7 de dezembro de 2012

“Pátria, Lugar de Exílio”/ O Chá nº 3 / Luanda/ Outubro 2012





Na dura realidade insular do seu território natal, em que sobreleva a luta do homem contra a natureza escassa, nasce, em 1925 na ilha da Boavista, Daniel Damásio Ascensão Filipe.
Cabo Verde foi, no contexto dos territórios coloniais portugueses, o primeiro onde brotou a mais válida expressão coletiva que atingiu um movimento literário abarcando os domínios da poesia, da ficção e do ensaio com características próprias, enraizado no húmus da sua região e com interesse universal.
Daniel Filipe, falecido precocemente aos trinta e nove anos, foi um combatente pela liberdade. Fez o seu percurso académico em Portugal e, depois de terminar os seus estudos liceais, foi funcionário da então Agência Geral do Ultramar, onde foi suspenso pelo opróbrio habitual de “delito de opinião”. Preso e torturado pela PIDE algumas vezes, acabou por falecer no seu Cabo Verde natal.
Inicialmente, o poeta deu-nos cinco obras cheias duma trágica “glória de ir sozinho”, dum “deixai-me ser liricamente fútil”, cheias de frustração e pessimismo. Numa ligeira análise dos títulos de quatro dos seus livros isso é bem patente: “Marinheiro em terra”,” O viageiro solitário”, “Recado para a amiga distante” e a “Ilha e a Solidão”.
Pertenceu ao núcleo da “Távola Redonda”, o qual se congregou, segundo as palavras de um dos seus diretores e o melhor dos seus teorizadores: David Mourão-Ferreira- “sobretudo pelo desejo de reagir contra as tendências da produção poética da época, nomeadamente contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais”. Fez publicar na “Seara Nova” alguns trabalhos, como por exemplo o “Recado para a amiga distante” (1956) que indicia novos posicionamentos na forma de fazer poesia e abrir portas a poemas mais interventivos: “Cem mil casa/ mas nenhuma é nossa meu Amor/ Em nenhuma nos sentiríamos seguros/ livres/ alegres”, para terminar dizendo: “Alguma coisa está matando a cidade/calando a voz da cidade/ amor dançando na cidade//Alguma coisa terrível/ meu amor// terrível”.
Em 1957 aparece como um dos responsáveis pela efémera publicação “Notícias de Bloqueio”.
Este poema indicia o surgimento de “Invenção do Amor”, onde mais uma vez “ a cidade surge como uma coisa terrível”.
“A invenção do amor” é um impetuoso e longo poema de revolta e denúncia, no qual a referência lírica parece ser acessória para o autor, quando é nesse contexto localizado que se afigura o poema mais conseguido. Referência para Eluard com a transcrição de dois versos de “Et un sourire”: “au bout du chagrin une fenetre ouverte/ une fenetre eclairée”.
Na segunda parte do livro,” Canto e lamentação na cidade ocupada” e na terceira “Balada para a trégua possível” consegue uma ténue unidade perante a força da “Invenção do Amor”, afinal a primeira parte do livro. Este conjunto representa uma viragem decisiva na obra do seu autor, pelo impetuoso e irradiante calor humano, pela denúncia corajosa e que prenuncia o aparecimento de “Pátria Lugar de Exílio”.
Neste, quanto mais impetuoso e irradiante é o calor humano, mais corajosa é a denúncia. Há aí uma tal necessidade e veemência de expressão, que mesmo as partes que apresentam algumas debilidades ganham novas dimensões impelidas por essa força criadora que vai carreando todos os materiais e que com a sua diversidade alcança a unidade fundamental do poema.
Em “Pátria, Lugar de Exílio”, há um corte com algumas incoerências que terão surgido ocasionalmente no trabalho poético entretanto produzido. “Estamos perante um texto de límpida comunicabilidade, utilizando os mais sóbrios e eficientes meios expressivos, onde tudo é a coreografia duma realidade visível, palpável, que o poeta verso a verso vai erguendo emocionada e solidamente” (José Carlos de Vasconcelos).
Daniel Filipe interroga: “Pergunto poderia cantar de modo alheio/ dizer outras palavras como quem diz bom dia (…)//Poderia escrever meu amor e pensá-lo/ sem mais nada sem a mancha rubra de sangue na parede da cela/ sem um nome ou um grito” e aqui sente-se que os seus poemas são tudo aquilo que são e se tornaram :”sangue, gesto e olhar”.
Utilizando versos de diferente respiração e intercalando no poema cinco canções, Daniel Filipe conseguiu dar-lhe uma grande vivacidade e equilibrar a sua arquitetura, de tal forma que subsiste nele uma unidade fundamental, que só uma bem apetrechada oficina poética conseguiria lograr.
Mário Viegas, um dos mais talentosos atores do teatro português contemporâneo, falecido no fim do século passado, deu voz a um trabalho de declamação da “Invenção do Amor” proporcionando assim que a obra poética de Daniel Filipe saísse quase do anonimato ou das tertúlias literárias onde os neorrealistas e “asteroides” eram colocados em guetos.
Recentemente foi reeditado em CD o disco de Mário Viegas, gravado em 1973, e terá sido mais uma oportunidade para voltarmos a ouvir palavras bonitas bem ditas e recordar este poeta.
Daniel Filipe, teimosamente esquecido na literatura de expressão portuguesa, onde rareiam referências a muitos poetas que como ele fizeram da poesia, amor e combate político contra o cinzentismo, a intolerância e a repressão, merece esta tímida referência num mensário cultural de um País de muita gente que partilhou lutas, vivências e trajetos culturais comuns.

Fernando Pereira
26/10/2012

Related Posts with Thumbnails