26 de julho de 2008

O Nosso Decatlonista



O nosso decatlonista

Quando, a 6 de Abril de 1896 começavam na Grécia os jogos olímpicos da era moderna, o barão Pierre de Coubertin materializou um sonho, que embora embaciado, de um certo classismo aristocratizante, não deixou de se cobrir de espanto e glória, com a perenidade que já ultrapassou o centenário.
Aproveitando o ensejo de estarmos na antecâmara dos Jogos de Pequim, resolvi escrever um pouco sobre uma figura que foi o primeiro secretário geral do Comité Olímpico Angolano, e figura egrégia no contexto do desporto angolano durante décadas, como praticante, professor e dirigente. Refiro-me ao Fernando Matos Fernandes, com quem tive o privilégio de trabalhar na ex-SEEFD e na zona IV de Desenvolvimento Desportivo da Confederação Africana dos Desportos.
Recuando ao dealbar dos anos 40, vemos o Matos Fernandes como recordista português dos 110 barreiras, 400 barreiras, 400m planos, estafeta de 4x100m, 4x400, altura e no decatlo onde foi campeão por 8 vezes com 6458 pontos, uma marca impressionante para a época. Neste conjunto de disciplinas do atletismo convém salientar que entre 1940 e 1957, não havia quase espaço para a concorrência, pois o então jovem Matos Fernandes, ganhava quase tudo que havia para ganhar. Na disciplina de altura sucedeu no lugar de campeão a outro angolano, ainda vivo, o Guilherme Espírito Santo, que ainda correu e venceu, com Matos Fernandes, o campeonato português na estafeta de 4x100m no ano de 1942.
Por causa deste artigo, tentei recuperar uma caderneta de cromos dos “Ídolos do Desporto”, algo que desconsegui, onde aparecia o Matos Fernandes com a camisola pejada de medalhas, o que para mim com 8 anos era fascinante e permitia todos os sonhos.
Já na segunda metade da sua extensa e brilhante carreira, Matos Fernandes participou em 1952 nos J. O. de Helsínquia, nos 400 m barreiras, onde se ficou pelas eliminatórias e ficou em 16º na final do decatlo, com uns modestos 5604 pontos, muito longe do seu record português. O decatlo é um conjunto de dez provas de várias disciplinas do atletismo, que exige um virtuosismo e um ecletismo só disponíveis a poucos eleitos.
A estrutura física de Matos Fernandes, a sua dedicação ao treino, e outras condições de trabalho, tê-lo-iam guindado a resultados bem diferentes no atletismo internacional. Ao longo de vinte anos de carreira ao melhor nível como praticante, retira-se, e abraça a carreira de treinador, primeiro em Lisboa e depois no Benfica de Luanda.
Com o advento da independência de Angola, Matos Fernandes começa a alijar a sua componente de campo, para se dedicar ao dirigismo desportivo, no âmbito das estruturas oficiais do desporto angolano, nomeadamente no Comité Olímpico, onde trabalhou com os presidentes Augusto Lopes Teixeira (Tutu), e com o José Araújo, o popular “Ben Bareck”, ex-jogador da Académica de Coimbra, que com França (Ndalu), Chipenda e o moçambicano José Júlio, fizeram uma fuga de Portugal, com muitos outros estudantes das colónias portuguesas em 1962, para se juntarem à resistência contra o colonialismo português.
Sobre o Comité Olímpico não resisto a contar uma história curiosa; Perguntei ao Matos Fernandes onde estava um determinado documento, tudo em conversa telefónica, e ele manda-me à 3ª gaveta da sua secretária porque na primeira funcionava a “sede” do Comité Olímpico, na 2ª a “sede” da Zona 4 de Desenvolvimento Desportivo Africano e então na 3ª porque era a que pertencia ao gabinete de apoio do Secretário de Estado, de que na altura Matos Fernandes era chefe de gabinete.
Acho que o desporto angolano vai devendo um pouco a esta gente, que como o Fernando Matos Fernandes, foram cabouqueiros de uma prática desportiva que só se permitiu melhorada por esforços assim, aliado ao enorme investimento que o governo da Angola independente foi fazendo ao longo dos tempos e de excelentes resultados, diga-se em abono da verdade.
Lembro com particular saudade as suas memórias sobre o atletismo “dos anos ontem”, que para as pessoas hoje já são “dos anos antes de ontem”, pois Matos Fernandes já nos deixou há vinte anos. Foi numa dessas conversas que ele me disse que tinha sido o fundador da “filarmónica benfícólica”, que podia bem ser uma coisa do tipo claque organizada, com outros contornos também ligados ao filantropismo e ao apoio aos atletas de todas as modalidades do clube, ao nível da sua vida quotidiana, quando ainda vinha longe o profissionalismo.
Fazer esta crónica tem particular significado, já que tive oportunidade de lembrar o primeiro atleta olímpico angolano, uma pessoa de carácter, e um eterno apaixonado pela prática da cultura física.

Fernando Pereira
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