15 de junho de 2018

Quase Memória! / Novo Jornal / Luanda 15-6-2018





Quase Memória!
Assistir a um Campeonato do Mundo depois de ter visto um Brasil-Itália no Mundial de Espanha de 1982, é um esforço que só o futebol enquanto movimento de massas consegue mobilizar-me para acompanhar sem grande entusiasmo.
                Esse jogo marcou o fim do futebol romântico, em que um Brasil com uma seleção de eleitos, jogando de forma prazenteira e com um nível de execução admirável acabou por perder o jogo decisivo contra uma Itálica cínica e pragmática, conquistando o campeonato do mundo.
                Coletivamente foi a melhor seleção que vi a jogar à bola, esse Brasil de Falcão, Sócrates, Júnior, Zico, etc. e por mais futebol que veja desconsigo ver noutros a beleza do futebol desse Brasil de 1982.
            Como já sou novo há muitos anos, ainda me lembro de ver jogar Pelé em dois Mundiais, no de 1966 onde agravou uma lesão, e em 1970 no México onde a seleção do Brasil passeou a sua classe aliando a suprema técnica e habilidade de de Pelé aos talentosos Carlos Alberto, Gerson, Tostão, Rivelino, Jairzinho, Clodoaldo e outros. Pierre Paolo Passolini, o cineasta e poeta italiano, precocemente desaparecido de forma trágica, escreveu sobre a final que o Brasil venceu a Itália por 4-1: “O futebol de prosa é o do chamado sistema (o futebol europeu). Nesse esquema, o golo é confiado à conclusão, possivelmente por um “poeta realista” como Riva, mas deve derivar de uma organização de jogo coletivo, fundado por uma série de passagens “geométricas”, executadas segundo as regras do código (nisso Rivera é perfeito, apesar de Brera não gostar, porque se trata de uma perfeição meio estetizante, não-realista, como a dos meio-campistas ingleses ou alemães).
O futebol de poesia é o latino-americano. Esquema que, para ser realizado, demanda uma capacidade monstruosa de driblar (coisa que na Europa é esnobada em nome da “prosa coletiva”): nele, o gol pode ser inventado por qualquer um e de qualquer posição. Se o drible e o gol são o momento individualista-poético do futebol, o futebol brasileiro é, portanto, um futebol de poesia. Sem fazer distinção de valor, mas em sentido puramente técnico, no México [em 1970] a prosa estetizante italiana foi batida pela poesia brasileira.”
                O futebol é poesia e João Cabral de Melo Neto, poeta brasileiro fez ao futebol um poema que sintetiza a dimensão de algo que é mais que desporto: O Futebol brasileiro “A bola não é a inimiga/ como o touro, numa corrida;/e, embora seja um utensílio/caseiro e que se usa sem risco,/não é o utensílio impessoal,/sempre manso, de gesto usual:/é um utensílio semivivo,/de reações próprias como bicho/e que, como bicho, é mister/(mais que bicho, como mulher)/usar com malícia e atenção/dando aos pés astúcias de mão.”
                Johan Cruyff foi outro dos grandes jogadores que fui vendo espalhar perfume nos estádios de um Mundial. Para além da forma elegante como jogava, tudo fluía a preceito numa seleção que coletivamente era mesmo uma “laranja mecânica”! Cruyff que para além de um talento imenso enquanto profissional de futebol, era um homem de princípios e grande coerência na sua forma de usar a sua cidadania plena, e nesse contexto recusa liminarmente a ida à Argentina para o Mundial de 1978 para não caucionar os assassínios e prisões por parte dos militares que chefiavam a ditadura militar. A Argentina depois de muita violação do espírito desportivo venceu o Campeonato do Mundo, mas a grande estrela acabou por ser o ausente Cruyff.
                Em 1986 o Mundial volta ao México, por renuncia de uma Colômbia economicamente depauperada e com uma guerrilha interventiva. Aqui surge outra das lendas tangíveis do futebol mundial, Diego Maradona, que seis anos antes tinha deslumbrado o mundo do futebol quando a Argentina ganhou o campeonato do Mundo de Juniores em Tóquio. Foi um privilégio de todos os que pudemos assistir a este Mundial e ver jogar Maradona, porque a sua forma de lidar com a bola era inigualável.
                 No filme “O filho da noiva, de 2001, o personagem Rafael, interpretado por Ricardo Darín, chama um amigo ator para fazer as vezes de padre e realizar o sonho do pai, já idoso levar a mãe, então com Alzheimer, até o altar. Depois, na receção aos convidados, ao observar o sacerdote fajuto conversando com um garçom, dizendo que “Ele deu alegria a milhões de pessoas e depois esses mesmos fanáticos o crucificaram”, Rafael adverte: “Acabou o show, chega deste negócio de Cristo”. A resposta do falso padre: “Que Cristo? Estou falando de Maradona”.
                Este episódio é revelador do que foi a gestão do caos na carreira de Maradona, um homem com um percurso profissional acidentado, em termos de vida com momentos menos bons, mas ao mesmo tempo com um espírito solidário e irreverente, descontextualizado do padrão em que se quer transformar o jogador de futebol. Ele foi estrela porque foi só o melhor de todos, e quando é chamado a optar, fá-lo pelos mais fracos e partilha a luta dos que querem um mundo melhor, mais igualitário e menos disponível para as arbitrariedades dos poderosos.
                Esta é o primeiro de uma sequencia de artigos sobre o Campeonato do Mundo, por isso cá viremos em breve.
                Fernando Pereira
13/6/2018

Nem prós nem contras / O interior/ Guarda 15-6-2018




Há cerca de quinze dias aceitei “violentar-me” e eis-me a ver o “Prós e Contras”.
Em relação ao programa deixei há muito de ter reservas, ultrapassei a fase pueril e deixei pura e simplesmente de ver. A jornalista que conduz o programa tenta dar uma imagem de moderadora, até ao momento em que os intervenientes estão em desacordo com o que ela julga que pensa, e vai daí entra num estado de “mordedora”, não conseguindo disfarçar a sua opção de classe, no caso falta dela!
Como estava de sobreaviso, a falta de qualidade do programa acabou por nem me surpreender e, sinceramente, se o “movimento pelo interior” estivesse à espera que este espaço sensibilizasse uma ou outra pessoa para algum problema do interior desengane-se. A pobreza da quase generalidade dos argumentos colocados num espaço de “prós e prós” deixaram grande maioria dos poucos que o viram defraudados, por mais baixas que fossem as expectativas sobre o programa.
Desvou repetir a ladainha que ocasionalmente vou debitando nas intervenções publicadas, acho que nem assumem foros de pública, mas o interior está enterrado há décadas e por isso assumido no quadro mental do português embora ninguém goste de o partilhar publicamente.
Pode haver muito boa vontade, sucessivas reuniões, discursos e cerimónias de circunstância, porventura uma ou outra medida avulsa, o essencial é o que cá vivemos e a única visibilidade que temos são fruto de tragédias como o fogo ou, no Inverno, quando aparecem uns jornalistas a perguntarem às pessoas se está frio, ou como é a sua vida com neve! Acresce a isto os estafados discursos de governantes, autarcas e “comentadeiros” de serviço sobre uma causa que rapidamente desabraçam!
Para se ter uma ideia da contínua degradação a que isto está a chegar dou este exemplo vivido a cores e em direto: estou a escrever este artigo num Intercidades que invariavelmente sai atrasado da Guarda, sem água nas casas de banho imundas, e outros pormenores com que a CP brinda quem paga! Este serviço quando começou há vinte anos demorava ao tempo vinte minutos menos que hoje, no mesmo percurso entra a Guarda e Lisboa!
Portugal é um interior profundo, salvo o Porto (estendido a Aveiro e Braga) e a macrocéfala Lisboa, capital do “Impériosinho” (inclui Setúbal, uma parte do distrito de Santarém e um pouco acima das emblemáticas Linhas de Torres das Invasões Francesas).
O interior precisa de gente pois, mas só uma indesejada desgraça com a comunidade portuguesa na Venezuela ou África do Sul pode dar uma ténue esperança ao repovoamento deste vasto território, fora de Lisboa onde até as decisões mais comezinhas acontecem, excetuando o título de campeão nacional de futebol que o meu Futebol Clube do Porto resgata para dar algum valor ao resto do país.
Um movimento de africanos ou do Médio Oriente seria uma solução, mas os locais olham-nos com relutância, esquecendo as suas convicções cristãs e a herança de povos ancestrais que deixaram saber nas terras que hoje habitamos, e que ainda vai fazendo parte do nosso quotidiano de ruralidade.
Era bom que se deixasse o folclore politiqueiro e deixemo-nos de pedir centros de decisão no interior. São importantes boas decisões sobre o interior, mas isso é algo que nos fomos desabituando há muito e mesmo os eleitos, melhor elegidos, por cá fazem o jogo dos que são sufragados pelos de lá e no fim demagogisa-se tudo!
Quando na emblemática Serra da Estrela, concessionada sem critério a privados, em fins de semana de enchente julgando estarmos em plena 2ª circular em Lisboa, vemos à venda pantufas de Alcanena, queijo de Sever do Vouga, pólen da China, varas de Loures, entre outras bizarrias, tudo com o pomposo nome de “produto regional”, estaremos mesmo à espera que mude alguma coisa?
Voltando ao programa, não queria deixar de perguntar que estava lá a fazer aquela plateia de eleitos (o Bispo é nomeado) tipo “feira de vaidades”, com nula ou irrelevante intervenção no debate!
Até ver, tudo de pouco que tem mudado é para ficar tudo rigorosamente na mesma!

 Fernando Pereira
10/6/2018

Expresso 27/4/1991


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