19 de maio de 2017

Preconceitos da Memória / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 19-05-2017





Preconceitos da Memória
Num recente artigo escrito nesta rubrica regular sustentei que a criação do ensino superior nas colónias não se terá cingido apenas a critérios de desenvolvimento, mas também a uma “feira de vaidades” entre figuras gradas do regime colonial!
                Quer Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, quer Venâncio Deslandes governador geral de Angola em 1961 e 1962 tentaram ser os “pais da criança”, e a verdade é que por causa destes Estudos Gerais Universitários de Angola é que ambos se queimaram politicamente, o suficiente para terem sido demitidos das suas funções pelo sibilino António Salazar, mestre em colocar uns contra outros para seu proveito.
                Havia por parte dos colonos uma antiga reivindicação da criação de uma universidade em Angola, naquele sonho de secessionismo que a minoria branca acalentava, estabelecendo como paradigma a África do Sul
                O governo concentracionário de Lisboa, aliado ao corporativismo elitista dos poderes instalados nas universidades da então “Metrópole,” não dava qualquer alternativa a uma abertura de ensino superior nas colónias.
                As razões eram evidentes, tal a sobranceria com que os habitantes das colónias eram olhados pelo poder central, mesmo os membros da pequena comunidade branca. Havia também a necessidade de se dar instrução q.b., para evitar o questionar a tacanhez que dominava o quotidiano intelectual do Portugal salazarento.
                Apesar das reticencias de Salazar, o decreto-lei nº 44530 de 21/8/1962, do Ministério do Ultramar, institui os Estudos Gerais Universitários de Angola e Moçambique que tem a sua complementaridade no decreto-lei nº 44530 de 21/8/1963 que promulga o seu regime de funcionamento
                Curiosamente a” criação dos Estudos Gerais em Angola e Moçambique, frequentados maioritariamente por brancos, não fez diminuir a saída deste território ultramarino para a “metrópole” (estudo de Ermelinda Liberato), e comprova-se que em 1960/61 havia 1867 alunos “ultramarinos”, em 1962/63, 2006,1965/1966, 2133 e 1967, 2311.
                O princípio que norteou os EGU está bem plasmado na informação confidencial do João Pereira Neto, funcionário superior do MU que acompanhou a missão de instalação dos EGUs que recomendava que os cursos a ministrar se limitassem aos dois primeiros anos, para evitar que o “convívio fraternal com os colegas da Metrópole” se perdesse, e assim se corroessem os “fundamentos e significado da Unidade Nacional”.
                Adriano Moreira, segundo Pereira Neto, teria manifestado sempre a ideia que os EGU em Angola nunca deveriam ser instalados em Luanda, já que era uma cidade como “ponto de atracão de correntes migratórias”, antro de divertimentos noturnos, “cabaré inclusive”, foco de subversão estudantil por excelência, entre outros argumentos que hoje se revelam pueris! A história poderia ter-se repetido como farsa, porque os argumentos de Adriano Moreira, foram exatamente  os mesmos que utilizou D. João III de Portugal em meados do seculo XVI, quando transferiu definitivamente a Universidade de Lisboa para Coimbra, para evitar que os estudantes se confrontassem com novas ideias trazidas por marinheiros e embarcadiços que faziam então da capital portuguesa um dos maiores portos do mundo, num tempo em que a Europa começava a sair do “período das trevas”, espaço ideológico dominado pela Igreja  Católica e a Inquisição, e em que a “Reforma” enquadrava novas ideias.
                Os cursos tinham que ser apenas técnicos, e Nova Lisboa (Huambo) e Sá da Bandeira (Lubango) eram os lugares preferidos por Adriano Moreira para a instalação dos polos universitários, argumentando razões para promover o desenvolvimento das cidades e regiões circundantes.
                Nova Lisboa representava aos olhos do poder uma alternativa ideal a Luanda porque era uma cidade “calma no que respeita(va) a diversões e paixões politicas”, e com “duas grandes massas populacionais: Uma considerável população branca por um lado, e uma maioria de rapazes de cor formados nas missões protestantes de outro”
                Ao invés Sá da Bandeira tinha tudo para as coisas correrem mal, segundo o documento confidencial do inspetor Pereira Neto, já que tinha “sido palco de explosões de violência racial e ressentimento por parte dos europeus relativamente aos africanos, constituindo deste modo um ambiente pouco propício à miscigenação”. Propunha-se apenas a criação de Ciências Pedagógicas, e nenhuma outra escola que pudesse suscitar “atitudes menos corretas da população em relação a jovens universitários negros”.
                De facto, são surpreendentes os argumentos plasmados nestes relatórios, o que de certa forma evidencia o caracter racista da cidade de Sá da Bandeira, que a par de Moçâmedes eram no dealbar dos setenta do século passado as cidades africanas com mais população branca que negra, o que não deixa de ser absurdo.
                Em Sá da Bandeira foi instalado o embrião de uma futura faculdade de letras e de ciências pedagógicas, no Huambo os cursos de veterinária, agronomia e silvicultura, e em Luanda instalaram-se as ciências, engenharias, medicina, mais tarde economia e nada mais porque a aversão de Salazar às ciências sociais estendia-se aos seus colaboradores próximos.
                Evitaram-se os estudos humanísticos com o argumento que inspiravam “especulação política”, criadora de um “proletariado intelectual”, “responsável por grande parte das revoluções modernas”. O Direito, relegado a “vicio nacional”, não poderia sequer ser fomentado.  (JPN, documento confidencial). 
                Prevaleceu a vontade do novo Ministro do Ultramar Peixoto Correia e do governador Silvério Marques em detrimento da vontade de Adriano Moreira, ficando Luanda com a parte de leão das faculdades do que passou a ser em 1968 a Universidade de Angola, hoje Agostinho Neto.
                Em 1968, um grupo de catedráticos dos EGU de Angola e Moçambique juntam-se em S. Bento, residência oficial do 1º ministro de Portugal, para saberem da boca de Salazar a resposta ao pedido dos professores para a criação das Universidades de Luanda e Lourenço Marques. Numa sala escura, num ambiente lúgubre, num frio de Inverno que todos estavam desabituados e a tiritarem de frio, Salazar resolveu oferecer umas mantas para se sentirem mais confortáveis. Dez ou doze pessoas sentadas neste ambiente a raiar o surrealista ouviam o perorar monocórdico de Salazar sobre a responsabilidade que tinham de “ensinarem os pretos a bastarem-se a si próprios, e as consequências que daí adviriam”, mas no fim lá deu o seu definitivo sim, para alegria dos presentes. Veiga Simão e Ivo Soares entusiasmados, pediram se podiam telefonar para Moçambique e Angola para dar a boa nova, ao que Salazar terá dito: “Srs. Professores, porque não mandarem antes uns telegramas, fica mais barato”.
                As malhas que o império foi tecendo! 
     
   Fernando Pereira 
  18/4/2017
               
               

                 

                

12 de maio de 2017

EVOCAÇÃO / O Interior / Guarda / 11-5-2017








EVOCAÇÃO

“A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”
Sophia de Mello Breyner Anderson

                A morte recente do Vasco Queiroz, apesar de anunciada, deixou-me num estado de quase prostração emocional e a certeza que vai ser um luto difícil de abandonar.
                Conheci o Vasco há quarenta e cinco anos, quando fomos contemporâneos no Liceu D. João III em Coimbra, no cinzentismo de uma primavera marcelista que mais não conseguia ser que um salazarismo a sorrir. 
                Com o alvor da democracia nesse 25 de Abril de 1974 embriagámo-nos com a festa da liberdade, de um tempo novo, de uma primavera que nunca esquecemos. Durante décadas comemorámos este Abril com um jantar que invariavelmente acabava numa noite longa de cantoria, recordações e copos á mistura. Fizemo-lo pela ultima vez neste 25 de Abril de 2017, com o Vasco já muito doente, mas ainda com a força bastante para à meia noite fazermos o tradicional brinde com um espumante. Sabíamos os dois que era o nosso ultimo convívio de Abril, mas era-me obrigatório cumprir este ritual junto do homem que era só o melhor de todos nós.
                Empenhamo-nos juntos em processos de luta pela edificação de uma sociedade mais justa e solidária. Divergíamos no acessório, estávamos de acordo no essencial. O combate nesses anos de esperança vivida deu-nos força, mas também sobreveio a revolta quando vimos que “houve por aí alguém que se enganou”!
                Actor do CITAC (Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) nunca ao longo da vida deixou de fazer teatro, e foi um dos pioneiros da criação do “Calafrio”, estrutura cultural que tem desenvolvido algum trabalho cultural na Guarda nestes dois últimos anos da sua atividade continuada.
                Depois de alguns anos em que cada um fez o seu percurso pessoal e profissional, o acaso juntou-nos num local improvável, a Guarda.
                Aqui o Vasco revelou-se como uma das nossas referencias, mantendo a sua coerência política, uma postura cívica exemplar, um ser solidário permanente e acima de tudo uma preocupação continuada para com os outros, o que fez dele um dos mais respeitados e amados clínicos da sua geração na Guarda e cidadão impoluto e interveniente na sociedade.
                Destransigia com a venalidade, com o oportunismo e era exigente consigo própria na hora de aceitar algo que pudesse ser suscetível de manchar a sua idoneidade profissional e a sua independência enquanto cidadão. 
                O Vasco Queiroz era um indefetível benfiquista, exigente com o seu clube, mas isso não o impedia de partilhar algumas vitórias internacionais do meu Futebol Clube do Porto e festejar comigo esses eventos. Nunca aconteceu com o Benfica, mas julgo que eu era incapaz de fazer o mesmo. Nestas poucas coisas em que divergíamos ele mostrava ser diferentemente melhor que eu!
                A Guarda devia estar agradecida por ter tido este ilustre filho adotivo, porque no campo profissional, na atividade cultural e no contexto solidário foi um homem que abraçava as causas, empenhava-se com todo o seu esforço e com toda a sua enorme capacidade intelectual para que tudo tivesse um sucesso que teimava em partilhar com todos.
                Intelectualmente era um inconformado, porque queria assimilar tudo o que o pudesse enriquecer culturalmente, mesmo sobre coisas que às vezes outros julgavam pueris.
Fizemos muitas viagens de lazer juntos, e havia uma frase recorrente: “Temos que arranjar aí um programa cultural para que a viagem não seja só copos”! Lá arranjávamos um roteiro que lhe fizesse essa vontade e que nos trazia novas descobertas.
Em determinada altura chegou a ser deputado municipal na Assembleia Municipal da Guarda, mas rapidamente saiu completamente desiludido, com a maquinação dos interesses e da politiquice rasteira que vai minando os alicerces de uma democracia que sonhou diferente, naquela primavera longínqua de 25 de Abril de 1974.
Raras vezes o via exaltado, mas manifestações de racismo, xenofobia e apelo a valores do fascismo eram motivo mais que suficiente para o pôr maldisposto e fazê-lo retirar intempestivamente de qualquer lugar onde a discussão se tornasse estupidificada.
Jonh Huston na cerimónia fúnebre de Bogart “Não temos razões para ter pena dele, mas sim de nós porque o perdemos” ou como diria Mia Couto, “Não morre quem se ausenta, morre quem é esquecido”. Só o esqueceremos quando um dia formos ter com ele!
Com o seu desaparecimento físico, há temas que por força das múltiplas cumplicidades que tinha com o Vasco Queiroz irão passar a estar no “sótão” da memória, pois só com ele conseguia partilhar num tempo vivido ao longo de décadas abruptamente cortadas neste infausto seis de Maio de 2017.
Vasco Queiroz faz-nos tanta falta que acho que nem ele teria noção disso, pois foi sempre de uma humildade exasperante. A mim cabe-me agradecer tanto de bom que me deu, e tanto que me enriqueceu.
Vamos fazer algo que perpetue a sua memória junto dos cidadãos da Guarda e dos vindouros? Estou nessa e acho que somos muitos a pensar o mesmo.
Certa vez deu-me a ler este provérbio mexicano: “Habitue-se a morrer antes que a morte chegue, porque os mortos apenas podem viver e os vivos apenas podem morrer”! Hoje percebo porque o mostrou!
Vais continuar a fazer parte da minha vida pelas melhores razões.
Obrigado meu amigo!

Fernando Pereira
8/5/2017








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