18 de março de 2011

LEITURAS / Ágora / Novo Jornal / Luanda / 18-3-2011




Na semana passada na minha tertúlia, onde naturalmente também se faz um pouco de má-língua, tivemos uma discussão muito interessante sobre a obra literária de Henrique Galvão.
A realidade é que ao longo da discussão que revelou um ou outro conhecedor da obra completa do capitão Galvão, fiquei interessado em melhorar os meus conhecimentos de uma personagem ostracizada, mas que na realidade deixou um verdadeiro manancial de informações sobre Angola, que talvez merecesse estudos detalhados.
Henrique Galvão era um proto colonialista, acérrimo defensor do império colonial português que fez o seu debute político no Integralismo Lusitano de Rolão Preto, António Sardinha e Pequito Rebelo. Este grupo numa visão muito simplista da história política a ala mais à direita do corporativismo salazarista em que a maioria dos seus activistas foi perseguida, presa ou mandada para o degredo (Rolão Preto esteve em Angola nessa condição). A sua evolução no percurso salazarista levou-o a Comissário da Exposição Colonial no Porto em 1934, depois director da então Emissora Nacional, posteriormente governador da Huíla, incompatibilizando-se com Salazar no decurso da sua actividade parlamentar enquanto deputado por Angola em que verberou a política racial e desumana que os trabalhadores angolanos eram vítimas das autoridades administrativas e empresas na então colónia.
Na sequência de um relatório muito cáustico em relação à promiscuidade entre os poderes central e local, os angariadores ou negreiros e os comerciantes e grandes companhias coloniais foi detido, expulso do exército e preso com o argumento de conspiração. Consegue a fuga em 1959 de um sétimo andar do Hospital de Santa Maria em Lisboa, episódio rocambolesco de um homem que driblou sempre Salazar e seus sequazes.
Influenciado por África, escreveu textos brilhantes sobre a fauna, a flora e a caça em Angola, autenticas pérolas literárias e ilustradas de uma pessoa de enorme ligação a um território imensamente rico e diversificado na sua natureza ainda imaculada. É uma pena que essa obra se encontre esgotadíssima, e quando aparece algum livro num alfarrabista é a preços perfeitamente proibitivos.
A sua vasta obra literária, donde poderemos excluir os livros marcadamente políticos, encontra também peças de teatro, romances ou descrições das suas múltiplas viagens à Angola profunda e a sua grande sensibilidade para apreender a realidade de povos que a cultura citadina vai esquecendo, nalguns casos de forma aviltante. O “Kurika” tem sido frequentemente reeditado e encontra-se com facilidade, o que não acontece com o “Pele”, “Impala”, “Vagô”, “Outras Terras, Outras gentes” (Este sobre Moçambique) e outros, o que não permite ficar com a dimensão de um escritor que descreve a África com odores, matizes e sons em cada folha que vamos lendo.
A propósito de Galvão vem-me à memória o Cunha alfarrabista que tinha o seu estaminé ao lado do “Frimatic” de um tal Ferrobilha Guedes. O Cunha era uma figura estranha para nós miúdos, tinha uma loja esquisita e ele próprio não nos gramava porque passávamos uma parte do muito tempo livre que tínhamos a chatear as pessoas e ele punha-se a jeito para a nossa irreverência pueril, talvez pelo seu físico, talvez por parecer taciturno, ou por qualquer outro motivo que me deslembro.
Conheci-o mal pois as únicas vezes que entrei na sua desarrumada loja, como deve ser qualquer alfarrabista aos olhos dos visitantes, foi com um tio meu com quem ele conversava tempos que pareciam uma eternidade, já que eu estava ali apenas para ir numa missão de soberania ao Baleizão comer uma cassata.
Mais tarde senti a falta do que foi praticamente o único alfarrabista de Luanda, que terá morrido sozinho em 1967, a que a “Notícia” terá dedicado umas breves linhas. Os seus livros terão sido leiloados ou vendido ao desbarato porque o “Rei dos Frigoríficos” que tinha a oficina na antiga fábrica de sabão no sopé da fortaleza queria frigorificar a cidade e precisava do espaço do Cunha. Resta-nos homenagear o alfarrabista, o primeiro de todos a amar verdadeiramente o pó dos livros.
Como diria Nietzche: “ Não podemos regressar ao antigo, já queimámos os nossos navios; só nos resta ser valentes, aconteça o que acontecer”
Fernando Pereira
15-3-2011
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