18 de abril de 2010

A Rosa de Porcelana/ Ágora / Luanda / Novo Jornal / 16-4-2010



A rosa de porcelana, é uma flor de encantos inigualáveis a miríade de plantas ornamentais da flora angolana.
É uma flor inodora, que permanece durante muito tempo bastante viçosa, tirada do arbusto que a fez crescer, e mesmo seca mantém a auréola de particular beleza
A rosa de porcelana, é bem a imagem viva do que vamos mantendo quando nos queremos recordar de tempos idos, em que julgávamos conseguir aldrabar tudo, menos a felicidade solidária que nos uniu nas carteiras do liceu Salvador Correia.
Trinta anos depois de ter largado o liceu, e ao recuperar memórias e gentes desses anos de desobrigação mental, a felicidade do reencontro tem sido um exercício maravilhoso de reconstrução de ideias e projectos, que de certa forma julgámos encerrados no baú, dos nossos tempos de transição, entre o calção de tecido da Gajajeira, e o primeiro par de calças de ganga.
Só não partilho com Fernando Pessoa (Álvaro Campos), no seu “Aniversário”, a frase «raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira», porque o meu passado, todos os meus passados andam sempre comigo, e por isso trago hoje à lembrança o mercado que invariavelmente se ia fazendo à porta do liceu, durante os intervalos das aulas.
Um conjunto de vendedores, com uma panóplia de doçuras e gelados, invadia o portão fronteiro do liceu.
Comecemos pelos paracuquistas, que vendiam o amendoim torrado, envolto em açúcar, ou tiras de coco misturados com açúcar e canela, que nós desenrolávamos de um cone de papel pardo. Havia depois os vendedores de “bolas de berlim”, muito açucaradas e sempre acompanhadas por umas “varejeiras” azuis brilhantes, que mais não faziam que atestar o bom estado de fritura das mesmas. Por vezes os paracuqueiros traziam os famosos guarda-chuvas de açúcar, uma coisa vermelha, verde e amarela, embrulhada num papel acelofanado , que demorávamos tempos a tirar, mas que era um verdadeiro potenciador de uma hiperglicémia com que pouco nos preocupávamos então! Sobravam neste conjunto os mais destacados dos vendedores: Os dos gelados!
Os carros dos gelados eram todos mais ou menos iguais, com as rodinhas, com os homens fardados, normalmente uns com umas fardas menos imaculadas que outras e vinham dos locais mais recônditos da cidade. Do Baleizão vinha o gelado embrulhado em papel, com preços diferentes em função do tamanho; da Maianga vinha um carro igual aos outros, com duas rodas, mas que era servido na altura com uma espátula que dava para todos os sabores, que convenhamos era pouco mais que água, um projecto de leite em pó e açúcar.
Com uma performance, a raiar a modernidade, apareciam os “gelados Torrão” . A família Torrão praticamente conseguiu secar a concorrência disputadíssima na entrada do Liceu. A família Torrão faz-me hoje lembrar um pouco a “família Adams”, pois nas suas imaculadas batas brancas sobressaia uma alvura de pele, que nós estávamos pouco habituados a ver. Era a família toda no negócio, e os gelados até nem eram maus, mas também era o único que só enchia o cone por cima, o que fazia que à primeira lambedela, e quão sôfregas eram as nossas lambedelas na altura, o gelado ia direitinho para o asfalto, sob o nosso olhar desalentado, e víamos a indisfarçável alegria que as faces rosadas dos Torrões não ocultavam, pois potencialmente, seríamos um cliente no intervalo seguinte.
O patriarca Torrão ia olhando para todos os Torrõezinhos, que nos iam limpando os parcos trocos, que dificilmente conseguíamos subtrair aos nossos pais, e através de um código de olhos e sinais, todos iam sabendo qual o estado da safra e da necessidade de poupar na dose, que nunca era igual de um dia para o outro. Talvez a despropósito, mas faz-me lembrar o que disse um dia o realista milionário norte-americano Warren Buffet, “a luta de classes existe e a minha classe ganhou-a”. Os Torrões ao tempo não deram hipóteses à concorrência!
Nunca me apercebi que os Torrões apanhassem sol, pois sempre os vi com aquela cor branca acinzentada,homens e mulheres usavam bigode, no caso dos homens mais denso, no caso das mulheres, com menor exuberância capilar, e pareciam-me a mistura perfeita entre o gelado de leite e as moedas de dois e quinhentos da altura, custo de apenas uma só lambedela.
Convém dizer que a última vez que comi um gelado azul, foi em frente ao liceu, uma bizarrice que nunca mais consegui ver para repetir, em parte alguma do mundo, nem sequer no meu adorado “estádio do Dragão”! Com a independência foram-se os Torrões, mas mantiveram-se todos os outros, e hoje alargou-se o mercado e a mercadoria!
A rosa de que falei no início, é apenas mais uma pétala de uma flor que nos deve unir, enquanto portadores de coisas bonitas que vivemos em tempos idos e que hoje só não vivemos se não quisermos, nem que seja na lembradura.

Fernando Pereira
5/3/2010
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