10 de julho de 2015

“De todos se faz um País” / Ágora / Novo Jornal / Luanda 11-7-2015





“De todos se faz um País”

“Também eu já me sentei algumas vezes às portas do crepúsculo, mas quero dizer-te que o meu comércio não é o da alma, há igrejas de sobra e ninguém te impede de entrar. Morre se quiseres por um deus ou pela pátria, isso é contigo; pode até acontecer que morras por qualquer coisa que te pertença, pois sempre pátrias e deuses foram propriedade apenas de alguns, mas não me peças a mim, que só conheço os caminhos da sede, que te mostre a direção das nascentes.”

“Memória de outro rio”, Eugénio de Andrade.


“De todos se faz um País” de Óscar Monteiro é um livro que suscita uma multiplicidade de sentimentos aos que deram corpo à “Geração da Utopia”, e simultaneamente algum desconforto à geração seguinte, onde me incluo, e onde estão muitos dos que mandam, alguns dos que desmandam, nas emergentes sociedades onde nos inserimos.
Este livro, com prefácio de Artur Santos Silva, e um posfácio excelente de Manuel Rui Monteiro, é uma “quase” autobiografia de um homem que sempre esteve do lado certo da luta, na defesa de valores de independência, liberdade e respeito pelo cidadão enquanto motor do desenvolvimento, e seu único beneficiário num quadro de uma sociedade de cada qual, segundo sua capacidade, a cada qual, segundo suas necessidades.
Óscar Monteiro faz ao longo do livro um trajeto, desde os seus tempos de meninice e juventude no Moçambique colonial, a sua ida para Portugal estudar em 1958, o seu engajamento nas lutas estudantis, na atividade associativa, na “Casa dos Estudantes do Império”, concluindo direito com vinte anos na Universidade de Coimbra. No desfiar de recordações, e de muitas solidariedades e amizades que se perpetuam nos dias de hoje Oscar Monteiro descreve o seu “salto” para o combate contra o colonialismo português, o dealbar de um tempo em que a sua vida se confunde com a luta da FRELIMO, o 25 de Abril de 1974 em Portugal, os acordos de Lusaka, a independência de Moçambique e o apoio à luta do povo angolano e do MPLA na afirmação de um esforço coletivo comum, no âmbito da ex-CONCP (Conferencia das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas) para que a Republica Popular de Angola emergisse como País no contexto das nações a 11 de Novembro de 1975.
A grande dimensão humana do moçambicano, revela-se na forma reconhecida para com todos os que o ajudaram a trilhar as fases de um percurso em que foi protagonista ativo, de um período relevante de lutas contra a potência colonial e concomitantemente pela erradicação do domínio do apartheid na África Austral.
Óscar Monteiro, como outros moçambicanos já o fizeram, deixa o seu testemunho de um tempo de luta por causas nobres, que ajudaram a dignificar os momentos históricos da edificação das novas nações. Era muito bom que todos os protagonistas fizessem o mesmo, para que no futuro não se procure reescrever a história ao belo prazer das circunstâncias.
"Estamos a dar-nos conta de como nos afastámos dos nossos objetivos", declarou em recente entrevista à Lusa. "Cada vez mais estamos a sentir que há alguma coisa que não funcionou", avalia Óscar Monteiro, referindo que "há um fator de humanização do capitalismo que desapareceu e que levou à contração da riqueza". Este não é um problema só de Moçambique, "é de todo o mundo", enfatizou o jurista, abordando a forma como Moçambique evoluiu de um "socialismo na sua forma mais pura" para o capitalismo, "com menos entusiasmo, muita pressa e sem se pensar em todas as consequências".
"O desenvolvimento tem de ser visto a partir do que as pessoas desejam", defendeu, assumindo que este "é um problema não resolvido" e que a Frelimo está consciente de que "as distâncias aumentaram muito mais do que se pensava". Além de "uma diferença grande e crescente entre os que têm e não têm", existe sobretudo "o facto de que os que não têm não terem o suficiente", nem um mecanismo compensatório, como um rendimento mínimo garantido para "comprar a paz social".
Em Moçambique também há apoios aos mais pobres e aos idosos, "mas em certos momentos uma conjugação de fatores leva à perceção de que só alguns é que têm e em alguns casos é fundamentada", referiu, acreditando que "ainda é possível" produzir um sistema "mais regulado e humanizado".
Esta longa entrevista tem destinatários certos, e não só em Moçambique, mas também em Países como Angola, que de certa forma viveu uma luta comum, processos políticos e organizativos semelhantes, e que vive hoje uma fase de capitalismo selvagem mesclado com um ou outro laivo avulso de socialismo.
Óscar Monteiro merece o seu “bocado de pão”, e apesar de ter sido ministro da Presidência, Informação, Administração Estatal, Interior e governador provincial não deixa de alijar as suas responsabilidades, mas alerta que o percurso está enviesado, e urge voltar-se ao primado do homem ser o centro do debate e usufrutuário de toda a riqueza, produzida numa sociedade onde o coletivo se assume como fator decisivo.
O desenvolvimento de África continua a ser um sonho não realizado de muitos, mas seria pelo menos muito bom que não se matasse o sonho das gentes, de um continente que coloca 36% das matérias-primas na economia mundial e que tem apenas um PIB de 3%, segundo dados de credibilidade insuspeita.
Ryszard Kapuscinski (1932-2007) dizia: “ Não importa quantas vezes se cai. O importante é levantarmo-nos e tentar mudar as coisas”. Quando os intelectuais discutiam a globalização, o que se podia fazer para melhorar as condições de vida das pessoas do Terceiro Mundo ele dizia: “ Olhem o que mudou a vida de muitas pessoas em África foi o bidão de plástico, que permitiu que as crianças carregassem água sem a desperdiçar pelo caminho”.

Fernando Pereira
4/7/2015



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