24 de fevereiro de 2017

Contos velhos, rumos ainda mais velhos! / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 24-2-2017



Contos velhos, rumos ainda mais velhos!
Luanda transformou-se numa cidade sem identidade e isso é o pior que se pode legar aos vindouros.
                Todas as urbes procuram preservar o conjunto edificado que foi unindo gerações e que são a “marca de água” de uma cidade! Luanda com as suas administrações e o dinheiro facilmente conseguido fazem exatamente o contrário.
                Não é uma situação nova, aliás vem do estertor do período colonial, mas nos últimos tempos, antes da “míngua” que se adivinhava, o que aconteceu à cidade foi um verdadeiro flagelo.
                Vamos dar uma volta ao passado numa viagem por textos de quem por cá andou no antanho!
                Luanda pela pena do médico alemão George Tams, que a visitou em 1841: “ Luanda apresenta-se-nos com um aspeto maravilhoso:_ É edificada em forma de anfiteatro, erguendo-se desde a base até ao cume dos montanhosos socalcos da costa, a qual neste sítio desce até próximo à superfície do mar. A grande porção de casas edificadas ao estilo europeu, muitas das quais espaçosas, umas com telhados vermelhos, outras azuis, os muros caiados de branco ou de amarelo, as lindas torres das igrejas, o palácio do governador e o vizinho forte, excitam grandemente a surpresa do estrangeiro”
                Mas não deixava o aludido médico alemão de escrever: “O ar é tam mao e comunica aos alimentos taes qualidades mortíferas que os que comerem deles logo que ali chegarem, devem ficar certos que serão vítimas da sua imprudência, ou pelo menos que adoecerão gravemente:”
                O Dr. Tams deslumbrou-se com o lugar das Quipacas, lugar que ficava perto do lugar onde se construiu a estação de Caminho-de-ferro, e que se chamará assim já que era um lugar aprazível, onde construíram espaços de lazer gente endinheirada (Kipaka em quimbundo significa dinheiro): “ Neste sombrio retiro, os cantos de numerosas espécies de cigarras ressoavam à tarde, e os seus agudos sons tam penetrantes eram neste profundo silêncio, que se podiam ouvir claramente a mais de uma milha de distância. Aqui um italiano que havia enriquecido com o tráfico da escravatura, tinha formado, uma linda casa de campo, no meio de um intensíssimo pomar, para onde convidava diferentes habitantes de Luanda, os quais nunca deixavam de aproveitar-se daquele deleitoso passeio.” Tams referia-se a Antonio Paris, napolitano que morreu em Luanda com 86 anos em 23 de Dezembro de 1846. Veio para Angola em 1821 com mais 212 compatriotas, condenados a degredo por tribunais napolitanos e a pena era cumprida ao abrigo do acordo celebrado em 11/12/1819, entre o rei D. João VI de Portugal e o rei das Sicílias. (Este conjunto de referencias vem no livro, “Subsídios para a História de Luanda” de Manuel da Costa Lobo, Lisboa-1967). Refira-se que este Paris teria sido dono do famoso Hotel Paris, demolido para dar lugar ao Palácio da Palmeira, onde esteve a Lelo, e que hoje está sentenciada a ter em breve o mesmo destino.
                O livro de George Tams, “Visita às possessões portuguesas na Costa Ocidental de África” descrevia as refeições: “ às oito horas, todos nos reunimos ao almoço, que geralmente se compunha de mãos de vitela cozidas, vagens de pimenta fervidos em água; ou de caracóis cozidos e algumas espécies de marisco. Vinho tinto de Lisboa acompanhava a comida e no final serviam o chá.
                Ao meio dia, tomávamos outra refeição que consistia de queijo e cerveja. Às seis horas era servido um variado e suculento jantar, consistindo a sobremesa duma abundante escolha de frutos, sendo principalmente de amêndoas de caju, laranjas e goiabas.” Situamo-nos em 1854!
                Já que hoje este artigo é quase feito de citações não deixa de ser curioso que em fins do seculo XVIII, os cidadãos de Luanda eram conhecidos por “Volantes”, palavra que no entender de Teixeira de Vasconcelos sintetizava “quão diminutas eram as ligações que existiam entre eles e a terra…”! Já era assim!
                Elias Alexandre da Silva Correia, que esteve em Luanda no segundo quartel do seculo XVIII, escreveu na sua “História de Angola” algo sobre hábitos de grandeza que mais de dois séculos depois mantem-se perenes: “ O Luandense detesta os sufrágios da miséria e prepara um trem de vida, tanto mais pomposo, quanto mais iniquo. Impõe respeito no seu trato doméstico; enche a sua mesa de bocados desusados na sua criação; adopta para o vestuário o uso de custosas alfaias e ricas joias, como espadins de ouro, cravejados de pedras preciosas, fivelas de ouro e de pedras, bons relojios, abotaduras de importância, ricas sedas, etc; faz garbo do desperdício: brilha no jogo com magnanimidade e combate, vício por vício, o dos seus émulos.”
                No contexto que se vive na Luana de hoje seria de todo urgente que se fizesse uma reflexão sobre o que seria a cidade no futuro, sem a megalomania que é uma prodigalidade do angolano, nem abandonada em tempos de crise acentuada.
                Luanda merece este debate e sobretudo que se procure salvaguardar a réstia de passado e que a cidade seja recriada para que seja vivível, e deixe de ser insalubre no que se respira, no que se negoceia, no que se comenta, no que se publica e fundamentalmente no que se decide.
                Baudelaire dizia: “As cidades mudam mais depressa que o coração dos seus habitantes”!
                Nota: Este texto tem muitas transcrições do livro “Subsídios para a história de Luanda” de Manuel Costa Lobo, editado em Lisboa no ano de 1967.

Fernando Pereira

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