26 de junho de 2011

Não importa Sol ou sombra/ Ágora /Novo Jornal 179/ Luanda 24-6-2011





Quem vai acompanhando a vida cultural de Luanda tem que recorrentemente vir aceitando a ideia que muito se tem feito, e que vai havendo propostas interessantíssimas na nossa cidade capital. Nos últimos tempos vai-se assistindo um pouco por toda a cidade a eventos culturais tão diversificados na área das artes plásticas, dança, música de referências diversas e de boa qualidade, cinema e documentário, colóquios, uma multiplicidade de ofertas que cada vez mais tornam a cidade num local vivível e não tão dependente do “4 de Fevereiro” para se ter acesso a bens culturais.


No quadro da edição literária nota-se um outro fulgor com a apresentação de novos títulos, novas editoras a aparecerem com propostas interessantíssimas revelando que há quem trabalhe, pesquise, divulgue e simultaneamente há quem aposte, sendo a “Mayamba” do Arlindo Isabel um dos muitos exemplos, provando que há mercado.

Aqui há uns tempos recebi a herança um conjunto de jornais, revistas, livros e documentos, a maior parte em acentuada estragação. Meticulosamente estive a fazer-lhes um arremedo de classificação e catalogação para depois tentar dar-lhes um destino.

Uma parte resolvi doar ao “Centro de Documentação 25 de Abril” da Universidade de Coimbra, porque entendi que eram mais “resguardáveis e utilizáveis” que em minha casa.

Uma das revistas que estava naquele imenso amontoado era a “Ilustração Portuguesa”de Junho de 1910, que trazia um conjunto de fotos de uma “torada em Loanda”, numa improvisada praça adaptada no Velódromo da cidade. Esse Velódromo viu-se substituído pelo actual estádio dos Coqueiros, Clube de Ténis e instalações desportivas e sociais do Sporting de Luanda no dealbar dos anos trinta do século passado.

Pode-se presumir que a tourada tenha sido um evento importante na cidade, embora o texto não seja muito descritivo, já que a revista vivia à base de fotos, no caso a reportagem feita por um tal Anselmo Dias.

Lembro-me de ter ido em miúdo no tempo colonial ver uma tourada na praça de touros de Luanda, sempre de má memória, com um tio meu que era aficionado da “festa brava”. Recusei-me mais tarde, já adolescente a partilhar esse gosto com ele no Lubango e em Portugal na Figueira da Foz. Nunca mais tentou aliciar-me porque de facto fui sempre relutante a ver espectáculos onde a selvajaria e o opróbrio imperam.

Nunca percebi nada de tourada mas o que diziam os aficionados em postura pós prandial participantes em grotescos e imperceptíveis urros e “olés”, tinha a ver com a falta de qualidade dos touros, que quase adormeciam na arena na canícula do Janeiro de Luanda, causada por uma viagem de barco de Portugal e sedados durante dias. Os animais na Europa latina e no México são vítimas de extrema violência nas horas que antecedem a “refrega”. Em Luanda a moleza aumentava a ira dos toureiros, e a desforra era a violência bravia sobre o animal, o que ainda tornava o quadro mais torpe.

O que se pretendia objectivamente era criar em Luanda uma alternativa ao toureio na então “Metrópole”, que só começava a ter época de Abril a Outubro. O resto da temporada para a faena e para o dinheiro era dividido entre Luanda e Lourenço Marques, onde emergiu o único negro do toureio apeado no Mundo, o Ricardo Chibanga, que vive hoje retirado das lides numa quinta da Golegã em pleno Ribatejo. A par de Luanda, o Lubango também tinha uma praça de touros, mas aí não surpreende já que era uma cidade contra-natura em África, já que até 1974 conseguia ter mais população branca que preta. Em Luanda ainda houve um grupo de forcados constituído e pouco mais se fez.

Ficou o registo de um espectáculo selvagem e bárbaro, aviltante para os cidadãos no século XXI, mas que felizmente vai sendo cada vez mais contestado pelo crescendo de grupos de apoio aos direitos dos animais, o que levou recentemente à sua proibição em vários locais, por exemplo na emblemática Catalunha.

Como escreveu José Carlos Ary dos Santos: Nós vamos pegar o mundo/ pelos cornos da desgraça/ e fazermos da tristeza/ graça.



Fernando Pereira

19/6/2011

Entrevista que fiz para o Novo Jornal de 24-6-2011 ao Engenheiro Fernando Falcão






Fernando Falcão, 87 anos, angolano, engenheiro civil. Nasceu no Namibe, neto dos primeiros colonos que aportaram no deserto no fim do século XIX vindos do Brasil. Estudou no Liceu Diogo Cão e formou-se em Engenharia no Porto no distante ano de1947 . Fixou-se no Lobito, onde desenvolveu marcada actividade política, empresarial e associativa durante muitas décadas, acabando por ser uma das figuras de referência da cidade e de todo o Sul de Angola.
NJ- Enquanto estudante a sua participação no combate à ditadura e à sociedade colonial prevalecente em Angola foi marcada pela fundação da Casa de Estudantes de Angola, depois Casa dos Estudantes do Império, no MUD juvenil, onde partilhou cumplicidades políticas, companheiros de percurso e também a marcação cerrada de uma PIDE que nunca o esqueceu até 25 de Abril de 1974. Fale-nos do Falcão da “juventude”.
FF – Pouco tenho a acrescentar ao que é conhecido. Direi que fiz a instrução primária em Moçâmedes (hoje Namibe), fiz o 7º ano do Liceu em Sá da Bandeira (hoje Lubango) e a Faculdade em Coimbra na parte dos Preparatórios e Porto na Faculdade de Engenharia.Fui da Mocidade Portuguesa, onde atingi o posto de comandante de castelo, e evolui sempre para a oposição ao regime de Salazar.
NJ- Pode parecer algo impertinente, mas de tudo que se vai lendo e sabendo fica-se com a sensação que no início havia “divergências” entre os estudantes que tinham saído do Liceu Diogo Cão ( “Os sulistas”) e os que saiam do Salvador Correia (Luanda e Norte) para estudar no exterior. Se isso de facto aconteceu contextualize tendo em consideração as origens dos estudantes dos dois estabelecimentos de ensino?FF – As divergências entre os estudantes saídos do Liceu Diogo Cão, em Sá da Bandeira, e os do Liceu Salvador Correia, em Luanda, eram fruto de um bairrismo salutar que nunca destruiu a amizade entre jovens de idade aproximada.
NJ- Quais as razões ponderaveis na sua decisão de se radicar no Lobito, há mais de cinquenta anos?FF – Eu não quis radicar-me no Lobito, mas quando cheguei a Luanda, vindo de Lisboa, onde fui contratado como engenheiro praticante para o Serviço de Portos, Caminhos de Ferro e Transportes, o então subdirector destes serviços – Engº Melo Vieira – que tinha sido meu professor no Liceu, obrigou-me a ir para o Lobito para a Direcção do Porto do Lobito.
NJ-A cidade cresceu consigo e não se pode ignorar que o seu desenvolvimento urbano, a expansão do seu tecido empresarial tem uma marca sua. À distância de umas décadas quer-nos falar um pouco desse percurso e também um pouco do vivificar do Lobito.FF – Rapidamente me tornei “Lobitanga”, tornando-me vereador do Municipio, presidente de um clube de futebol – O Lusitano – fundador e primeiro presidente dos Bombeiros, presidente da direcção da Associação Comercial e Industrial, durante vários anos e de um modo geral participei em todas as realizações que valorizassem a cidade do Lobito e da vila da Catumbela,
NJ- O Eng. Falcão teve ao longo do seu percurso de cidadão uma participação política activa que nalguns momentos lhe terá criado situações embaraçosas. Foi delegado no distrito de Benguela da candidatura do general oposicionista a Salazar, Humberto Delgado; Foi um dos poucos sítios onde o general Delgado ganhou, numas eleições que se revelaram fraudulentas, onde o declarado vencedor foi Américo Tomás, o candidato de Salazar. Fale-nos um pouco desse período e do que aconteceu nesse longínquo 1958.FF – Não fui delegado no distrito de Benguela do general Humbero Delgado, mas sim do Dr. Arlindo Vicente, Por desistência deste a favor daquele, acatei a deliberação superior de colaborar com a comissão distrital do general Humberto Delgado.
Foi intenso o meu trabalho nesta comissão e suportei algumas intriguices que puseram em risco o meu lugar de engenheiro adjunto do director do Porto do Lobito. Valeu-me a compreensão do então Governador Geral de Angola, capitão Agapito da Silva Carvalho, que foi sempre muito compreensivo a meu respeito.
NJ- Quando começou a sentir que poderia organizar alguma coisa que pudesse ter alguma consistência na luta pela autodeterminação e independência do País?FF – Após os incidentes no norte de Angola provocados pela UPA e mais tarde a FNLA, traduzidos por barbaros assassinatos, senti a necessidade de contrariar tais atitudes. Daqui resultou a criação da FUA (Frente de Unidade Angolana), da qual fui o primeiro e único presidente.
NJ- Ainda que lhe peça de forma sucinta, com quem partilhou esses primeiros tempos que foram, ou poderão ter sido o embrião de uma organização em que o Engenheiro Falcão é a maior referencia, a FUA (Frente de Unidade Angolana)?FF – Nesta tarefa tive a colaboração de muitos, destacando o eng. Manuel Brazão Farinha, o Luís Portocarrero, o Carlos Morais, o Socrates Daskalos, etc.
NJ- Num tempo em que as ideologias estão a ser constantemente relegadas para segundo plano, peço-lhe que enquadre a FUA num contexto ideológico de uma Angola colonial.FF – A FUA era uma amalgama de vários partidos notando-se nos seus dirigentes uma tendência pro-MPLA. No entanto, a FUA nunca esteve subordinada a qualquer partido político. Foram na altura publicados os seus princípios básicos que não ofendem qualquer ideologia política.
NJ- Sem qualquer sinal de provocação pergunto-lhe se a FUA não era um movimento progressista de colonos e circunscrito ao Sul do território?FF - A FUA não era um movimento progressista de colonos e circunscrito ao sul do território, pois foi estendida a todo e território angolano e bem implantado no seio de todas as etnias.
NJ- Sem constrangimento de qualquer ordem peço-lhe que me diga qual a posição da FUA em relação ao MPLA e à UPA, no dealbar dos anos 60 e num contexto de forte repressão das autoridades coloniais portuguesas.FF – A FUA teve sempre as melhores relações com o MPLA o que não sucedeu com a UPA que consideramos responsáveis pelos massacres no norte de Angola.
NJ- Em 1961 reuniu-se com o novel Ministro do Ultramar de Salazar, Adriano Moreira, que lhe terá deixado muto boa impressão, e que depois de acolher algumas das suas propostas o mandou prender. Gostava de ouvir esse episódio, mas não gostava de deixar de dizer que o percurso dessa figura, um misto de seráfico e sórdido, continua a ser motivo de divergência nas questões coloniais de matizes diferentes.FF - Em Maio de 1961 veio a Angola como ministro do ultramar de Salazar. A FUA , encapotadamente, pediu a audiência que foi concedida a vários dirigentes exceptuando o eng. Manuel Braxão Farinha que se tinha refugiado a bordo de um barco que se encontrava acostado ao porto do Lobito.
Adriano Moreira ouviu as considerações e prometeu corrigir algumas contradições coloniais. Em vez disso pucos dias depois começou a prisão de dirigentes sendo a maioria desterrada para Portugal.
NJ- O Senhor Engenheiro Falcão era um homem de sucesso em termos empresariais, mas nunca deixou de defender as suas posições, que lhe valeram bastantes dissabores e até algumas calúnias, de sinais bem contrários, quando por exemplo numa atitude de cortesia e amizade foi ao paquete “Infante D. Henrique” despedir-se do deposto governador colonial Santos e Castro. Porque foi uma atitude muito contestada por alguns jornais de Luanda, ainda na esteira de um 25 de Abril de 1974, e permitiu especulações diversas sobre os reais propósitos do encontro, gostava de poder ter a S. versão de uma situação que julgo ter sido pouco mais que nada, embora julgo ter tido o eco do que se passou.FF - O episódio da minha ida a bordo do paquete “Infante D. Henrique” cumprimentar o então governador geral de Angola (Santos e Castro) não passsou senão de uma atitude de cortesia para com o governante que sempre atendeu da melhor maneira os nossos dirigentes, contrariando o comportamento daqueles que o deveriam ter feito.
NJ- Que FUA pretendeu fazer renascer no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974? FF – Pretendi fazer renascer a FUA de 1974 nos mesmos moldes da FUA de 1961, tentando assim promover a unidade das forças em presença evitando o derramamento de sangue que mais tarde aconteceu.
NJ- O Senhor Engenheiro permaneceu no Lobito , como administrador do CFB nomeado pelo governo de Angola e simultaneamente desempenhou funções de Director do Porto do Lobito, onde teve alguns atritos com os sindicatos. Não sei se é verdade a história que se conta que terá despedido um determinado número de trabalhadores com elevado absentismo, e contratado o mesmo número para os substituir. Perante a contestação do Sindicato, o Engº Falcão apenas terá respondido que o número de desempregados se mantinha exactamente igual. É ficção ou aconteceu alguma coisa parecida?FF - Desde que assumi a direcção do porto do Lobito tive a preocupação de sanear hábitos pouco correctos dos seus recursos humanos. Os trabalhadores tinham direito a um cartão de abastecimento e por esse motivo o porto estava cheio de gente que se limitava a ir levantar o vencimento e a fazer o abastecimento que vendia na kandonga. Foi assim que realmente demiti cerca de 200 pseudo trabalhadores mas não os substitui, o que provocou protestos da UNTA, tendo contudo tido o apoio das entidades superiores.
NJ- Como encara o desenvolvimento de Angola nunca esquecendo que o Senhor foi sempre contundente na sua análise em diversas ocasiões de Angola enquanto País.FF – O desenvolvimento de Angola não deve ser circunscrito a meia dúzia de dirigentes em Luanda mas deve estender-se a todas as províncias e suas populações.
NJ- Para finalizar, agradecendo a sua disponibilidade por nos dar esta entrevista, aliás necessária, pergunto-lhe se a sua luta valeu a pena?FF – Como diz o poeta “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Fernando Pereira
15/6/2011
Related Posts with Thumbnails