29 de junho de 2018

Moscovo não acredita em lágrimas! / Novo Jornal / Luanda 30/6/2018








Moscovo não acredita em lágrimas!

Utilizo o título do filme de VLADIMIR MENSHOV, que em 1980 recebeu o óscar de melhor filme estrangeiro na Academia de Hollywood, para ilustrar a minha análise da primeira fase do Campeonato do Mundo de futebol que se está a realizar na Rússia.
Esta foi a minha primeira vez em Moscovo, depois de alguns ensaios falhados num tempo em que se multiplicavam as visitas de “Amizade, Partido e Estado” onde se estabeleciam acordos de cooperação e de onde vinham as ideias peregrinas de um “socialismo científico”, que alguns debitavam no quotidiano, nos movimentos de retificação, e que hoje se tornaram paladinos da iniciativa privada, dos mercados e da produção de mais-valias na liberdade feita à medida! Houve até alguns que já o afirmaram publicamente que “foi assim porque era moda”!
Enquanto fui percorrendo Moscovo, veio-me à lembrança o filme que foi uma das primeiras manifestações tímidas de rotura com o burocrático sistema soviético estabelecido por Estaline e depois mantido de forma quase imobilizada pelos Secretários Gerais do PCUS, até aparecer o SG da Mancha Gorbatchov, que talvez nunca tivesse percebido que quando se mexesse muito a coisa implodiria num curto espaço de tempo e voltava a velha lei da desordem do mercado a impor-se.  Foi isso que acabou por acontecer!
Vi uma cidade organizada e com uma amalgama de gente de todo o mundo a fazer do Mundial a grande festa! Os russos receberam-nos em êxtase, cordiais e abertos, longe da sisudez com que por vezes nos confrontávamos com eles em Angola, no tempo em que eram os nossos parceiros privilegiados da cooperação.
 Veio-me à memória a frase de Albert Camus, Prémio Nobel da literatura 1957, antigo guarda-redes dum modesto clube de Argel: Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol.”  e “Aprendi que a bola nunca vem por onde se espera que venha. Isso me ajudou muito na vida, principalmente nas grandes cidades, onde as pessoas não costumam ser aquilo que a gente acha que são as pessoas direitas”.
Domingo à tarde via o Alemanha/México e uma 1ª parte que foi um prazer para os que gostam de futebol. Duas culturas refletindo mentalidades diferentes na interpretação do jogo, imaginativo, habilidoso, tecnicista o mexicano contrabalançando o maior poder físico alemão, futebol mais prático e retilíneo. Veio-me à memória, John Reed, norte americano, jornalista do The American Journal, ficou conhecido pelo relato da Revolução Russa de 1917 em Dez dias que abalaram o mundo, “onde teve a consciência da importância daqueles dias onde colegas seus viram simples lutas entre partidos russos”.
J. Reed foi um correspondente de guerra no México, em revolta desde 1911, “sobrevivendo sempre no interior das forças hostis; aprendeu o ofício de escritor, escrevendo no decurso da sua aventura humanista, consequência do seu ideário socialista que sempre abraçou”. Esteve cinco meses no México apoiando as ideias de Pancho Villa, famoso revolucionário mexicano. “México Insurrecto” é um relato da Revolução Mexicana “a primeira grande revolução do século 20, que transformou radicalmente, após tantos anos de repressão, as estruturas políticas e socioeconómicas do país.”
Mas voltemos ao jogo e na 2ª parte o México soçobrou, mas o guarda-redes mexicano deixou incólumes a sua baliza para desespero dos teutónicos e não dar razão ao chavão: “No futebol jogam onze contra onze e no fim ganha a Alemanha”
Fui ao reformado estádio Luzhniki, ex-Lenine, onde lá está a estátua do próprio entre as bancas da Coca-Cola, Quatar Airlines, Gasprom, Mac Donalds, Visa e outros ícones do capitalismo global.
A organização e a segurança são perfeitas e o ambiente para o Portugal- Marrocos era uma festa, embora os marroquinos sejam em muito maior numero que os portugueses e outros lusófonos que aqui vieram apoiar a seleção de Portugal. O jogo foi fraco e ganhou quem menos mereceu. Portugal marcou o golo da vitória pelo inevitável Cristiano Ronaldo e limitou-se a gerir da forma menos suportável para todos os que queríamos ver um pouco de futebol.
Valeu o ambiente de festa, Moscovo receber-nos de braços abertos e com uma temperatura excelente.
Na Fan Zone instalada nas cercanias da monumental Universidade de Moscovo, uma das muitas marcas estalinistas da cidade, a festa começou cedo com muita musica, futebol, folclore e o ambiente que deve prevalecer nestes eventos.
Depois do jogo muitos deslocavam-se para a Praça Vermelha, paredes meias com o Kremlim, onde tudo ia continuando pela tarde dentro, já que no início do Verão a noite era de 4 horas.
Há, contudo, algo estranho relativo a outros campeonatos que tenho assistido, e nota-se a falta dos ruidosos adeptos italianos, as massas alaranjadas holandesas e por razões que nada tem a ver com o futebol a ausência dos ingleses, que aceitaram a recomendação da primeira-ministra para não irem ao Mundial. Reduziu o colorido do Mundial, mas até ao momento o que tenho assistido é uma imagem de uma renovada Rússia que se perfila para voltar a ser uma potencia emergente não tanto por uma ideia de força, mas pelas ideias que serão força, no domínio da ciência, da produção e da harmonia social.
A Rússia enfrenta desafios, mas herdou do socialismo algo de irrefutável, mesmo para os detratores militantes, e tem a ver sobretudo com a formação académica dos seus cidadãos o que vai permitir adequar os desafios a essa confortável realidade de ter gente habilitada.
Voltaremos a isto porque falar de futebol também tem estas coisas!


Fernando Pereira  
25/6/2018

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