28 de setembro de 2012

VITÓRIA DA LIBERDADE DE IMPRENSA!/ Ágora/ Novo Jornal 245 / Luanda 28-9-2012



Atrasado, mas muito a tempo de comemorar 40 anos de um acontecimento com consequências quase letais, em que alguns estilhaços subsistem no quadro da geopolítica internacional.
17 de Junho de 1972, 2h e 30 da madrugada, de um sábado que iria ficar célebre na história dos Estados Unidos da América: cinco homens penetram no Watergate Office Building, em Washington, e entram na sede do Comité Nacional do Partido Democrático que ali se encontra instalado. Levam “walkitalkies”, ao tempo ainda não proliferavam os telemóveis, que os ligam a um sexto elemento, colocado no edifício fronteiro e que lhes controla os movimentos, informando-os da possibilidade de ocorrer algo de anormal no exterior do Watergate.
Trata-se de um assalto. Com fins que se descobrem bastante suspeitos, os assaltantes são surpreendidos pela polícia. Os cinco homens fotografam documentos e colocam microfones que iriam permitir escutar as conversas ali havidas. Não são gatunos usuais. Vestem elegantemente e dispõem de máquinas e aparelhos extremamente sofisticados. Por outro lado comportam-se como amadores, neste estilo de coisas, acobardados ao primeiro sinal de perigo.
Presos iriam ser julgados. Como habitualmente, os jornais delegam para estes casos de reduzida importância, os “fait divers” de uma grande metrópole, os seus repórteres estagiários. É aí que rodarão o ofício e adquirirão experiência. O “The Washington Post”, por exemplo, envia para o julgamento Bob Woodward, um jovem com apenas nove meses de casa.
É Bob Woodward quem se senta na sala de audiências pronto a “cumprir calendário” e prepara-se para redigir uma notícia de poucas linhas. A audiência começou de forma estranha: os réus não tinham tido oportunidade de escolher advogados, ficaram-se com os “oficiosos”, mas curiosamente na sala encontravam-se advogados de elevado “pedigree” em termos de influência, que se diziam ali estar como “observadores”.
Quando o juiz principia o interrogatório, um dos presos diz-se de profissão “anticomunista”. Confessa-se depois “ técnico de seguros” e na resposta seguinte, “entorna o caldo” denunciando todo o jogo: trabalhara recentemente na Agência Central de Inteligência (CIA). Woodward suspeita que há qualquer coisa de estranho naquele grupo que foi apanhado a violar um escritório.
Regressou ao “Washington Post” e coloca estas e outras dúvidas aos seus chefes de redação. Junta-se-lhe um jornalista mais experimentado, Carl Bernstein, tido pelos seus próximos como um infalível “pescador “ de informações.
Este processo é um símbolo da liberdade de imprensa, em que dois jornalistas lançam o repto a uma nação e aceitam investigar as suas ruas, aprofundar os casos, interrogar as pessoas e as instituições até descobrirem o significado integral de Watergate.
Sabe-se depois o que diariamente, ao longo de meses, foi o trabalho desgastante, mas valoroso destes dois Davids desafiando Golias. E de como Golias continuamente procurou esquivar-se à fisgada certeira. Desses cinco homens iniciais, que mais não eram senão peões de um xadrez muito complexo, Woodward e Bernstein vão paulatinamente localizando mais nomes, referências, dados a reunir, a ligar e interligar num majestoso puzzle que acaba por atingir os homens de confiança do presidente e, finalmente, o próprio Nixon que se vê constrangido à demissão pública.
É deste modo que se descobre o aparelho re-eleitor de Richard Nixon: há já muito tempo usava e abusava das técnicas mais sujas para vencer o adversário político, neste caso o Partido Democrático, aqui encabeçado por MacGovern. Todos os processos eram julgados próprios, da calúnia à violação de residências, de escutas telefónicas à sabotagem de meetings. Tudo organizado por verdadeiros tecnocratas do ofício, que se esmeravam no artifício da mentira, da falsificação, da deturpação.
A América estupefacta começa por não acreditar, mas tem de aceitar a força dos argumentos apresentados pelos dois jovens jornalistas.
Argumentos irrefutáveis que provam que o banditismo pode ascender também à presidência.
Fernando Pereira
24/9/2012

26 de setembro de 2012

Revista "O CHÁ" nº1/ Luanda / Agosto de 2012





Nota: Esta revista editada em Luanda é a primeira da editora Chá de Caxinde. O meu texto é apenas um dos muitos de uma revista cuidada em termos gráficos e de conteúdo, à venda num quiosque perto de si.


Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias nasceu a 26 de Novembro de 1948 no navio “Pátria”, entre Lisboa e o Lobito, e recém-nascido foi para Nova Lisboa onde os seus pais desenvolveram atividade profissional durante muitos anos.
Atribuindo o sentido da música a sua mãe, a sua influência de alguns ritmos africanos vem de um colega, o nº 26 do então Liceu Norton de Matos, no Huambo, e da escuta atenta do grupo Ondingo, dedicado à divulgação do folclore local e a conjuntos como o “África Ritmos” e o “Conjunto do Ferrovia”. Começou muito novo a tocar em grupos de baile na então Nova Lisboa. Num concurso disputado no Atlético em 1964, “Os Zorbas” com o Fausto e o Rufino (Mike) à viola, o Bino na bateria, o João Leitão no baixo e o Fernando Campas Nunes nas teclas arrebataram o primeiro prémio. A continuidade do Fausto, um indivíduo de muita iniciativa, foi nos “Rebeldes” um grupo já mais estruturado e de música Pop. Fausto, que ao tempo era conhecido por Carlitos, tocava nos “Rebeldes”com Vicky Paes Martins, Matos Carlos, Manuel Luis e Toni Matos. Foi o conjunto que mais furor fez ao tempo na cidade, e abandona-o no fim dos anos sessenta (1968) quando embarca para a então Metrópole para estudar no ISCPU (Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina).
Em Lisboa começa a aproximar-se de Adriano Correia de Oliveira, a quem tinha sido apresentado por Manuel Freire, José Afonso, Francisco Fanhais e José Jorge Letria, remanescente dos chamados “baladeiros” da música portuguesa saídos do anonimato pelo desempenho no “Zip-Zip”, programa que revelou o nosso Ruy Mingas.
Empenhado no movimento estudantil é eleito em 1972 presidente da direção da Associação de Estudantes do ISCPU, mas por informações da PIDE o ministério da Educação não homologa o seu nome sendo o normal vetar toda a lista. Apesar do bom aproveitamento académico, Fausto é mobilizado para o exército colonial e, não se apresentando, iniciou assim um período de clandestinidade no interior de Portugal.
Fausto, na esteira de outro homem do Huambo, Luís Cília, que esteve exilado desde 1964 em França, começou a participar ativamente em movimentos antifascistas e anticolonialistas e passou a fazer da canção um instrumento de protesto contra a guerra colonial e uma intervenção ativa pela liberdade e pela melhoria das condições de vida da população portuguesa.
Começou a musicar alguns poetas proscritos pelas autoridades como foi o caso do Viriato da Cruz, António Jacinto, Mário António e Daniel Filipe entre outros. O “Namoro” do Viriato, o “Comboio Malandro” do Jacinto e “Poema da Farra” de Mário António, ainda hoje cantados por pessoas de gerações que já nem se lembram, felizmente, como eram as coisas há quase quarenta anos, em que só à surdina se podia trautear certas músicas e certos poemas.
Com o advento da democracia em Portugal, em 25 de Abril de 1974, Fausto Bordalo Dias multiplica-se em cantos livres e espetáculos a acompanhar Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Vitorino, Sérgio Godinho, etc. A cantiga passou a ser uma arma de intervenção na consciencialização das pessoas na construção de uma democracia sem o obstáculo da guerra colonial e da opressão ideológica e política.
Em Angola reúne-se com Ruy Mingas, Zeca e Adriano e fazem um memorável canto-livre, em Abril de 1975, numa Cidadela a rebentar pelas costuras, numa ação de apoio ao MPLA. Quando fazem uma sessão na cantina da universidade, junto à ermida da Nazaré, a FNLA, acolitada por alguns colonos enfurecidos, cercam a zona e só por sorte todos acabaram por sair ilesos, tendo sido então pedida a sua expulsão do território.
Com o correr dos anos fomo-lo vendo participar invariavelmente associado a movimentos cívicos, e a “fabricar” canções que deram uma vivacidade a momentos de grande fulgor das pessoas que empenhadamente se organizavam na defesa da democracia participada.
Foram entretanto saindo discos de “intervenção” com uma riqueza instrumental que era inabitual, pelo facto deste tipo de canção não possibilitar muita disponibilidade para um trabalho aturado, fruto do imediatismo a que estavam sujeitas as histórias que urgiam ser “cantadas”. Na sequência do “Fausto” (1970) surgem, no período subsequente ao 25 de Abril de 1974, o “Pró que der e vier” (1974),trabalho quase todo feito no seus tempos de semiclandestinidade, “Bêco com saída” (1975) e “Madrugada dos Trapeiros” (1977), trabalhos miliantes.
Com a dificuldade que os cantores de intervenção vão passando junto da rádio, Fausto, que entretanto se licenciou em Ciências Sociais e Políticas, faz sair provavelmente o seu trabalho menos conhecido, mas de grande qualidade: “História de Viageiros”, um trabalho feito com base na “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, que serviu de tema musical para o grupo de teatro “A Barraca”, na peça “ Fernão Mendes…”
Este trabalho acabou por ser o catalisador do “Por este rio Acima” em 1982, o álbum primeiro da trilogia sobre a diáspora portuguesa. Para muitos o melhor disco de sempre da Música Popular Portuguesa. Provavelmente um álbum digno de fim de carreira, algo que é no mínimo discutível quando se tem trinta e quatro anos como o Fausto tinha ao tempo, com tanto para dar à música que se faz em português. A música portuguesa nunca mais seria igual a partir deste disco que é a suprema obra de um privilegiado.
Por causa do “Por este rio Acima”, os álbuns seguintes foram passados para um plano secundário apesar da extraordinária qualidade. O “Despertar dos Alquimistas”(1985), “Para Além das Cordilheiras” (1987), “Crónicas da Terra Ardente” de 1997, o segundo disco da trilogia sobre a diáspora portuguesa, a “Ópera mágica do cantor maldito”(2003) e “Em busca das montanhas azuis”(2011), trinta anos depois de iniciar a trilogia da diáspora, de acordo com os prazos de 10 em 10 anos que a si próprio se impôs, foram os trabalhos em que se empenhou para além de múltiplos projetos com muitos artistas.
Importa referir que em 1989, em colaboração com o músico angolano Mário Rui Silva, que primorosamente o acompanha à viola, fazem um trabalho publicado entretanto, “A preto e branco”, com sonoridades africanas em que Fausto revisita os seus tempos dos catorze aos vinte anos, onde reaprende músicas esquecidas e recupera sonoridades já no baú das suas recordações de musicalidades perdidas num Huambo distante.
“Fausto simbolizará, como Herberto Helder ou José Régio…, a alma por onde todo o nosso mundo de sensações e sentimentos navega nas horas que a perenidade do nosso coração determina”.

Fernando Pereira
20/8/2012

21 de setembro de 2012

LUANDA AO PERTO / Ágora / Novo Jornal 244/ Luanda 21/9/2012





A cidade não pode ser considerada como uma obra do homem, se negar as leis da Natureza pois só estas permitem vida.
A humanidade nunca se poderá libertar dos condicionalismos físicos impostos por determinados princípios já reconhecidos pela Ciência.
Constitui, portanto, um falso cientismo entender o progresso como ilimitado, capaz de destruir e substituir as leis da Natureza. Um lápis cairá sempre que o largarmos no ar, um rio correrá sempre, da serra para o mar, no âmbito da energia e da matéria, tudo se vai transformar e nada se irá criar.
A cidade está sujeita as mesmas leis, que governam o espaço físico em que está inserida. Os seus habitantes nunca poderão fugir ao ritmo, aos contrastes, à dinâmica própria dos seres vivos.
Assim, como numa cultura agrícola o teatro biológico e físico em que ela se processa limita a produção, mesmo que se continue a introduzir cada vez mais energia exterior ao sistema, também numa cidade há limites ao crescimento que não podem ser ultrapassados sem que se verifique a diminuição da qualidade de vida e a perda da dignidade dos seus habitantes.
O crescimento urbano não é apenas um problema de demografia e concentração de pessoas mas é, também caracterizado pelo aumento da área geográfica da cidade, ou pelo maior volume dos seus edifícios e pela maior extensão das infraestruturas. Estão, portanto, em jogo aspetos diferentes intimamente relacionados mas que, por vezes, poderá, cada um, por si só justificar o crescimento. É o caso da cidade que se destrói para se reconstrói tendo em mira apenas o crescimento do sector industrial da construção civil.
Tudo isto vem a propósito da maneira como em Luanda se está a processar o crescimento urbano.
A cidade “espiga”, parecendo que colocam nos alicerces Cialis ou Viagra, surgindo inúmeros edifícios de grande altura, destacando-se da casaria existente, e destruindo a “leitura” do perfil característico de muitas delas.
Esta febre de construir em altura, utilizando materiais e equipamentos sofisticados de elevado custo, de difícil e cara manutenção, substituindo os rebocos exteriores por incríveis vidros espelhados, complicando com varandas e saliências a limpeza das fachadas só para que, de facto, resulte um ar moderno e atual, constitui por um lado, um índice de mediocridade cultural e, por outro, um grave prejuízo social, económico e ecológico.
Luanda tem um passado, possui uma forma, é fruto da atividade de muitas gerações e constitui a expressão mais acabada de toda uma “ruralidade” envolvente.
Não são apenas meia dúzia de monumentos que são dignos de proteção por serem os únicos marcos históricos e culturais que vale a pena conservar, também as ruas, os largos, os bairros e os jardins fazem parte da “alma” da cidade e constituem no seu conjunto um valor histórico e artístico inestimável.
Os que nasceram na cidade ou vivem há muito integrados numa vida urbana consistente conhecem bem esses valores e sofrem quando as imagens da sua infância, a harmonia das formas dos diferentes conjuntos, a escala dos volumes e dos espaços livres que são o seu quotidiano são destruídos.
Esta destruição tanto pode ser a simples supressão de casas, árvores, e espaços característicos como a introdução de corpos estranhos no tecido urbano. Corpos com estranhas formas e volume monstruoso como são esses edifícios colossais que surgem todos os dias na nossa cidade.
Como qualquer eco sistema a cidade servirá tanto melhor o homem quanto mais diversificada for nas suas funções e completa nas suas estruturas. Será na diversidade, na complexidade e no contraste entre muitos dos seus componentes, mesmo que a “ideia” que preside à sua permanente géneses seja clara e simples, que se perpetua a sua permanência e se garanta maior segurança e melhor qualidade de vida aos seus habitantes.
A escala, a proporção e a harmonia da cidade têm como único padrão ecológico possível o homem. Os monstros estão condenados.

Fernando Pereira
17/9/2012

14 de setembro de 2012

"Era uma vez um cambista"/ Ágora / Novo Jornal 243 / Luanda 14-9-2012




Marcelo Caetano foi o ministro das colónias do governo português que inaugurou em 29 de Junho de 1945 o novo Porto da cidade capital de Angola.
Era uma velha aspiração das gentes de Luanda a existência de um cais acostável que acabasse definitivamente com a necessidade dos barcos ficarem ancorados no centro da baía, com o transbordo de pessoas e mercadorias a ser feito por pequenos barcos que acostavam em cais de madeira situados entre o espaço que foi o porto pesqueiro, até ao fim da década de sessenta, em frente ao largo Saidy Mingas e as pomposamente designadas “portas do mar”, paredes meias com o renovado edifício dos Correios.
Marcelo Caetano, de fraque e chapéu alto, desce do “Mousinho”, um velho paquete português das carreiras coloniais, e descerra uma lápide alusiva ao ato. Marcou o fim de quase quinze anos de estudos, financiamentos, projetos, que tinham emergido concomitantemente com o “Acto Colonial” de 8 de Julho de 1930, decreto 18570, que foi o mais aviltante instrumento constitucional para todos os cidadãos das então colónias portuguesas.
O projeto do Porto de Luanda foi tecnicamente dirigido pelo professor do Instituto Superior Técnico Afonso Cid Perestrelo. O projeto de arquitetura do edifício que alberga as “Novas Instalações Portuárias de Luanda, com Alfandega e Serviços Aduaneiros” e o largo fronteiro, é um trabalho tipo “português suave” desenvolvido pelo arquiteto Paulo Cunha, num estilo tão ao gosto oficial do Estado-Novo. A torre sineira, ou do relógio, é da autoria de Galhardo Zilhão.
Antes desta remodelação profunda que se operou na Marginal ainda se podiam ver alguns poucos ferros carcomidos pela ferrugem que eram sinais de lugar de acostagem de barcos antes da edificação do Porto de Luanda. Ao tempo circulava um comboio e eram visíveis carris nos anos sessenta entre o Hotel Presidente e a Ermida da Nazaré.
Ao tempo, o governador-geral de Angola era o comandante Vasco Lopes Alves. Nada teria de extraordinário se não fosse a descrição feita por Marcelo Caetano que se dizia seu amigo: “Homem notavelmente inteligente, era indolente, porém. Ia despachando os papéis que os serviços lhe submetiam. Mas dificilmente tomava uma iniciativa e não era homem para inovações. Diziam que o seu lema era navegar na vida sem fazer ondas… À parte isso, foi excelente companheiro e dedicado colaborador. A maior parte da sua carreira tinha decorrido em Angola onde tanto ele como sua mulher - a boa e extravagante Ângela-eram conhecidíssimos de todo o mundo e contavam amigos por toda a parte.” (Marcello Caetano, As Minhas Memórias de Salazar, Verbo, Julho de 1977). Apetece-me dizer que com amigos destes…
Na segunda metade dos anos setenta circulava despreocupado em Lisboa na rua do Ouro, antiga via privilegiada de negócios, câmbios, mercado de ações e outras movimentações financeiras, que ontem como hoje sei existirem por ouvir falar disso a outros. Era bem visível o efeito da nacionalização da banca, seguros e casas de câmbio em Março de 1975 e as marcas ideológicas “disputavam-se” nas paredes através de palavras de ordem que o tempo foi apagando da memória coletiva das pessoas. A determinada altura olho para o que foi a loja de câmbios que julgo que se chamava Pancada Moraes e vejo a montra do que em tempos era um “quase relicário” de notas, moedas e medalhas, substituídas por artesanato diverso. Até aí nada de extraordinário, mas de facto nunca mais me esqueci do nome mais feliz que um estabelecimento comercial poderia ter: “Era uma vez um cambista”. Um registo comercial de grande dignidade e de uma argúcia notável. A casa teve uma duração efémera, mas nunca mais me esqueci do nome e do que foi a sua história. Por acaso acho que hoje, sem esse nome, o lugar vende pins de frigorífico com várias alusões a Lisboa e santas diversas ou talvez panos da louça com o galo de Barcelos e garrafas de vinho do Porto marado.
As malhas que o Império teceu!
Fernando Pereira
16/8/2012

7 de setembro de 2012

TOADA/ Ágora/ Novo Jornal nº 242/ Luanda 7/9/2012





Acabei a minha pausa, merecida, diga-se em abono da verdade, e eis-me no regresso coincidente com o rescaldo das terceiras eleições gerais no País.
Não quero deixar de sublinhar que estas eleições terão definido um marco importante no futuro próximo, na construção da sociedade democrática que se vai instalar em Angola.
O MPLA ganhou, como se esperava, mas quer a UNITA, quer a CASA-CE tiveram um comportamento digno, que lhes dá argumentos supletivos para participarem ativamente no enriquecimento de uma Angola democrática e em liberdade. Antero Quental (1842-1891), escritor e poeta português, escreveu: "A república é, no Estado, liberdade; nas consciências, moralidade; no trabalho, segurança; na nação, força e independência. Para todos, riqueza; para todos, igualdade; para todos, luz”, e a democracia enquanto realidade política tem que passar a fazer parte do quotidiano da população angolana e dos seus eleitos.
Marcada pelas circunstâncias em torno da venda da sua televisão pública (RTP) poder ser feita a grupos privados, onde aparece um putativo grupo angolano, alguma comunicação social portuguesa, alguma gente nas redes sociais e algumas eminências pardas da política portuguesa lá foram dizendo que se preparava uma fraude gigantesca e que as eleições iriam ser uma “fantochada”. Não aconteceu nada de especial e os pequenos problemas que pontualmente aconteceram, são mesmo inexpressivos perante um processo eleitoral que se revelou o de melhor resultado de todos os que se realizaram no País.
Vou recordar, para avivar a memória das pessoas, que no então Zaire, hoje Congo democrático, Mobutu foi reeleito com 98% dos votos expressos, numas eleições em 1970. O método de eleição era o seguinte: havia dois cartões nas assembleias de voto, um vermelho e outro verde; quem quisesse votar contra Mobutu levava o vermelho e colocava-o na urna, ao contrário levava o verde, não podendo haver votos brancos no pleito eleitoral.
Em Portugal, no tempo de Salazar, era habitual haver a famosa chapelada, que era só e apenas a substituição de uma urna selada cheia de votos pela urna onde se despejavam os votos, e a verdade é que os números eram à medida, e os votos dos abstencionistas e dos mortos ainda nas listas contavam como voto a favor da União Nacional fascista.
Para os muitos que falam de fraude, recomendo que tentem explicar-me como consegue prevalecer nas eleições autárquicas, em algumas freguesias e municípios de Portugal, ou nas eleições para delegados distritais e nacionais de partidos do arco governativo, o chamado “crime perfeito”. Uma fraude difícil de combater que consiste na entrega do boletim de voto com a cruz previamente feita. Os votos das eleições autárquicas em Portugal são da responsabilidade dos municípios. Exemplo: uma autarquia tem que mandar fazer 8.000 votos para 6.000 eleitores e naturalmente manda fazer numa gráfica da sua confiança; para além disso, pede uns votos a mais, umas poucas centenas, que não entram no registo contabilístico do município. Uns dias antes, o presidente da autarquia chama alguns “duvidosos” e pergunta-lhes a intenção de voto. Com a subserviência habitual, o eleitor diz logo que “lá em casa todos votamos em si”, ao que o presidente diz que “ aquele favor não está esquecido, mas como na sua casa há quem eu desconfio que não vota em mim, só tenho a certeza se lhe der estes oito votos marcados para você distribuir lá por casa” e passa-lhe para a mão os boletins com a cruz devidamente feitinha, despedindo-se dizendo-lhe “no dia seguinte às eleições traga-me os oito votos brancos que lhe vão dar na assembleia pois na urna coloca estes”; “Assim ficamos todos sem desconfiar de quem quer que seja”.
Isto funciona na perfeição e não há qualquer possibilidade de ser denunciado dado o caracter sigiloso do ato eleitoral e, embora repetindo-me, é frequente ver acontecer isto na Europa primeiromundista.
Jean Jacques Rousseau (1712-1778) escreveu no “Contrato Social » :”Uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”.
Como diria o poeta, “atrás de tempos vêm tempos e outros tempos hão-de vir” e por isso vamos ver o que desejamos saudar para o futuro!
Fernando Pereira
3/9/2012
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