11 de junho de 2011

ATRÁS DE TEMPOS VEM TEMPOS E OUTROS TEMPOS HÃO-DE VIR! / Ágora / Novo Jornal 177 / Luanda/ 10-6-2011




Carta de Armindo Monteiro, ao tempo Subsecretário de Estado das Finanças a Oliveira Salazar escrita de Luanda em 4-8-1930. A. M: foi posteriormente Ministro das Colónias do “Império”!
“Lá acabou por fim esta tremenda navegação l. Ontem de manhã o "Quanza" fundeou em frente desta feia e árida Luanda - onde não lobriguei ainda um canto de verdura. Às dez horas já o soba da ilha, fardado de almirante, de general e de músico, profusamente condecorado, desfilava diante o navio, à frente de uma numerosa armada de "dongos", entre apitos estridentes e alta gritaria (…)Passada a revista à guarda de honra (Companhia indígena) que, deve dizer-se, executou mal as vozes e estava longe de se apresentar com correcção - o governador tomou lugar num automóvel à frente de uma fila de sete ou oito carros; parou o cortejo diante do famoso "Palácio do Governo" - construção do gosto das muitas que, nos meados do século XIX, por graça dos brasileiros de torna-viagem, se multiplicavam em Portugal: lisa, sem harmonia nem imponência de linhas, sem relevo, sem grandeza. O Palácio do Governo Geral de Angola podia perfeitamente ser a Câmara Municipal de Freixo-de-Espada-à-Cinta. À porta fazia a guarda de honra uma Companhia de Marinheiros, limpos, correctamente alinhados, imóveis. Confesso-lhe que os vi com comoção e orgulho. Dentro das salas destinadas à posse, acumulava-se uma multidão diferente de todas as que tenho visto: tive a impressão de que todos os barbeiros das aldeias de Portugal se tinham reunido aqui.
Eu fiquei instalado no rés-do-chão do Palácio; disponho de um quarto grande e de uma ínfima sala de banho: aposentos de burguês pretensioso e pouco amigo da água. É tudo assim cá no "Palácio"! Palácio, é claro, em atenção às cubatas que enxameiam nas voltas de Luanda. Qualquer pessoa de boa condição e fortuna tem aí melhor e maior conforto.(…) Só tenho visto aqui duas coisas realmente boas: as louças e as roupas de mesa e cama. O resto é de qualidade banal e de gosto inferior. Os jardins (que me tinham sido anunciados como uma oitava maravilha) são pequenos, raquíticos, sem sombras, sem verdura, sem cor. Como se explica que até o Pierre Daye se tenha extasiado diante deles? Começo a acreditar que a África deforma a visão e os sentimentos.
Dei, em automóvel, uma volta por Luanda. (…)A grande massa das coisas que se vêem é confrangedora. A própria natureza fez desta costa uma linha árida. Os campos são secos, as árvores, nodosas e torcidas, parece que crescem de raízes para o ar; as palmeiras chegam a fazer vista de bonitas. A terra é vermelha, abrasada.
E que dizer-lhe da gente? Má de aspecto, má de espírito. Cheguei ontem: tive três conferências com chefes de serviços. Pareceram-me pessoas sãs - mas vivendo sob o pavor da intriga que vem da sombra, não se sabe de onde. Ficou-me, dessas conversas, uma impressão mais que de indisciplina, de inversão geral. É opinião de gente com quem falei que a direcção dos chefes seria razoável se tivesse a possibilidade de dominar a reacção dos subordinados - que se organizaram para mandar. A impressão que se colhe é esta: a colónia está governada por sovietes secretos de primeiros e segundos-oficiais. Tudo o mais é aparência. Se algum dos filiados prevarica, todos os outros estão ilimitadamente obrigados a ajudá-lo. De maneira que são dos últimos dias os seguintes factos: desfalque de centenas de contos na recebedoria de Luanda, com desaparecimento de livros de escrita; peculato na Direcção da Fazenda; desvio de importância (talvez 115 contos) de bilhetes de Tesouro emitidos, com roubo de documentos e livros essenciais. Sabe-se que a província é percorrida por estrangeiros que, de máquina fotográfica em punho, se documentam sobre os nossos minérios. Parece que, durante os últimos acontecimentos, fizeram farta colheita de elementos.
Até agora a nota que mais me feriu foi a dos degredados, que enxameiam por estas ruas. Chega-se a ter a impressão de que, aqui e ali, dominam a população. É horrível. No Palácio vivem cercados por eles. Cruzam-se com os pretos com uma facilidade que desgosta. Contam-me que há por aqui produtos dessas ligações que são um peso-morto formidável na vida da província: às taras dos pais aliam todas as tendências inferiores da raça das mães. Desnorteiam o povo, indisciplinam o preto. Apontam-nos como a casa-mãe de toda a desmoralização corrente. Por isso os melhores elementos da terra clamam em coro que os façam sair daqui - que tirem de cima de Angola a ignomínia de servir de penitenciária. O governador que isso conseguisse alcançaria, de golpe, um grande prestígio.
De tudo o que tenho visto e ouvido concluo que fomos recebidos com hostilidade por muitos, com indiferença pelos outros. Fez-se contra os que chegavam uma viva campanha. Dos que vêm estudar diz-se que se tem passado a vida nisso e que, incessantemente, aos estudos velhos se sobrepõem estudos novos, sem resultados sérios. Das próprias brigadas, aos quatro-ventos se apregoa que são constituídas por falhados das colónias. As autoridades novas são olhadas com inimizade: vêm da metrópole, filhos de uma ditadura de que aqui não se pode dizer bem.
A princípio os jornais recebiam hostilmente o nome do governador.
Um jornal qualquer, todos os dias publicava sobre ele uma pequena local: "sabemos mais que o Sr….também foi comandante da canhoeira tal"; no seguinte: "conseguimos saber que o Sr…. foi administrador da roça X". Mas ontem a Província de Angola trazia um artigo de pacificação e expectativa. O director (que nada dirige, segundo consta) veio oferecer-me os seus préstimos e as suas colunas. “

Fernando Pereira
4-6-2011
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