28 de outubro de 2011

A subjectividade é a verdade?/ Ágora/ Novo Jornal nº 197/ Luanda/ 28-10-2011



O El Pais iniciou um conjunto de reportagens sobre um dos aspectos mais negros do período franquista: o roubo de crianças. É um trabalho notável em que mais uma vez o diário espanhol mostra por que é um dos grandes jornais do mundo.
É um dos poucos jornais que leio com redobrada atenção, pelo rigor da informação, a isenção dos seus artigos de opinião e a credibilidade que o estatuto do jornal transmite desde a sua fundação em quatro de Maio de 1976, logo a seguir ao desaparecimento do ditador Francisco Franco, marcando o início da abertura política que levou á democracia constitucional espanhola.
Este trabalho sobre as crianças roubadas às famílias dos republicanos, que entretanto foram fuzilados, é uma questão candente na Espanha actual, com traumatismos enormes no seio da sociedade. Há familiares do primeiro-ministro Zapatero nestas circunstâncias, já que o seu avô foi vítima dos algozes do franquismo.
Conviver com a memória tem sido difícil para os familiares nos mais de setenta anos do fim de uma das guerras mais sangrentas que a história viveu, e quando assistimos ao derrube das emblemáticas estátuas do franquismo, vemos que foi necessária coragem e acima de tudo maturidade cívica e democrática para que tudo esteja a ser feito sem convulsões de maior numa Espanha de excessos e profundamente católica. Tive o privilégio de ter assistido em Santander, ainda que por casualidade, o arriar da última estátua equestre de Franco em toda a Espanha. Todos os que assistimos a esse evento numa pequena praça não muito longe da catedral fizemo-lo quase em silêncio, num qualquer exercício catártico em memória dos que foram barbaramente assassinados pela “falange”.
O El País é uma referência obrigatória para todos os jornais e jornalistas, pois sempre conseguiu a objectividade e a independência no tratamento da informação, escolhe os seus colaboradores numa base rigorosa de qualidade e nunca foi bandeira de causas que o pudessem transformar num panfleto, onde muita imprensa cai quase sem se dar conta.
Fiquei particularmente desapontado com a atribuição à escritora Maria Eugénia Neto o Prémio Nacional de Cultura e Arte, edição 2011, na categoria de Literatura, não conseguindo encontrar uma justificação qualitativa para galardoar a sua obra, com tão honrosa distinção.
Naturalmente que a subjectividade da minha opinião tem o valor que lhe quiserem dar, mas de facto continuo a pensar que um prémio de literatura devia ser outorgado a um escritor que tivesse um percurso de obra mais multifacetado como por exemplo Arnaldo Santos ou Carlos Ferreira (Cassé), entre alguns outros que há muito emergirem com qualidade nas letras angolanas.
Talvez não tenha nada a ver com isto, mas recordei-me de uma entrevista de António Jacinto do Amaral Martins (1924-1991) a Michel Laban (1936-2008) em 1988: “Nos anos 50, quando começámos o tal movimento dos Novos Intelectuais, de romper com a tradição – já não vamos dizer portuguesa, mas a tradição da literatura que se fazia, foi fácil, muito fácil para mim, enveredar por aquele caminho: eram realidades que eu conhecia muito bem… Eu conheci a vida dos contratados, conhecia a situação dos camponeses no interior, de modos que não houve necessidade nem de fazer pesquisa, nem de fantasiar: era a pura realidade que conhecia”.
Como contista usou o pseudónimo de Orlando Távora e foi, também, um nome destacado da geração “Mensagem”. Ainda o poeta, a Michel Laban:
(…) já eram mais posições políticas do que verdadeiramente literárias. Até porque, na altura, eu e outros nos considerávamos escritores muito medíocres, poetas medíocres, mesmo principiantes… O que era preciso era dar uma mensagem política. Os meios? O que era acessível era a poesia: então, pois, seria a poesia. Se houvesse outra possibilidade seria outra… (…).
Às vezes temos que nos lembrar que não podemos olhar só para o nosso umbigo, ou colocar lá um diamante para que nós e tudo que nos rodeia olhemos para o mesmo sítio. Quando não partilhamos as críticas de José Agualusa a Agostinho Neto, por muitas razões, pelas que apontou António Jacinto, temos que ser mais assertivos nas nossas opções para evitarmos que “Na floresta outros bichos falem de cor”!
“Sincere words are not eleegant; elegant words are not sincere” Lao Tse.



Fernando Pereira
23/10/2011

21 de outubro de 2011

ELECTOCARDIOTRAMA / Ágora/ Novo Jornal nº196/ Luanda 21-10-2011





Umas vezes casamo-nos, outras acasomo-nos e as circunstâncias mudam-nos sempre por mais rigorosos e certinhos que possamos eventualmente ser.
Por mero acaso, um destes dias estava a olhar para a estante, sem pensar em nada e entre um amontoado de livros que estavam a merecer urgentemente um espanador fui encontrar um dos livros que mais me entusiasmaram. “Os nus e os mortos” , do norte americano Norman Mailler é um livro na guerra, e também de guerra. Este livro é muito intenso, pesado, e por vezes cruel, descreve as relações humanas levadas ao seu máximo, a resistência física e moral de cada pessoa, as suas virtudes e os seus podres, mas faz-nos pensar também naquilo que realmente somos, na hipocrisia que está dentro de nós sem sabermos e no que nos poderemos tornar em situações de extremos como são as que acontecem no livro. Espero que ao reler este livro daqui por vinte e cinco anos, ainda consiga lembrar-me das emoções contraditórias que senti nesta revisitação a Mailler.
Por falar em Mailler, nunca deixem de ler o “Fantasma de Harlot”, e aí perceber-se-á que nunca andámos sozinhos em lado nenhum, “os olhos e ouvidos do rei” continuaram sempre organizados, conspiram e respiram nas costas de quem ouse, ou de quem eles ousem pensar, que há alguém que quer usurpar o poder, a quem se julga no direito absoluto de o possuir e controlar.
Depois deste início em volta de Norman Mailler (1923-2007), vou-vos falar de um verdadeiro cão de guerra, Bob Denard (1929-2007)
Há muita tralha em forma de livro do “coronel” Bob Denard, presença constante em muitos cenários de golpes de estado, rebeliões, tentativas de ocupação de territórios e lutas contra qualquer movimento de tendência socialista em África. De sargento lateiro na Indochina francesa, este transformado em “coronel” Bob Denard, o ícone do mercenário durante a segunda metade do século XX.
Era catraio e lembro-me de o ver sentado na esplanada do Arcádia ao pé do BNA, com a cara entrapada por causa de um estilhaço que o obrigou a recuar para Luanda em 1965/66, depois de ter instalado no Zaire uma rebelião de catangueses contra Mobutu, a quem ajudou a chegar ao poder. Com o belga Jean Schramme, tomam Lumumbashi e Bukavu, na fronteira com o Ruanda, mas entretanto há um corte entre os dois grupos e quando Denard vem a Kasai, na ponte do rio Luau um oficial português recebe-o com grande aparato militar, tenta estabelecer contactos de forma a permitir que os reabastecimentos continuem, como lhe foi prometido por Salazar, presume-se através de Jorge Jardim. O que aconteceu e que ficou conhecido pela “Invasão das Bicicletas”, foi uma fracassada operação militar conjunta da PIDE e serviços secretos franceses e sul-africanos, e que na realidade o único material que conseguiu levantar de Saurimo fora alguns mantimentos para apoiar tropas cercadas, algumas armas e muitas bicicletas, numa operação que ao tempo custou 3.500 contos. Schrammer e 42 mercenários, alguns gendarmes katangueses acabaram por sair de Bukavu e acoitaram-se no Rwanda sob a protecção da Cruz Vermelha Internacional em 1967.
Bob Dénard saiu de Angola para a então Rodésia, tendo com os bons auspícios e protecção do governo colonial de Salazar organizado o apoio ao regime secessionista do Biafra na luta contra o poder da Nigéria. A passagem por S. Tomé ainda é perpetuada no aeroporto pelas carcaças de aviões abandonados e hangares destruídos.
O seu périplo de golpes sucediam-se, entre 1969-1971 ao serviço de Omar Bongo na fronteira com o Congo- Brazaville,em 1974 no Curdistão contra os Iraquianos, em 1976 na Mauritania e ei-lo nesse mesmo ano no Rundu na Namíbia ao serviço da UNITA, na luta contra as FAPLA e o efectivo cubano. Com o apoio da CIA e dos Serviços Secretos franceses, Dénard recruta 35 “conselheiros técnicos”. 10 vão aterrar em Cabinda e dar apoio à FLEC, 25 engrossam as forças da UNITA no sul de Angola. Não se sabe exactamente qual foi o papel que teve, já que o sucesso então pareceu ser muito limitado. Em 1977 tenta no Benim um golpe de estado para derrubar o presidente Ahmed Kérékou, mas foi uma operação tão desastrada que no terreno ficam os documentos que comprovavam o que há muito se sabia: O envolvimento eterno dos Serviços Secretos franceses com Bob Denard. Em 1981 apoia a organização da guarda pessoal do golpista Hissene Habré no Tchad e de 1979 a 1989 continua a fazer golpes e contra-golpes nas Comores, repetindo o de 1975. Em 1995 já com 66 anos Denard faz o ultimo golpe nas Comores, mas os franceses já estavam cansados dele e “os boinas verdes” gauleses obrigam-no a negociar os termos do seu regresso a França, onde acaba por viver os seus últimos tempos, e apesar de julgado e condenado por crimes vários morre em Paris depois de um longo período de sofrimento com a doença de Alzheimer.
De 1948 na Indochina às Comores em 1995 Bob Denard foi um facínora, uma lenda, um soldado, um combatente, um oportunista, um tipo que só via dinheiro, um homem de convicções de direita, mas na realidade é que terá sido o mercenário mais famoso dos tempos modernos.
Fernando Pereira
15/10/2011

14 de outubro de 2011

LÁGRIMAS EM COMISSÃO /Ágora / Novo jornal nº195/ Luanda 14-10-2011





“LIBERDADE EM SEGURANÇA
Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e
viseira erguida.
O juiz pôs a touca com um pequeno jeito de mão direita. Afirmou
- Levante-se o queixoso.
O queixoso estava deitado. Não se levantou.
- Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os
réus? - Insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca.
O queixoso nada disse. Continuava deitado.
- Dadas as circunstâncias atenuantes e outras, declaro os três réus
inocentes. O queixoso demonstra à sociedade ser provocador. E
silencioso. Revolucionário alterante de ordem estabelecida.
Destabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se
retirem. Em segurança e liberdade.
Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continência com a mão direita.
E saíram. Pela porta da direita.
Saíram os meirinhos. Pela porta do fundo.
E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente.
Saíram todos.
O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de
informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.”
Mário Henrique Leiria
Já não é a primeira vez que me socorro do MHL para ilustrar qualquer coisa que às vezes anda no ar, mas que não temos as palavras escorreitas para a definir com precisão. Fica mais uma deliciosa história do “Gin Tónic” para lembrarmos o quotidiano.
Uma das efemérides da semana transacta foi a passagem do quadragésimo quarto aniversário do assassinato de Che Guevara. Como bem dizia uma amiga: “Não o mataram, semearam-no”!
Li o último livro do António Lobo Antunes, “Comissão das Lágrimas”, e digo apenas: foi um esforço ciclópico conseguir acabá-lo. Só o tema sobre as vicissitudes de uma ex-guerrilheira do MPLA envolvida no 27 de Maio de 1977, fez com que não o tivesse largado quase no primeiro terço.
A fase actual do ALA enquanto romancista e “opinador” gera justificadas reservas, muito longe da aura do fim dos anos setenta do século passado, em que era uma das minhas referências primeiras no conjunto dos escritores de língua portuguesa, mas este livro era portador de algumas expectativas que podiam revelar-se interessantes, que só acabaram por justificar o que há algum tempo “dispenso” da sua obra.
Os três primeiros livros que publicou numa pequenina editora, a Vega, surgida duma “dissidência” da Assírio e Alvim, a partir de 1979, “Memória de Elefante”, “Os Cus de Judas” e “Explicação dos Pássaros”, colocaram-no num pedestal tão elevado que nesta duradoura fase tem-no mantido perigosamente periclitante. Muitos dos seus livros e crónicas de outros tempos estão sublinhadas e são referências importantes numa forma idiossincrática de ver o mundo e a vida como me agradava. Os seus últimos trabalhos são penosos, e este livro é capaz de ter sido o ultimo que leio para evitar desiludir-me de forma irreparável o que não desejaria que acontecesse.
A meio dos anos sessenta a “Notícia”, uma revista referente no bom jornalismo que se fazia em Portugal e colónias, tinha uma colaboradora de grande qualidade, Natália Correia. Nessa revista, em que muitos dos seus exemplares são disputadíssimos em leilões de publicações, muita gente comprava-a pela qualidade dos trabalhos dos seus colaboradores. Dificilmente nas letras portuguesas houve alguma publicação que tenha tido colaboradores tão bons como um Pedro Tamen, Herberto Helder, Luis Pacheco, Mário Cesariny, Ernesto Lara Filho, Natália Correia e tantos outros, que no tempo do Charrula de Azevedo e do Manoel Vinhas transformaram uma revistinha de uma provinciana Luanda num espaço de cultura.
Já que se fala de cultura e escritores, leiam o último do Pepetela, “ A sul, o sombreiro”, porque é realmente cativante, na linguagem “gingada” que o autor já nos habituou, mesmo para falar de um período da história de Angola e de um Cerveira Pereira, que provavelmente o melhor que tinha e quiçá o mais confiável era o ultimo apelido.
Jorge de Sena observou um dia sobre os portugueses, que se adapta na perfeição aos angolanos: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".

Fernando Pereira
9/10/2011

13 de outubro de 2011

INSINSERAMENTE / O INTERIOR / 13-10-2011




“Onde o Santo punha o pé
nasciam rosas
e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas"
(Joaquim Namorado)
Fui companheiro de café, partilhámos cumplicidades políticas, foi meu explicador de matemática, com pouco sucesso diga-se de passagem, deu-me a conhecer José Mário Branco e Luis Cília, quando os que mandavam não queriam que as pessoas os conhecessem, foi um militante de causas na defesa da liberdade e da sociedade solidária, figura de relevo do neo-realismo, portador de palavras que eram de sonho, afecto e luta simultaneamente. Joaquim Namorado, um homem que só no ocaso da vida teve direito ao lugar de catedrático que o “Estado Novo” do “velho” usurpou de forma soez, obrigando-o a recorrer durante décadas ao expediente das explicações, intervalando com umas estadias pelos calabouços da PIDE.
Alentejano de gema, resistiu sem vacilar e sem alterar o seu compromisso político que pela relevância do seu percurso cultural na Vértice, e em associações de carácter cultural na Figueira da Foz, promoveu o seu município nos anos oitenta um concurso literário com o seu nome, atribuindo um prémio pecuniário irrisório perante a dimensão do homenageado e até premiados. Neste século um arrivista da política, que de “namorado” só se terá reconhecido no seu perfil narcísico quando desfolha a “Caras” ou revistas do tipo, decidiu pura e simplesmente acabar com o referido prémio. Pedro Santana Lopes, que até já foi primeiro ministro de Portugal (!!!) substituiu “Prémio Joaquim Namorado”por foguetório para animar a populaça a banhos na Figueira da Foz.A quem colocou Chopin a tocar violino não se podia exigir mais!
Somerseth Maugham gostava de dizer que um dos aborrecimentos da vida é ser mais fácil abandonar os bons hábitos que os maus. A grande qualidade contemporânea da maioria da classe política que vai polvilhando a administração local e central é a sua falta total e absoluta de sinceridade. Maus hábitos começam a transformar-se cada vez mais em farsantes e o que acaba por ser ainda mais deprimente, é que a maioria das pessoas também acaba farsante porque acredita no que dizem e nunca fazem, argumentando e jurando a pés juntos que não acreditam neles. Como dizia outro farsante Oscar Wilde, “um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal” . É isso!
Contudo não se deve confundir classe política com a política, ou com a discussão política e as ideologias, por mais pueris ou idealistas que pareçam. Voltou a ouvir-se insistentemente os velhos clichés de outros tempos em “que a minha política é o trabalho”, “os políticos são todos uma merda” ou “a política não dá pão a ninguém”, etc. A realidade é que há politiqueiros que se fazem na politiquice, ganham o pão e querem que as pessoas achem que sem eles a terra não gira e o sol nunca aparece! Foi essa retórica, ou parecida que fez florescer as ditaduras e democracias travestidas de conceitos neoliberais, por isso olho sempre com reserva esse léxico. A desilusão acumula-se quando participo em sessões ou jantares de cariz partidário e ouço a maior parte dos intervenientes, onde faltam ideias e sobra cada vez mais intriga pessoal sobre o desmando de certos mandos.
Jorge de Sena, na sua angústia perpétua, na longa distância do exílio onde os tiranetes parecidos com alguns que por aí andam, o colocaram disse: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".
Fernando Pereira
10-10-2011

11 de outubro de 2011

Entrevista que fiz a André Mingas em 6-2-2011 e depois publicada no Novo Jornal nº165 de 18-3-2011 em Luanda /Colocada neste blog no dia da sua morte.





1-André Mingas, Nietzche definiu arquitecto como “música parada no tempo”. Partilha esta opinião de que homem músico, artista plástico e arquitecto são tudo o mesmo?

André - Não, de modo algum! Hoje a arquitectura, mais do que desenho, ela é a maior expressão das artes, na medida em que engloba não só o desenho das claves musicais expressas nos traços do arquitecto, mas também o teatro através da expressão, às vezes dramática ou alegórica tão comum a alguns edifícios na cidade, a dança, graças aos movimentos circulares (Niameyer) patentes na geometria descritiva, fonte inesgotável do acto conceptual. Mas ela vai mais longe, pois corporiza as artes plásticas que, mercê das formas e da estrutura cromática dos tons, se interligam com as cores dos interiores e exteriores das habitações, produzindo estados de espírito que vão desde a tranquilidade, ao desequilíbrio emocional, da energia à depressão, enfim, ao estado de entrega a novas actividades que geram saúde, disposição para a vida, predisposição para o amor e para a arte. O arquitecto é um gestor de vazios e silêncios, capaz de fazer surgir uma obra notável, num espaço onde antes apenas reinava impune, a subtileza do silêncio!

2-O AM acompanhou o crescimento de Luanda nos últimos sessenta anos, e simultaneamente foi actor e espectador de transformações sociais que houve neste período. Ajude-nos a perceber este crescimento no olhar de um arquitecto e simultaneamente agente cultural e político.

André-Luanda tinha duas opções no período pós-independência, a saber, uma primeira, que seria permanecer estruturalmente como era e, de forma multidisciplinar, definir critérios para a avaliação e preservação da sua história construtiva, valorizando a sua qualidade maior que seria a prestação de serviços sustentados pelas potencialidades turísticas que sugerem a ilha, a baía e uma marginal como a nossa; e a segunda, ser intervencionada na base da actualização do plano director da cidade, à época, gerando novas centralidades - aqui entendidas como núcleos autónomos, potenciados pelas necessidades essenciais dos seus habitantes. Infelizmente o advento da guerra precipitou um conjunto de situações que levaram às actuais sobrecargas a que a cidade está submetida, inviabilizando quaisquer programas de estruturação da mesma, não obstante os processos evolutivos levados a cabo pelo Governo e que me parecem notáveis e verificáveis.

3-Quando perspectivamos uma cidade, fazemo-lo num contexto de ser a melhor possível para o quotidiano de vida dos seus cidadãos. No contexto actual atrevo-me a dizer que pior é impossível. È irreversível alterar o quadro geral da “desorganização” da cidade?

André - A caracterização é sua! Mas não me parece que seja irreversível o actual quadro da cidade. Pode levar algum tempo, mas não a creio impossível. A imagem da cidade ou da província é sempre o resultado da organização funcional de cada um dos seus municípios. Qualquer cidade que consiga vincular os seus municípios a programas executivos claros, tendo como pressupostos da sua acção questões como: o saneamento básico, a segurança, a saúde, a educação, o entretenimento, espaços verdes estruturados em parques e praças (evitando deste modo os grandes níveis de impermeabilização dos solos), a autoridade e os serviços públicos desconcentrados, para gerar emprego com a componente de uma maior proximidade dos serviços aos seus munícipes, têm possibilidades inimagináveis de sucesso.
Outro dado fundamental é a interligação viária de cada um dos municípios com o resto da cidade (grandes eixos) como forma de incremento da mobilidade tornando-se naturalmente numa cidade desanuviada, organizada, e regularizada sob o ponto de vista funcional.

4-O contexto da cidade de Luanda deve ser encarado como uma cidade africana, em todos os seus vectores culturais e económicos, incrustados nas relações que se estabelecem entre os seus habitantes. Mas todas as cidades em qualquer parte do mundo têm o chamado centro cívico, que Luanda já teve no tempo colonial, mas que foi perdendo com o tempo. Não seria um bom começo, para o que ainda se pode vir a fazer pelo ordenamento da cidade?

André - O conceito de centro cívico, característico das cidades radioconcêntricas como Luanda, tinha subjacente a ideia da concentração num local da cidade de um conjunto de serviços de prestação de assistência ao cidadão, que, no caso em apreço, seria a Mutamba! As tendências (linhas) de evolução facilmente observáveis na cidade, conduzem-nos a uma nova interpretação da mesma: A cidade deve criar núcleos habitacionais sim, interligados sob o ponto de vista da malha viária, mas autónomos sob o ponto de vista funcional, gerando, concomitantemente à habitação, infraestruturas necessárias e níveis de proximidade dos serviços que contribuam para fixação das pessoas nos seus locais de habitação. A cidade é o grande palco cujos actores e artistas somos todos nós, por isso tem que ser vivenciada com criatividade pelos seus cidadãos com alegria e satisfação!

5-Luanda hoje é uma cidade engarrafada, e as soluções para a circulação e estacionamento das viaturas são esquecidas, quando os prédios cada vez mais altos invadem o centro da cidade. Nas sociedades modernas tirar automóveis do centro das mega-cidades transformou-se quase numa fobia. Porque é que cada vez mais continuamos a construir prédios altos e espelhados, e no que deviam ser parqueamentos, temos que colocar geradores enormes e grandes centrais de ar-condicionado, com todos os nefastos efeitos ambientais decorrentes?

André - O erro, salvo melhor opinião, não estará nos edifícios altos, desde que controlados os níveis de impermeabilização do solo pelo excesso de betão ou de asfalto. Uma cidade sufocada por habitações degradadas, com um núcleo urbano tão pequeno como o de Luanda, tem que gerir e rentabilizar da melhor forma possível, o espaço que possui. Daí que a construção em altura seja naturalmente recomendável sem descurar a qualidade estética e projectual da sua edificação. Só que este pensamento deve, concomitantemente, propicar como política de Estado, a circulação pedonal - enquanto acto de socialização e de saúde pública - zonas verdes na envolvente do edificado em altura, para contrapor os efeitos da incidência solar sobre o betão, gerador de ondas de calor que contribuem para o aquecimento global da cidade.
Finalmente, parece-me sensato e recomendável, um maior rigor na aplicabilidade da lei que obriga a criação de estacionamento subterrâneo ou em altura no edifício (nalguns casos vem sendo feito), como princípio conceptual do próprio projecto, o que permitirá libertar a cidade dos actuais níveis de tráfego, gerando espaços que previlegiem o ser humano e a humanização da sociedade.

6- Na ausência de um Plano Director Municipal, de Planos de Pormenor, de zonas classificadas, de uma catalogação recente de Monumentos Nacionais ou Imóveis de Interesse Local, e outra legislação, que instrumento tem sido usado para a contínua descaracterização da cidade, algo que já vinha do tempo colonial e que o actual “boom” económico só veio a evidenciar de forma negativa?

André - O Governo criou um instrumento (IPGUL) que, repensado, transformar-se-á num instrumento essencial à cidade e à Província. Entretanto, a opção tem sido o recurso aos planos de urbanização, como aconteceu agora com os bairros do Sambizanga, Bairro Operário e Cazenga, com soluções integradas no sistema viário para garantir maiores níveis de mobilidade urbana. Esta acção permitirá manter algum nível de controlo sobre o processo evolutivo da cidade, recenseando cidadãos, integrando zonas degradadas no espaço urbano, tirar cidadãos da clandestinidade conferindo-lhes cidadania, levar espaços e praças verdes como alimento à sede inesgotável de comunicção (que persiste como cultura nos musseques), controlar e combater o desemprego, a criminalidade, apostar na segurança e no incentivo a ciência e tecnologia através da vulgarização da internet garantindo assim conhecimento, cultura e qualidade de vida.
Por outro lado, far-se-á, de forma equilibrada, o aproveitamento de um espaço ímpar (musseques) para o crescimento e dignificação do cidadão e da cidade.

7-Não seria oportuno que se criasse com carácter de urgência para Luanda, algo do tipo “Sociedade de Reabilitação Urbana”, de forma a fazer rápido o que qualquer cidade tem que ter para se tornar local de vida e não um lugar de sobrevivência?

André- Em minha opinião, os movimentos cívicos são sempre muito importantes, pois dão-nos não só a percepção da real massa crítica da sociedade, mas também a possibilidade de melhor nos percebermos das opções dos cidadãos na procura da satisfação das suas necessidades. E neste particular, considero o exercício democrático da adopção do conceito da gestão particpativa das cidades, uma solução aplicável conduzindo a bons resultados na medida em que os cidadãos tomam contacto com as grandes acções a que o Estado se propõe, podendo contribuir, de forma positiva, para o enriquecimento da vida e da funcionalidade da sua comuna, município ou cidade, reforçando em definitivo o sentido de cidadania e o espírito democrático que subjaz à postura do Estado.

8-É ainda possível construir uma cidade com transportes públicos a funcionar, um equipamento escolar e de saúde acessível a um conjunto significativo de cidadãos, parques onde simultaneamente se estimulasse o convívio e o lazer dos moradores, estabelecimentos comerciais, serviços públicos, em síntese, algo que do tipo do que foi dito na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2000 que diz:” A cidade é um habitat humano que permite com que pessoas formem relações umas com as outras em diferentes níveis de intimidade, enquanto permanecem inteiramente anónimos”?

André- Sem dúvida. Nós temos no País velhas vilas coloniais a que chamamos cidades. Em minha opinião, precisamos/devemos intervir com planos estratégicos de desenvolvimento, aproveitando o facto de as nossas cidades se terem desenvolvido muito pouco, para gerar um novo conceito "de cidade", consubstanciado numa educação que tenha como base a ciência e a tecnologia, a cultura, a promoção e defesa do meio ambiente, através da preservação da pujante natureza de que somos portadores, atendendo à transversalidade desta matéria. É igualmente importante fomentar a criações de novos postos de trabalho como factor de fixação dos cidadãos nos seus locais de habitação, assim como a mobilidade, a segurança, o bem-estar social e a circulação pedonal que torna permeável a socialização.

9- Porque isto é uma entrevista “sem rede”, em que o AM se disponibilizou a responder a tudo, posso perguntar-lhe que sentiu um arquitecto quando deitaram abaixo o Palácio D. Ana Joaquina, os Coqueiros, o mercado do Kinaxixe ou ainda mais recentemente a emblemática estação de Caminho de Ferro da Catumbela?

André - Angola deve corporizar à imagem da sua história construtiva com obras notáveis realizadas pelos seus filhos, incluindo as peças emblemáticas deixadas pelos seus colonizadores, cuja história não se apaga naturalmente. Mas não se pode negar à Nação, o direito de definir o que, sob o ponto de vista histórico, arquitectónico e estético, deve ou não permanecer nos seus principais centros urbanos, como elementos referenciais da sua história construtiva, particularmente quando o conjunto de memórias pertence apenas a uma ou duas gerações específicas.
A história deste Estado Novo e Democrático que vem ganhando corpo, não pode ser feita apenas com o rosto da tortura, da escravatura, das dores acumuladas pelas humilhações de que foram vítimas os nossos ancestrais durante vários séculos, relatos de derrotas e imagens do pensador. Enquanto Nação, temos uma história gloriosa e ela deve estar patente nas formas físicas da cidade incluindo na estatuária. Este é o meu tempo e como cidadão e arquitecto, recuso-me a adoptar uma cultura de contemplação relativamente ao que, ousadamente, as outras gerações nos legaram. É preciso reivindicar o direito e o espaço que o tempo nos confere, para deixar marcas da minha e nossa geração no território, fazendo história!

10- O que sente o arquitecto, quando vemos o Dondo, Massangano, Cambambe e outros centros históricos, monumentos e sítios a degradarem-se de tal forma que torna irreversível o seu talvez desejável desaparecimento?

André - É uma questão de sensibilidade extensiva a todos os cidadãos independentemente das suas qualificações, visto que o património diz respeito a todos nós. Mas, por outro lado, é preciso não generalizar a ideia segundo a qual o edificado torna-se património apenas porque é antigo e nunca como parte integrante e indissociável das nossas memórias. No caso em apreço, que se traduz num detalhe gritante e apelativo a todos, é preciso que as instituiçoes a quem o Governo atribuiu responsabilidades, proponham planos e programas de revitalização histórica, planos suficientemente sustentáveis, de salvaguarda do património, para que sejam convincentes e se tornem objecto de orçamentos direccionados para a preservação da história física da cidade.

11- O ensino da arquitectura em Angola desde a fundação da primeira faculdade no fim dos anos setenta tem permitido aumentar a qualidade dos formados pelo que perguntaria se tem sido simultaneamente dadas condições aos docentes para potenciarem novas experiencias adequadas à realidade angolana em transformação nestes trinta anos de “mobilidade politica, ideológica e económica”?

André- Mais do falar mal da escuridão é preciso acender uma vela.
Por questões deontológicas não quero, não devo, nem posso pôr em causa o esforço notável dos meus colegas que se dedicam actualmente, ao ensino da arquitectura. Mas sinto cada vez mais necessária e imperiosa a criação de dispositivos de suporte e de apoio ao trabalho que estas instituições de classe realizam de modo a que tragam para as faculdades de arquitectura - pela interacção que ela gera com o cidadão - mais-valias que se traduzam em apostas claras na ciência e tecnologia, através de protocolos de intercâmbio com as grandes faculdades do mundo.

Só assim será possível trazer a Angola pessoas para vivenciarem o pensamento novo gerado pelos aquitectos angolanos, fazendo das nossas cidades referências de tal grandeza, que mais ninguém saia de Angola e se deslumbre com Paris, o Rio, ou Roma.

12-Qual é a posição do arquitecto angolano, quando vê implantar num local da cidade um edifício igualzinho a outro que existe noutra qualquer latitude do mundo, e vê serem pagas fortunas por um projecto que não passa de uma fraudulenta fotocópia a uns arquitectos estrangeiros pouco escrupulosos?

André Mingas - Como deve imaginar, é dolorosa esta constatação, mas não se pode responsabilizar tão-somente o Governo. Neste caso concreto, a ordem dos Arquitectos terá que intervir propondo critérios que contribuam acima de tudo para a valorização e estímulo do trabalho dos arquitectos angolanos. Mas como deve imaginar é extremamente difícil gerir uma cidade onde noventa por cento dos cidadãos se considera arquitecto, produzindo, por iniciativa própria, alterações nas suas habitações, desactualizando o cadastro da cidade, gerando uma desestruturação generalizada do bairro e da cidade de um modo geral. A responsabilidade recai naturalmente sob quem aceita e aprova estes projectos, não reage, concede licenças e não pune!

13- Vamos sair de Luanda e vamos ao Lobito, Benguela, Namibe, Lubango e Huambo, onde talvez seja possível fazer alguma coisa, já que a voracidade do cifrão ainda não é tão acentuada!

André- Luanda e Benguela são hoje os maiores centros de emprego do País e é justificável que as pessoas procurem as cidades do litoral num esforço de sobrevivência. A viragem para o interior através da criação de polos regionais de desenvolvimento, com apostas claras, por exemplo, na agricultura, indústria extractiva quer de minérios, quer de produtos pesqueiros e materiais de construção, pode constituir um fantástico gerador de emprego, suficientemente atractivo para provocar o boom do desanuviamento de Luanda na busca de melhores condições de vida. Estes factores, aliados a serviços como a saúde pública, a educação, a preservação ambiental, a identidade e as culturas regionais, pesarão bastante nas opções de deslocação para a capital.

14- Qual o papel do arquitecto na Angola do futuro?

André - Pensar o País e perspectivá-lo como uma Nação que se comprometa com o futuro, pensando e projectando para lá do edifício sem se deixar afectar pelo imediatismo. Tendo como base a riqueza da versatilidade da sua formação, os arquitectos e urbanistas angolanos de hoje e do futuro são uma classe potencialmente privilegiada, porquanto são profissionais que têm pela frente um País fantástico, sedento de acções que o dignifiquem, "abençoado por Deus", de beleza inegável, inexplorado e com esta grandeza espacial, que se constitui num incomensurável mundo de oportunidades para idealizar verdadeiros sonhos de cidades e centralidades.

É fundamental interiorizar a ideia segundo a qual, o projecto de arquitectura, mais do que uma obra, tem de ser gerador de uma nova cultura estética, construtiva de base identitária, assente nos valores da cultura local, à qual tem que estar subjacente, um compromisso claro com o futuro e a contemporaneidade, a bem do cidadão, das cidades e da Nação Angolana!


Entrevista feita por Fernando Pereira a André Rodrigues Mingas Junior em 6-02-2011

Neste dia triste em que morreu uma voz que em vida nunca se calou pelo melhor para Angola!

7 de outubro de 2011

DE MAO A PIAO / Ágora / Novo Jornal nº 194/ Luanda 7-10-2011






Quando cheguei aos cinquenta e cinco comecei a dar-me conta que não terei tantos cacimbos como os que já tive e dificilmente tornarei a ter tempos tão bons, por mais estabilidade que tenha na minha vida pessoal, profissional, e situação económico.
"Se há coisa de que tenho pena é o cinismo que traz a idade. Tenho saudades do tempo em que acreditava que tudo era possível, que podia mudar o mundo, que não havia limites para o meu engenho e perseverança. Ganha-se em maturidade o que se perde em sonho".
Mudando de assunto, porque não é absolutamente nada importante estar a fazer exercício catártico, acabei de me lembrar que faz este mês trinta e cinco anos que morreu Rex Stout, o criador do Nero Wolf, detective obeso, amante das orquídeas e da boa mesa e que na obra completa editada pela saudosa “Colecção Vampiro” , apenas saiu de casa uma vez num total de quarenta e seis livros. Sem acabar por ser o meu herói, esse é mesmo Philip Marlowe de Raymond Chandler, o Nero Wolf e o seu ajudante Archie Goodwin eram os que me ajudavam a descobrir prazeres, hoje corriqueiramente designados de gourmet, no meio de absurdos enredos policiais. Era um Sherlok Holmes com mais requinte e menos cabotino na acção.
Em Setembro comemorou-se o trigésimo quinto aniversário do falecimento de Mao Tsé-Tung, provavelmente a figura política mais controversa e “omitica” de todo o século XX.
Aqui há uns anos fiquei entusiasmado com a leitura dos “Cisnes Selvagens”, de Jung Chang, uma professora doutorada no Reino Unido em York em 1982, depois de um percurso que passou desde guarda vermelha, agricultora, metalúrgica e electricista, tendo estudado inglês o que lhe valeu tornar-se leitora assistente na Universidade de Sichuan.
Há cerca de quatro anos, num fôlego li um “tijolo” de oitocentas e cinquenta páginas do livro “Mao, a História Desconhecida” de Jung Chang em colaboração com o seu marido Jon Halliday, especialista na história da União Soviética. Este livro é uma pungente descrição do que foi a ascensão do Maoismo na China, em que autora viveu, conviveu, partilhou e apoiou muitas das situações que hoje parecem-se no mínimo do domínio de um quase estado de catatonia colectiva.
Nunca partilhei ideias maoistas, mesmo num tempo em que começaram a ser moda em universidades na Europa nos anos sessenta e setenta, um pouco para combater algum imobilismo em que tinha caído o movimento comunista internacional após as sucessivas subidas ao poder de Krutschev e Brejnev na União Soviética. O “aburguesamento” e a “burocracia” eram as acusações que o maoísmo fazia ao período post-Staline em relação aos partidos comunistas alinhados com o PCUS.
Este livro é uma história terrível de um mundo que urge ser expurgado de determinadas mentalidades que não permitam desmandos que a coberto de uma “revolução cultural” se desprezaram valores caros ao marxismo e à construção de uma mentalidade de homem solidário e participativo numa sociedade onde as diferenças de classes se esbatessem.
Mao foi um sátrapa, e é assim que a história tem que ser reescrita.
Para não ser tudo mau conto-vos a história de um quadro dirigente angolano numa visita à China num contexto de uma visita de “Amizade e Estado”. Iam num comboio visitar uma cidade onde havia um centro siderúrgico importante, e depois de algumas horas de viagem, o homem diz: “Estes tipos ainda falam mal de nós, há duas horas que só vejo capim”; Escusado será dizer que estava a falar de campos de trigo! Quando se começou a aproximar da cidade, que me deslembro o nome, e era de noite, virou-se para o resto da comitiva e disse: “Uma cidade como o Uije”.; A cidade tinha uma população de setecentos mil habitantes e era só um dos maiores centros de industria pesada do País. Nalguns detalhes somos inultrapassáveis.
Sem querer alimentar discussão estéril, começo a achar que o José Agualusa usa a questão da poesia do Agostinho Neto como marketing, pois faz coincidir esta polémica normalmente quando tem um novo livro para apresentar. Tem sido recorrente nos últimos tempos isso acontecer, mas acho que é completamente desnecessário esse recurso já que escreve magnificamente e tem um publico fiel que o aprecia, onde me incluo. Li “A educação sentimental dos pássaros”, um conjunto de onze contos, e apesar de não ter sido o melhor “Agualusa” é um livro interessante que destoa positivamente da vulgaridade. Desprecisa mesmo de procurar chamar a atenção com outras coisas. Basta escrever!

Fernando Pereira
4-9-2011

1 de outubro de 2011

A MINHA MANIFESTAÇÃO É MAIOR QUE A TUA!/ Ágora / Novo Jornal nº 193 / Luanda / 30-9-2011







Guardo propositadamente o tema do título para o final e entretanto vou-me entretendo com outras efemérides.
Há quarenta anos a prestigiada editora francesa “Le Chant du Monde” publica um dos discos marcantes da música brasileira de intervenção: “Brésil Sertão & Favelas”, na bela voz da quase esquecida Zélia Barbosa.
O disco tem músicas que se tornaram iconográficas no contexto de luta contra as ditaduras que polvilhavam a América do Sul e Central, África e europeias no dealbar dos anos setenta, num mundo em que o que é a globalização chamava-se então imperialismo. Léxico diferente para os mesmos resultados, num ano em que se comemora o quinquagésimo aniversário do assassinato de Patrice Lumumba, defensor de uma África onde riqueza fosse distribuída pelos seus povos.
Voltando ao disco, onde estão canções como “A canção da terra”, “Funeral do Lavrador”, “Pau da Arara”, retenho os versos da “Cicatriz” : "Pobre não é um/pobre é mais de dois,/ muito mais de três./E vai por ai e vejam só: Deus dando a paisagem/metade do céu já é meu/Pobre nunca teve gosto ;/ a tristeza é a sua cicatriz./Reparem bem que só de vez em quando/pobre é feliz"...
Por muito disto é que despercebo porque é que o reino dos céus é para os pobres. Não seria melhor repartirmos e o reino da terra e dos céus e tudo ser para todos por igual? Porque é que há-de haver privilegiados no Eden?
Vários autores anunciaram a saída de vários discos em Luanda, e não sei se a propósito lembro-me de um episódio ocorrido nas páginas de um jornal de efémera existência, o “Página Um”! José Jorge Letria é um talentoso poeta, excelente músico e dinâmico activista cultural, mas com a voz que de canora tinha pouco. Era pejorativamente alcunhado pelo “Bardo” numa associação ao cantor Assurancetourix, trovador da aldeia gaulesa de Astérix, a intemporal BD de Goscinny e Uderzo.
Quando anunciou que ia sair com novo disco o comentário do articulista de música foi “Chiça, mais um?”. Letria indignou-se e exigiu o direito de resposta, argumentando que já tinha uma vasta obra de dez títulos publicados, etc., ao que o articulista colocou em nota de rodapé: “Por causa exactamente disso é que te pedimos insistentemente que pares”. Tenho ideia que JJ Letria nunca mais gravou nenhum disco e dedicou-se apenas à poesia e ao conto, onde de facto é excelente. Acautelem-se pois os que prometem novos discos, porque alguns já nos andam a azucrinar os ouvidos há décadas, e pode haver quem dê voz ao “atentado”
Falou-se de gente que foi fazendo coisas bonitas e conseguiram ser coerentes com a beleza das coisas que produziam. Houve outros que fizeram coisas bonitas, fizeram sonhar milhões de crianças ao longo de muitas gerações, mas que se revelaram no seu comportamento político e cívico como autênticos biltres, para não ser mais incisivo e poder escorregar para o destempero da linguagem.
Faz cem anos que nasceu Walt Disney, o criador do Mickey Mouse, do Pato Donald e uma miríade de figuras da banda desenhada que correu o mundo ao mesmo ritmo que a Coca-cola, General Motors e a omnipresença americana se espalhava pelo mundo no pós-guerra.
Disney foi uma figura incontornável de um universo de sonho, contudo não deixou de se enredar na lama quando passou a ser colaborador do MacCartismo através de uma sórdida organização: "Aliança do Cinema para a Preservação dos Ideais Estadunidenses", que arruinou carreiras e vidas de actores, realizadores, fotógrafos, argumentistas, escritores, um conjunto enorme de intelectuais que foram banidos por simples menção a um eventual alinhamento de algo que tivesse a ver com ideias de esquerda. Um homem que teve tudo para ser uma lenda e pelo seu anti-comunismo associado aos seus traumas de infância, acabou por se juntar à baixaria que promoveu uma época de terror na intelectualidade estadounidense.
Depois não digam que não falei das manifestações em Luanda. Basta ver o título!

Fernando Pereira
27-9-2011
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