3 de outubro de 2009

Há cada latitude.../Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 3-10-09



No dealbar dos anos 70, era habitual na Europa os universitários fazerem o Inter-Rail, uma viagem pelos países que quisessem, com um bilhete que dava para um mês.
O bilhete era barato, mochila às costas, tenda partilhada com companheiros, um fogão camping gás, uma frigideira, uma leiteira, um prato e uma caneca de alumínio, um par de calças de ganga, várias t-shirts, um camisolão de lã, uma toalha, muita papa Cerelac, Nestum e leite condensado Moça, muito pouco dinheiro distribuído por tudo o que era buraco e uma bolsa de cabedal ao pescoço onde colocávamos o Passaporte e o cartão internacional de estudante.
As viagens de comboio são fascinantes, e quando são longas permitem toda uma série de sentimentos cruzados, aliados à contemplação, que o balançar sereno das carruagens nos traz num estado de completo desprendimento. Recordar Agatha Christie nos seus incontornáveis ‘4.50 from Paddington”, ou “Murder on Orient Express”, Zola em “La Bête Humaine”, “Desert Rails” de L.P. Holmes, Sepulveda no seu brilhante “ Patagónia Express”,Tolstoi, Remo Ceserani, Machado de Assis, Eça de Queirós entre tantos outros, é fazer o mundo com bonitas palavras escritas sobre carris.
Nessa viagem dormíamos nas viagens durante as noites nos comboios, nos lugares mais incríveis das carruagens, nas salas das gares, nos jardins públicos, às vezes nos parques de campismo e muito ocasionalmente nas pousadas da juventude. Não vou descrever minuciosamente essa viagem, mas que de facto deu para fazer coisas que nunca mais na vida tivemos oportunidade de fazer, durante vinte e poucos dias, num ambiente de grande companheirismo, de enorme solidariedade, e num querer conhecer o mais possível uma Europa, que para nós angolanos, era ao tempo de igual fascínio o que o Dubai é hoje para certos angolanos!
Nos canais de Amesterdão, estávamos sentados num cais a ver o movimento dos barcos e a comermos a nossa frugal refeição diária, e naturalmente falávamos alto sem cuidados com a linguagem. A determinada altura uma senhora que nos estava a observar, pergunta-nos num português quase perfeito, de onde éramos; Respondemos que éramos de Angola, e muito surpreendidos ficámos quando ela disse que conhecia muito bem Angola, e pelo que descreveu conhecia-a bem melhor que alguns de nós. A sua ligação a Angola, justificava-se pelo facto do irmão ser padre no Chinguar, tendo-nos contado algumas peripécias das suas visitas em Angola, acompanhamento adequado e sempre lembrado opíparo lanche, que nós já não tínhamos desde que arrancámos de Coimbra.
Rapidamente esquecemos este lanche, porque a viagem teve peripécias mais interessantes para recordar, mas a verdade é que este lanche provou ser providencial uns anos mais tarde, noutras circunstâncias e noutras latitudes.
Fiz pelo País, múltiplas viagens na discussão da carta do desporto angolano, e no estatuto das associações desportivas angolanas, acompanhado com o meu amigo, António Sousa Santos, insigne mestre do desporto que Rui Mingas em boa hora recrutou para a SEEFD. Uma dessas viagens foi ao Huambo e ao Kuito. No Huambo estávamos no hotel Almirante, um verdadeiro exemplo kitsch e a tresandar a Lifebuoy em todos os objectos, andares, ancoras, bombordos e estribordos, numa decoração delirante e a provocar uma hilaridade impossível de conter. Saímos de manhã cedo, “depois da camioneta de carreira”, porque assim se saberia se haveria impedimentos na estrada, e eis-nos num Fiat 128 a caminho do Kuito, tendo-nos limitado a beber um café e umas bolachas de qualidade duvidosa; Passámos Tcikala-Tchiloango, a pedra do Alemão, onde reza a história que se terá suicidado um alemão aí residente quando soube da derrota da Alemanha na 2ª guerra, Katchiungo, e numa curva apertada, por baixo de uma ponte do CFB, eis que aparece o nome da terra: Chinguar. Conheço algumas pessoas ilustres dessa terra como o meu amigo Orlando Ferreira Rodrigues e o Carlos Correia, físico, catedrático da Universidade de Coimbra, e acompanhante de viola do Zeca Afonso, mais conhecido por Bóris, pelas semelhanças com o actor britânico Boris Karloff ( 1887-1969).
Nesse dia lembrei-me do lanche de Amesterdão uns anos antes, e fiz questão de visitar o padre, que perante uma reserva inicial, ficou encantado ao saber em que circunstancias tinha conhecido a sua irmã. O padre Arnaldo convidou-nos para um lauto pequeno-almoço, que destoava do quotidiano daquele tempo, em que ele dizia que só não podia ser melhor, porque na semana anterior as “gloriosas Faplas tinham surripiado umas galinhas do galinheiro da paróquia (sic)”. Encheu-nos o carro de iguarias, como cestos de morangos que carregámos no regresso ao Huambo, e ainda tive o prazer de ouvir os agradecimentos do motorista ao padre, de forma reconhecida e repetida: “Muito obrigado camarada padre”! Passei por lá algumas vezes e sempre partilhámos o que havia para comer, e trocarmos conversas interessantes, o que não é fácil em mim dado alguma formação assumidamente anti-clerical.
Sei que o padre Arnaldo já morreu há muito, mas o Chinguar deve-lhe muito e deixou muitos amigos entre toda aquela gente, como posso testemunhar pelo conjunto de pessoas que sempre o relembram com palavras de saudade e embevecimento.
Amesterdam, foi uma das músicas míticas de Jacques Brel, que se fosse vivo teria feito em Abril deste ano oitenta anos! Também não o esquecemos!

Fernando Pereira
28/09/09
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