtos tangíveis de algum valor que justificasse que aquele lugar fosse perfeito para trocas de/e com gente.
As cacimbas iam resolvendo mal as necessidades de quem morava e de quem transitava por Luanda até ao início do século XVII. Na ocupação holandesa, os flamengos, em 1645, projetaram uma obra de engenharia, grandiosa para o tempo, que consistia na abertura de um canal abastecedor do Kuanza à capital. Ficaram as boas intenções, embora seja meu entendimento, sem qualquer justificação de caracter técnico, que seria útil fazer do Kuanza uma alternativa ao Bengo, principalmente para abastecimento da cidade que irá crescer em torno do novo aeroporto e nas centralidades de Viana e Luanda sul.
Salvador Correia de Sá mandou construir a cacimba da Maianga, hoje desaparecida no início da subida da avenida do aeroporto, aproveitando a água da vizinha Lagoa dos elefantes, que se alargava até à rua da Samba. Em 1666 o governo central outorgou a Tristão da Cunha (tem direito a nome num largo no centro da cidade da Luanda de hoje) a tarefa de que “velasse pelo concerto da lagôa dos Elefantes”.
O problema de água em Luanda tem barbas, como sói dizer-se, e lá surgiam de vez em quando projetos para trazer águas do Zenza, um afluente da margem esquerda do Bengo, do Lucala, afluente da margem direita do Kuanza e do próprio rio Kuanza, recorrentemente lembrado para ajudar a “matar a sede à cidade”. O poço da Maianga revelava-se com cada vez mais problemas, quer pela insuficiente quantidade de água, quer pela falta de qualidade, “salitrozo e aleitado” potenciador de epidemias.
O governador D. António de Vasconcelos (acho que este não tem direito a permanecer na toponímia da cidade) resolveu fazer estudos para recuperar o plano dos holandeses, e pediu ao Rio de Janeiro um engenheiro. Mandaram-lhe um indivíduo que teria deixado os jesuítas para se dedicar de alma, coração e dinheiro ao projeto. A verdade é que o tempo passava, o dinheiro ia-se gastando e não havia nada de conclusivo. O governador não viu nada feito, e acabou por pagar parte dos trabalhos do seu próprio bolso “por não gravar a Fazenda Real”.
O governador Sousa Coutinho mandou fazer cisternas na fortaleza de S. Miguel e na do Penedo, hoje em ruínas, mas o resultado ficou longe do objetivo.
“Luanda dessas épocas era uma terra de febres malsãs, de disenterias, de surtos epidémicos, uma terra de sede e de doenças, para as quais, por certo, contribuía a minguada e lodosa água das suas fundas cacimbas…”
Em 1813, José de Oliveira Barbosa voltou a entusiasmar-se com o canal do Kuanza, e conseguiu contagiar o Senado da Câmara e o próprio Regente do Reino de Portugal D. João VI. O local era no Calumbo, o que permitiria que chegasse à Maianga por gravidade. Esse entusiasmo deu algum resultado e as obras ainda começaram, mas Luis da Mota Fêo, o substituto de JOB, mandou-as parar pois as finanças da província estavam exauridas perante tão ciclópico empreendimento.
Em 1816 decidiu a Câmara, de acordo com o governador, parar as obras do canal e a cidade continuou a “ sofrer sedes, moléstias e sofrimentos, porque faltava a água…”
Em 1845, na zona dos Coqueiros, abre-se uma nova cacimba por ordem do governador Lourenço Possolo, que é entregue à Câmara, mas nada é minorado e, para além da míngua do líquido, o lixo e os detritos vão-se amontoando. Luanda é uma nitreira a céu aberto. Decide-se adjudicar o transporte de água por barcaças do Bengo, o que se passa a fazer em 1852. Simultaneamente as cacimbas tinham que ser limpas e desentupidas porque apareciam frequentemente mortos lá dentro.
Em 2 de Março de 1889 foi inaugurada, com toda a solenidade, pelo governador-geral Guilherme Brito Capelo (estava na toponímia da cidade até à independência e foi substituído por Kwame Nkrumah) a ligação de água corrente à capital com a captação feita no rio Bengo.
“Ao cabo de 300 anos de sedes, de tormentos e privações, Luanda podia agora beber à vontade, podia banhar-se regaladamente, podia lavar-se, podia, com satisfação, pôr de lado as salitrozas e aleitadas águas dos seus poços e cacimbas”.
Pelos vistos foi “água de pouca dura”, porque o deficiente abastecimento de água à cidade voltou em força na segunda metade dos anos sessenta, no período colonial, e continua a ser um problema mais que recorrente nos dias de hoje.
Fernando Pereira
4/4/2015

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