12 de março de 2011

Berrida em câmara lenta! / Ágora / Novo Jornal / Luanda 11-3-2011




No dealbar dos anos setenta o nosso grupo do bairro da Maianga ia invariavelmente, todas as noites de sábado e tardes de domingo, assistir aos jogos nas barrocas que havia em frente ao Palácio da Cidade Alta.
Era o nosso lugar de eleição, partilhado por centenas de pessoas que só divisávamos no escuro pela beata acesa ou em sonoridades variadas quando havia golo ou falhanço. Essa clandestina bancada era para um conjunto de “capitães da areia” um verdadeiro lugar de culto para toda a sorte de patifarias com que nos divertíamos nesses tempos em que nem se pensava que poderia vir a haver televisão no País e da internet nem se falava. Queríamos lá saber do Gomes,o meu amigo Manecas , Alves, Garrido, Benje, Carmona, Justino ou outros. Objectivamente o que queríamos era ver se conseguíamos a proeza de promover um brilhante basal de pancadaria entre os assistentes. A verdade é que à custa de atirar alguns torrões de terra vermelha e umas maçãs da Índia gamadas nuns quintais que havia no caminho, conseguimos assistir a deliciosas discussões, que não raras vezes acabavam em bulha e a solicitar a presença da Polícia Militar Colonial para apaziguar os ânimos. O nosso grupo saiu sempre incólume destas rixas pois aparentávamos ser meninos educados.
Convém dizer que quando vinham clubes portugueses jogar aos Coqueiros, e os preços dos bilhetes eram proibitivos para ver jogos de sonâmbulos, já que normalmente eram no início da preparação do campeonato de Portugal, todos os clandestinos eram forçados a expedientes bem mais complicados, porque as autoridades coloniais enxameavam de polícias toda essa zona, não permitindo qualquer veleidade aos utilizadores habituais do terceiro anel dos Coqueiros, onde tinha lugar cativo.
Uma das vezes que isso aconteceu manifestamo-nos contra o aparato policial que as forças coloniais nos impuseram nas barrocas, para nos impedir de ver um jogo entre as duas equipas de proa do regime, o Sporting de Portugal e o Benfica de Lisboa, manifestação que só deu resultado para conseguirmos ver a segunda parte quando o poderoso contingente de seis polícias e dois cães algo adormecidos se retiraram, depois de ordem superior. Na altura manifestávamo-nos por motivos algo pueris, mas também mais tarde ousei manifestar-me em circunstâncias que me deram gozo por motivos mais sérios, mesmo quando levava uns pequenos “moscardos”, porque na realidade nunca fui muito ousado para me chegar muito próximo das forças de repressão e tento afastar-me o suficiente para que elas não se chegassem a mim.
Há uns tempos estava numa casa que tinha um parque de estacionamento para uma biblioteca pública que funcionava das 9 às 18h; fora desse período estacionava o carro já que não havia problema algum. Os vizinhos do prédio faziam o mesmo, e durante uns tempos não houve problema algum pois para além de sermos conscienciosos, e com medo da multa, todas as manhãs tirávamos o carro antes das nove horas.
Aquilo tinha um portão de correr que estava sempre aberto, e o guarda avisou-nos várias vezes que não toleraria durante muito mais tempo a presença dos nossos carros, sem que nos desse uma explicação no mínimo aceitável para que não os colocássemos lá. Um dia consumou a ameaça e com tiques de títere resolveu fechar o portão perante a estupefacção de todos. Durante uns tempos lá vinha o guarda fechar o portão a rir-se para os poucos que sem querer olhavam para ele, até que houve um que se lembrou de comprar uma lata de tinta dos grafitteiros e escrever no portão branco imaculado: “O guarda-nocturno é corno”!
No dia seguinte quando foi abrir o portão viu toda a gente a rir e partilhou o riso, mas quando se deparou com a realidade ficou possesso e pior ficou porque não podia fechar o portão senão apareceriam em letras garrafais a frase assassina.
Nunca mais o portão foi fechado, apesar de o terem pintado de novo!
Em jeito final recordo que no último dia do ano de 1972, na capela do Rato, em Lisboa, um grupo de católicos fez uma vigília contra a guerra colonial e a repressão que então se fez sentir sobre os clérigos presentes e os cidadãos ligados às juventudes católicas e ao GRAAL, serviu na perfeição os desígnios para aumentar a visibilidade interna e externa da falta de liberdade e da repressão em Portugal e nas colónias.


Fernando Pereira
7/03/2011
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