20 de novembro de 2009

Esgravatar II/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 20-11-09



Esgravatar (II)
Tentava tanto quanto possível não usar, mas por vezes, invocando superiores interesses de alguma coisa, lá tinha que participar no uso da gravata, que posso dize-lo, nem o nó sei fazer, pedindo sempre ajuda a alguém.
O hábito é tão limitado que certa vez num jantar no Panorama, na circunstância da assinatura de um acordo de cooperação com a então URSS, no domínio da Educação Física e Desportos, eu apareci de fato e gravata, sapatos a brilhar, e quando me vou preparar para sentar nos momentos que antecedem o jantar, reparei que me esquecera de colocar as meias, pois não era hábito usá-las; Quedei-me de pé até irmos para a mesa, onde a toalha poderia ocultar os meus tornozelos desnudados, e sempre a puxar as calças para tentar tapar os sapatos. Inventei uma desculpa, para não ir à discoteca, e lá me pirei do repasto, que não estava a correr bem.
Num desses jantares de fim de trabalhos de assinaturas de tratados, houve um que por muito que viva nunca esquecerei. Era a assinatura do acordo bianual de cooperação com a RDA, e o jantar final foi no Costa do Sol. Levei gravata, fato, meias, enfim ia “formatado” para a ocasião. O Rui Mingas ia cumprindo cabalmente as suas obrigações de bom anfitrião, e em determinada altura eu fiz uma coisa que raras vezes faço, porque sinceramente não tenho jeito rigorosamente nenhum: contei uma anedota!
A intérprete ia traduzindo o meu português para o alemão, e o Presidente do INDER da RDA ia ouvindo. A anedota era típica das do Reader’s Digest, empresa que me dá uma certa alegria saber estar à beira da falência, por antipatias ideológicas já antigas.
” No Muro de Berlim estavam duas crianças, uma de cada lado; A do lado ocidental todos os dias dizia: Não tens carros bons, não tens brinquedos, não tens casas aquecidas, etc. ao que a do lado oriental replicava que não tinha desemprego, tinha saúde e ensino gratuito, etc.. Isto repetia-se até que um dia a criança do ocidente trouxe laranjas, e começou a dizer: Não tens laranjas, não tens laranjas, ao que o outro meio embatucado replicou: Tenho Socialismo. A criança do ocidente chega a casa e conta ao pai, e o pai diz-lhe: Diz-lhe que hás-de ter socialismo. No dia seguinte ei-los no muro e voltou a ladainha da véspera com o ocidental a dizer que não tinha laranjas, o outro a dizer que não tinha socialismo, o de Berlim ocidental a lembrar-se o que o pai disse: Hei-de ter socialismo, ao que o de Berlim oriental com um ar triunfante replicou: Quando tiveres socialismo não tens laranjas!!”
Escusado será dizer qual foi a reacção da intérprete, porque ela nem sabia se havia de reproduzir o que eu havia contado, perante o olhar malandreco do Sardinha de Castro, Paulo Murias, Espírito Santo e o riso diplomaticamente contido do Rui Mingas. A verdade é que o convidado aceitou com disfarçada fleuma, mas não deixou de me explicar as virtudes do socialismo na RDA, o que foi muito incomodativo diga-se em abono da verdade. Vinte anos depois da queda do muro, gostava de perguntar aos visitantes se vem laranjas todos os dias!
Já que se fala de indumentárias e acordos, fui por vezes advertido, ainda que com a sua proverbial bonomia, de que deveria ser mais formal no vestir quando havia visitas ao ministério, por parte do Rui Mingas, e tudo girava em volta da” torturável” gravata.
A minha convicção é que se banalizou o uso do fato, e as características do clima africano desaconselham o seu uso quotidiano. Obviamente que não gostamos de ver um locutor na TV em mangas de camisa, mas já não me escandaliza que um repórter de rua vá fazer o seu trabalho de forma mais informal, sem que para isso seja negligenciada a sua apresentação.
Dizia um amigo, quadro dirigente de um ministério, que saiu uma circular a recomendar o uso generalizado do fato e gravata, e o paradoxal é que havia esgotos a céu aberto à entrada e as casas de banho exalavam um fedor, que nem o ar condicionado dos gabinetes conseguia dissipar. Uma questão de prioridades julgo eu!
Desculpem a esgaravata dela, mas o comentário do leitor não me deixou indiferente, e aproveitei a boleia.

Fernando Pereira
5/11/09
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