23 de dezembro de 2015

Desporto por linhas entortadas / Novo Jornal / Luanda 23-12-2015



Desporto por linhas entortadas
Faleceu recentemente o professor José Esteves, uma figura incontornável na pedagogia e na sociologia do desporto que fala português.
Pessoa de grande dimensão humana e muito arreigado a princípios de democracia e liberdade, José Esteves assumiu na ditadura um combate permanente, o que lhe valeram vários castigos, um dos quais ter sido obrigado a lecionar em Luanda, no Liceu Salvador Correia em 1949 e 1950.
Da sua experiencia saiu um conjunto de textos onde sintetiza a pungente realidade da colónia no dealbar dos anos 50, onde o racismo e a consequente segregação social eram evidentes, e assumia maior evidência perante o olhar de quem foi coagido a trabalhar em Angola.
Partilhei com ele alguns momentos, e uma das histórias que contava era sobre uma das muitas conversas que manteve com o sacerdote e antropólogo Carlos Easterman, em Sá da Bandeira (Lubango); Ter-lhe-á perguntado quantas “assimilações” tinha havido na Huíla desde que o “Estatuto do Indígena”(1921) tinha sido instituído. Carlos Easterman respondeu: “Umas sete ou oito”. E depois acrescentou:” Mas este ano parece que não haverá nenhuma. O administrador que há poucos dias encontrei, casualmente, já me foi dizendo que não estava na disposição de continuar a diminuir a mão-de-obra indígena, cada vez mais necessária e procurada…”. Os assimilados podiam, por exemplo, adquirir propriedade e não eram obrigados pela autoridade a trabalhar em obras públicas. Porém, tinham que prestar o serviço militar e trabalhar para o serviço publico, apresentar formação escolar em português, comprovar bens e manter uma vida cristã.
Uma das coisas que o surpreendeu em Luanda foi que a filial do “popularíssimo” Sport Lisboa e Benfica ( Sport Luanda e Benfica) não admitia praticantes negros, algo que só acabou já no fim da década de 1950.
Deixa publicado um trabalho excecional: “O Desporto e as Estruturas Sociais”, um estudo brilhante sobre a ligação do desporto à sociedade e a sua interação com a realidade social e política. Um livro de leitura obrigatória, embora o seu enquadramento histórico corresponda a todo o seculo XX. O “Racismo e Desporto” foi um livro de grande impacto no fim dos anos 70, e recordo com apreço que me autorizou a copiá-lo integralmente para o Boletim Desportivo editado pelo CNDI da ex-Secretaria de Estado de Educação Física e Desportos, no dealbar dos anos 80.
Um estudo interessantíssimo saído recentemente no domínio da intervenção política no desporto é o do brasileiro Marcello Bittencourt, “Jogando no Campo do Inimigo: Futebol e Luta política em Angola”. Este texto faz parte de um trabalho maior em que o autor participa como coorganizador de uma coletânea partilhada com Victor Andrade Melo e Augusto Nascimento: “Mais que um jogo: O Esporte e o Continente Africano” (2010).
Em Luanda o desporto constituiu-se como um espaço de negociação entre a população colona e estratos da pequena burguesia crioula, que criaram os seus clubes como a Liga Angolana, o Grémio Luso-Angolano e mais tarde o Clube Atlético de Loanda, fundado em resposta à discriminação existente no Clube Naval.
Em Luanda, como refere Marcello Bittencourt, o campeonato local juntava clubes de brancos, como o Benfica, o Sporting ou o Futebol Clube de Luanda, o clube de mulatos, o Atlético, e o clube dos contratados, o Ferroviário do Bungo, onde os negros jogavam ao lado dos brancos pobres, filhos dos trabalhadores do caminho-de-ferro.
Nos subúrbios de Luanda subsistiam ligas de futebol separadas do universo do colono e com as quais as pequenas burguesias africanas mantinham uma relação de controlo associativo.
Curiosamente o atletismo, sobretudo as corridas, prática que não exigia material específico ou o desenvolvimento de uma técnica apurada, foi uma das modalidades que mais rapidamente integrou elementos de grupos socialmente segregados.
Porque o texto é um conjunto de evocações, vale a pena reproduzir a experiencia e a surpresa do repórter do jornal desportivo Goal ,no seu relato em 1950, de um jogo de um “campeonato indígena de futebol” que decorria nos campos da Boavista e da Exposição Feira (Hoje na zona do Bungo e do Miramar respetivamente).
O campo de jogo, para espanto do repórter, estava marcado, as balizas tinham redes e a assistência era superior à que comparecia habitualmente no estádio municipal dos Coqueiros.
A entrada era gratuita: “ A nossa deslocação tinha em vista dois objetivos bem determinados: em primeiro lugar, havia interesse em conhecer das possibilidades dos grupos indígenas, sua capacidade de organização e sentido desportivo; em segundo lugar, como girava a orgânica do campeonato, valor real das equipas e o conceito formado pelo indígena relativamente à prática do desporto como meio de desenvolvimento físico” Conclusão: “Esperávamos muito pior. No jogo entre o Atlético de Icolo e Bengo e o Futebol Clube do Porto Malanjinos, o árbitro e os fiscais de linha foram pescados entre os assistentes. Muitos dos jogadores jogavam descalços. A taça do campeonato em disputa, designada Taça Francezinhos, havia sido oferecida pela Empresa dos Tabacos de Angola”.
Os jogos, considerou o repórter, eram fracos tecnicamente e taticamente, mas ainda assim há “uma noção muito apreciável de conjunto e cada um dos elementos constitutivos da equipa sabe sempre o que lhe cumpre fazer”. As “torcidas” eram “pitorescas”!
No campo da Boavista tudo era semelhante. O recinto possuía uma tribuna de honra coberta por folhas de palmeira. Uma das características destas equipas suburbanas, registou o jornalista, foi que “quase todas são homónimas das que disputam o Nacional da 1ª divisão na Metrópole”, o que assinalava a circulação de referências e informações que ultrapassavam em muito o âmbito do subúrbio e que evoluíam pelas vias criadas por um sistema de relações urbano.
As autoridades coloniais, sobretudo a partir da década de cinquenta e seguintes, começaram a olhar para estas práticas desportivas autónom,as, separadas social e geograficamente das populações colonas, com uma atenção inédita, na sequencia dos problemas de gestão social que se multiplicaram neste período.
Em Angola continuaram a realizar-se, de modo mais ou menos informal, campeonatos suburbanos, durante a vigência da administração colonial. Neste sentido, inspiraram e ajudaram a concretizar algumas das “expectativas de modernidade” (Ferguson) de parte da população urbana e suburbana das maiores cidades.
Durante décadas estas competições, mais ou menos informais, fizeram parte de um processo de construção comunitária repleto de tensões e conflitos. A apropriação do desporto, nomeadamente do futebol, afirmava-se como um elemento da relação das populações com um conjunto de hábitos sociais modernos e urbanos.
Fernando Pereira
20/12/2015


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