5 de junho de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (3) / Novo Jornal / Luanda 5/5/2015






Continuo a descrever a Angola nas histórias do António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração colonial, que merecem uma leitura atenta de um tempo que foi correndo nos anos 40,50 e 60 na então “província de Angola”.
Dizia uma vez alguém sobre Angola do antanho, que bastava publicar os documentos da administração colonial, sem precisar de comentários para dar a verdadeira imagem dos tempos de um período que muitos hoje não gostam que se chame colonialismo!

“O Ambaquista era uma figura imprescindível da Angola de outras eras e que chegou aos nossos dias e nos anos 70 praticamente já quase tinha passado à história.
O Ambaquista, é definido, em primeiro lugar por ser natural de Ambaca, atual concelho de Ambaca, com sede em Camabatela, e essa figura para ser conhecida usava uma caneta pendurada ao pescoço, suspensa por um baraço, e um tinteiro de chifre preso à cintura e debaixo do braço ou presa na mão, uma pasta que continha folhas de papel, para utilizar quando necessário. Tratava-se pouco mais ou menos de um indivíduo, normalmente mal letrado e que recorrendo as aldeias de diversas áreas administrativas, junto das povoações nativas, oferecia os seus conhecimentos para passar ao papel, exposições, requerimentos, queixas diversas, reclamações, etc. Cobrava os serviços de acordo com a sua importância, e que ele próprio encaminhava para a entidade que entendia competente.
Grande parte era gente oriunda das Missões católicas ou outras e que, muitas vezes, mal falando e muito pior escrevendo português, se tornavam ininteligíveis. Primeiro porque procuravam utilizar palavras arrevesadas e difíceis, nos lugares mais impróprios.
As composições, e até, às vezes utilizando e mencionando artigos da Constituição dos Códigos Penal e Civil, como que a alardear ciência. Era um autêntico doutor de lareira, que sempre que possível usava óculos de vidro de garrafa, para lhe dar um ar de intelectual. Se terminada a exposição se lhe perguntava o que escreveu, ele não sabia explicar.
Ambaca foi uma grande região que desde o séc. XVII teve o privilégio depois da grande batalha de Ambuíla, de se tornar o centro para onde convergiam todas as iniciativas de ocupação e desenvolvimento e por isso aquela que maior influência colonial criou: primeiro as feiras, depois os conventos e as igrejas influenciando as populações de uma região que era prodigiosa na agricultura e pecuária, avultando a produção de café, a borracha e o gado bovino.
Há séculos que a escrita e a leitura eram correntes entre eles, e como já o dissemos a igreja católica sempre aliava a propagação a fé à escolarização e ao ensino das artes e ofícios. O Ambaquista distingue-se dos outros à vista desarmada. Nestas lonjuras, na época em que Ambaca ficava muito longe, pela imagem do tinteiro de chifre e da caneta pendurada no pescoço, estes rapidamente se espalharam por todo o norte de Angola.
Foram apesar dos seus defeitos, por deficiência de formação elementos muito úteis para quem dos seus serviços precisava e cujas exposições dos problemas passava do oral a escrito. Trouxe, por outro lado, alguns problemas às autoridades especialmente às administrativas de quem faziam queixas que de outro modo não chegavam ao conhecimento dos superiores, enunciando as injustiças e arbitrariedades. Os custos diversos para os Ambaquistas foram como uma mina de diamantes. Façam lá ideia do que era um Ambaquista invocar os artigos do Código Civil ou Penal perante os analfabetos e o conceito que passaram a ter entre as populações que recrutavam os seus serviços. Os Ambaquistas evoluíram até no vestuário começando a apresentarem-se bem vestidos e calçados. O tinteiro e a caneta transitaram para os bolsos e as queixas, os requerimentos, e exposições passaram a multiplicar-se tal como o milagre do pão das bodas de Canãa.
Por último gostaria de dar três exemplos do modo de escrita dos Ambaquistas para se aquilatar da sua "verborreia".
Primeira carta- dirigida a um funcionário superior de passagem pela terra

- Viva a República!... Viva. O Estado curpurativo que bom da Nassão.
Meu amigo... Meu amore? Exulentissimo Senhore
Nu servisse e traqualmente do decreto artigo 265 vem o queixose que do nomi e tradissoes Bernardo Maria Dalmeida a depor para vossinselencia li ter amão um imprejo em Luanda qe o nomi de seu pai é legitimi António Maria como precetua u mesmo artigo 265 e verso com inclinato neste concelho, poisque no gado que tinha, mais vacas suas tistimunhas deu duenssa de mosca que o dito empregu du artigo 265 me podia aliviar incargos.
Asseite meu amigui Exulentissime Senhore a bam da nassão.
Saúde e fartenidade du quem sassina Bernardo Maria Dalmeida pur sabere lere e contare
Di juelhos aos pés da crus
A. Bernardo Maria Dalmeida

Nota-se nesta carta que o ambaquista não estava seguro da sua escrita e já a segunda demonstra outros conhecimentos e saberes.

Exmo. Senhore
Em primeiro de tudo disculpa-me de tão atrevimento importuná-lo nos números a-fazeres de Vossa Exa..
Tem primeiro a presente carta com calor e escana minha situação me obriga a escrever consideravelmente a Vexa para fim de Vexa levar a minha perturbada vida um pouco mais além? Digo e juro pelos maiores doutros mundos, e até a todos os santos, que tenho uma velhinha tia que diariamente além feitos para o pão nosso de cada dia nos dá hoje.
Por mais esse pedia a Vexa venha uma mais com qualquer coisa do meu vencimento que me dê favorável.
Assisto, então espero submeter a uma interrogação a negativa para confiança positiva.
De sou beijos sei que muito negarão esta meu situação pedindo.
O Deus o guarde dois corações.
Preconceite em conceito sem mais, recordo-me em espaço com quanto há dignidade de Vexa muito obrigado.
João Augusto

Tive na minha posse diversas cartas que guardei e que hoje não sei onde param, á exceção destas duas que hoje vos dou a ler. Tinham as características e o vocabulário dos Ambaquistas de nascimento e profissão que definiam bem a sua mentalidade. Não fujo, porém, à tentação de transcrever uma requisição de medicamentos a qual tinha que levar o visto do administrador do concelho, para ser satisfeita e que foi elaborada por ajudante de agente sanitário, que rezava assim:

Requesição

0,5 litro de Mercúrio
0,5 litro de tintura de ódio
5 maços de gazia
3 garrafas de água oxisnada
3 rolos de adezível

6 de Maio de 1965
( Segue-se a assinatura)

E ainda esta...

Buraco di Fumassa, dia do Lua Nova do mês do Chuva deste ano

Meu quirido Bastião.
Sou eu qui te estar e escrever.
Eu num querer te dizer tua pai moreu, por aqui meu pessoa num querer dar desgosto, mas moreu mesmo parava de onra. No nosso tera estar passando coisa esquisito, carcura qui pessoas qui nunca ter morido estar a morer agora.
Muer do ti Paurino já pariu minino, mas ti Paurino estar sconfiado num ser dere por qui ti Paurino ter perna de pau e minino nascer com dois perna mesmo verdadeiro.
Tónico querer casar com Mariquita mas os pai num querer por qui eres afinar ser pirima e pirimo e pirimo com pirima num pode, sair firio analfabeto.
Firio de pai João ter engorido sete e quinhento, já cagou cinco escudo, fartar meio cinco.
Os branco agora estar a fazer rua nova. Ter passeio dum rado e ter passeio doutro rado e o rua passar mesmo no meio.
Branco ter esperto no cabeça.

Escurpa o caligrafia mas eu andar bem rouco e os parava não sair bem.
Escurpa num mandar vinte escudo mas a carta já fechou.
Escurpa num por ponto finar mas a tinta já acabou.

Teu pirimo
Djongo

Para terminar transcrevo o final de uma carta enviada a um amigo que termina assim:
Saudades para todos sem mais adeus manda sempre aquilo que não precisares
6 de Julho de 1952
Assinado Diamantino

È com estes pedaços ligados ao longo dos tempos que se faz a história de uma nação.”


Fernando Pereira
31/5/2015
Related Posts with Thumbnails