29 de maio de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (2) / Ágora /Novo Jornal/ Luanda 29/5/2015



Nos tempos da Kaparandanda (2)

Continuo a dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração que nos deixou algumas preciosidades e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha - Angola (1949 – 1975)” editado pela Cá de Caxinde, fez uma reflexão do que foram os seus vinte e seis anos de Angola.
São histórias simples, numa linguagem despretensiosa e num enquadramento de um tempo em que Angola era uma colónia de Portugal num contexto muito diferente dos tempos de hoje.
“O Moutinho
Hoje há quem se prepare convenientemente e com diploma passado, para animador cultural. Naquele tempo não era assim. O maior e melhor diploma era a aparelhagem sonora e o amplificador.
Este conjunto entregue a quem tivesse alguma habilidade e espírito alegre, nada mais era necessário. Pois, no Uíge, conheci um desses indivíduos que era chamado para todos os eventos: festas de rua, homenagens a personalidades, casamentos, batizados e outros. E ele era elemento imprescindível.
Tinha uma boa aparelhagem, muitos discos, com músicas brasileiras que ainda hoje, e já lá vão tantos anos, de volta e meia ainda oiço algumas delas.

Mas vamos então fazer a apresentação da personagem: chamava-se José Moutinho, homem de mediana estatura, de boa compleição física, sardento, cabelo ondulado avermelhado, de cerca de pouco mais de 40 anos, casado com uma senhora nutrida e muito simpática que sempre o acompanhava para todos os lados.
Não tinha filhos e tinha toda a disponibilidade para ir onde fosse necessário. Com uma locução agradável e fluente, caíra no goto da gente do Uíge, mas muita gente desconhecia um acontecimento que lhe deu fama e pouco proveito.
Em tempos, tinha ele cerca de vinte e poucos anos, juntamente com mais três amigos resolveram que haviam de fazer uma viagem, de bicicleta, ligando Luanda a Lisboa. Era um feito inédito e com bicicletas pasteleiras mas que teria uma grande repercussão; trataram das pasteleiras juntaram o necessário para o caminho, uma credencial para permitir abrir fronteiras, levaram a roupa necessária e água.
Faltar-lhes-ia o essencial que era um planeamento muito cuidado do itinerário e ainda a Comunicação Social que nestes eventos é sempre necessária. Mas gente de sangue na guelra e cheios de esperança, lá arrancaram certo dia de Luanda, a caminho de Lisboa, não pensando muito naquilo que era o esforço diário e as contrariedades que poderiam acontecer. O mais entusiasta foi o José Moutinho, talvez o mais bem preparado para a grande jornada. Os primeiros dias foram passados mais ou menos, depois foram surgindo as dificuldades, falta de capacidade física, e aos poucos e à medida que os quilómetros eram percorridos e noites mal dormidas, iam fazendo mossa que já diziam mal da sua vida por se meterem em tal aventura. Quantos mais quilómetros percorriam parecia-lhes que muitos mais outros lhes faltavam para andar. Começaram a dar sinais de fraqueza e a falta de ânimo conjuntamente com as indisposições e as pequenas mazelas que os iam afetando cada vez mais.
É preciso não esquecer que estavam nos anos 30, e nesse tempo, muito havia ainda a explorar. Primeiro, e há sempre um primeiro que piora, completamente exausto obrigou os restantes a pararem para o ajudar. Mas o mal não era fácil de debelar e acusando uma forte anemia, que apesar dos esforços de todos e dos cuidados médicos e hospitalares, foi internado numa pequena Vila da República do Congo, não resistindo ao mal que o afetava, acabou por falecer.
Os outros dois elementos permaneceram ali alguns dias para cumprirem com as formalidades legais; depois continuaram a viagem, agora só dois, sendo o José Moutinho o mais resistente e o mais bem preparado, e à medida que se aproximavam do norte de África já ambos iam bem desgastados e a verdade é que o companheiro do Moutinho, quando já estava perto de Marrocos ali desistiu, continuando assim a viagem completamente só o Moutinho, que para sua grande alegria entrou em território português Vilar Formoso , de onde seu pai era natural.
Veio para Lisboa, onde o Moutinho julgava que seria recebido depois daquela viagem única sem apoios de qualquer espécie, e pensou até que exultassem o feito e o custo da viagem...
Mas 105 dias depois internaram-no na Casa Pia de Lisboa como indigente, onde lhe facultaram comida e dormida, bem como o pagamento da viagem de regresso.
Ao ter-me contado esta aventura, levou-me a concluir que tinha à minha frente um homem de coragem e de grande espírito de sacrifício.
Por estas e por outros foi sempre um amigo que eu estimei, e o seu último gesto para comigo, foi, depois de gravar a minha festa de despedida no novo Hotel do Uíge, ter-me oferecido o original da gravação com um abraço muito apertado de amizade que quando me recordo daquele tempo, sempre vem à minha mente o José Moutinho, que para mim foi um herói injustiçado.”
Não deixa de ser interessante quando se consegue reproduzir uma aventura com 75 anos de um tempo em que tudo era difícil para alguns e muitíssimo difícil para muitos!
Às histórias havemos de voltar!

Fernando Pereira
26/5/2015

25 de maio de 2015

Nos tempos da Kaparandanda (1) -Ágora - Novo Jornal 22/5/2015





Vou dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha - Angola (1949 – 1975)” deixou testemunhos importantes sobre um território que percorreu de lés a lés.
Desse livro, editado pela “Chá da Caxinde” permito-me tirar alguns textos que ilustram bem o que era o interior de Angola, num contexto muito pessoal de um homem que se obrigou a gostar de Angola.
“A antiga província do Congo, depois Distrito de Uíge, era, por excelência, a terra do café.
Por aquela imensa área, por todo o lado se encontravam plantações de café, bem tratadas, bons acampamentos para trabalhadores, boas vivendas para os seus proprietários e bem assim para os seus colaboradores.
A sede de Província, Uíge, crescia e desenvolvia-se a olhos vistos, e não só o Uíge, mas também o Negage, Quitexe, Songo, Bembe, Nova Caipemba, Sanza Pombo, Quimbele e outras mais. O Uíge estava a tornar-se rapidamente numa cidade, e como tinha que acompanhar o progresso, e os seus principais homens de negócios, alguns seus fundadores, em muito contribuíram para isso, como já destaquei em trabalho anterior.
Agora apenas quero lembrar pequenos episódios que ao tempo em que passaram a fazer parte da vivência daquelas povoações.
O José Ferreira Cagido, um dos comerciantes e agricultores, dos mais importantes e mais bairristas daquela terra, construiu diversos prédios num gaveto de terreno entre a avenida Capitão Pereira e a Rua do Comércio, onde instalou a sede da sua empresa, construiu um prédio e numa parte do rés-do-chão resolveu montar uma barbearia moderna, onde não faltavam cadeiras com boas condições para o exercício da atividade, outras bem cómodas para os clientes, que esperassem pela sua vez, bons espelhos, e ainda um mesinha com tampo de vidro e uma cadeira, para ali se instalar uma manicure.
O Cagido mandou chamar o Freitas, que era o barbeiro da terra, que ali operava há já alguns anos, e convidou-o a tomar conta do estabelecimento, em princípio sem encargos, para começar, o que naturalmente agradou ao barbeiro. Para o Uíge, tal barbearia era sinal de progresso. O Freitas logo tomou providências necessárias, para que no dia da abertura não faltasse nada, muito menos a manicure, e por isso, se deslocou a Luanda onde podia encontrar todo o necessário incluindo a manicure, onde havia muito por onde escolher e interessadas não faltavam. Até que chegou o dia da inauguração da dita barbearia, aberta a porta, a casa encheu-se, a manicure já tinha ocupado o seu lugar e a clientela naquele dia e nos dias seguintes esgotava a lotação e os clientes não se importavam de esperar. O negócio ia prosperando e os clientes afluíam de todo o lado, de Negage, Quitexe, etc, mais por causa da manicure, a novidade da terra. A fama ultrapassou as fronteiras das vilas e chegou até aos recônditos mais afastados, não deixando de chegar aos ouvidos de um fazendeiro do Quitexe, um dos maiores produtores de café, homem já de avançada idade, mas a que não faltava saúde nem entusiasmo e que viva só, entretido como andava com as lides do café. Era homem queimado pelos sóis do Quitexe, e era conhecido pelo Bula Matari, que traduzido à letra era o mesmo que o parte pedras; e com os dedos das mãos, tal era a sua condição física que com facilidade dobrava as caricas das cervejas. Quando chegou ao seu conhecimento a novidade da manicure, não perdeu o seu tempo; montou-se no jipe e ei-lo a caminho do Uíge à procura da caça. Era um fim-de-semana; instalou-se no Hotel do Uíge, que de Hotel só tinha o nome...
O nosso homem que como já se disse era um fenómeno de força, entretinha-se também a dobrar caricas no Hotel. Na segunda-feira, pela manhã, o Bula Matari lá estava à porta da barbearia para ser dos primeiros clientes daquele dia. Entregou-se aos cuidados da manicure e logo ali iniciaram uma conversa pegada, pelos vistos com um bom entendimento, e de tal modo, que no dia seguinte à hora da abertura as barbearia, estava a manicure de viagem até ao Quitexe, onde o Bula Matari garantiu, pelo menos durante alguns meses, que lhe tratasse das unhas e ela experimentasse uma vida muito diferente daquela que tinha conhecido até ali.
O barbeiro Freitas é que não gostou da graça e não pretendia esmorecer e deixar decair o negócio e lá vai ele novamente a Luanda arranjar outra para o lugar, o que não foi difícil. Suprida a falta, ele lá ia continuar a exercer a sua actividade, enquanto que o negócio continuasse a florescer. Tudo decorria dentro da normalidade, mas, alguns dias passados, o inevitável aconteceu, agora de forma diferente, era a manicure que se despedia por ter arranjado emprego mais lucrativo e mais folgado. Tinha arranjado um fazendeiro que lhe tinha proposto uma vida que antes nunca tinha tido e experimentar: a vida da boa vida. O bom do Freitas teve de aceitar a situação, mas a verdade é que a barbearia assim ficaria incompleta. Não fez mais nenhuma diligência para substituir a manicure. Afinal ele estava a fazer uma figura triste, de arranjar mulheres para os outros e para isso ele não estava disposto. Ainda tentou e conseguiu uma meia reformada, mas não era chamariz para os clientes.
Mas mesmo assim, algum tempo depois essa manicure também não escapou e foi para governanta da casa de habitação de um comerciante solteiro ali na mesma rua do Comércio onde mudou de actividade mas não de morada.
A barbearia ficou mais vazia, o Freitas mais triste, mas não tendo cão, preferiu caçar com um gato, e no mato ele não teve outro remédio e deixou-se de modernices.”

Ao tema, havemos de voltar.


Fernando Pereira
18/5/2015

15 de maio de 2015

As árvores morrem de pé- Ágora- Novo Jornal-Luanda- 15/5/2015


Quando vi muito difundido nas redes sociais o abate de uma árvore centenária no largo fronteiro à sede e serviços administrativos da ex-Sociedade Agrícola do Cassequel veio-me à lembrança o título de uma peça de Alejandro Casona, e as recordações do meu pai que trabalhou nos serviços administrativos e sempre se lembrou delas existirem por ali desde que para lá foi nos anos quarenta.
Acho que apenas serviria de nota de rodapé numa crónica, este ato de vandalismo cometido pelas autoridades da Catumbela, mas infelizmente o que se passou nesse espaço é quotidianamente repetido pelo País fora com a complacência e cumplicidade até das autoridades da tutela.
Angola viveu durante muitos anos uma situação de desbaste continuado de árvores, fruto da falta de abastecimento de combustíveis alternativos às populações que viviam no campo ou nas próprias cidades, incluindo Luanda. Era a fase da sobrevivência a todo o custo!
Durante demasiado tempo o carvão de madeira era a única alternativa para a maioria das pessoas cozinharem ou aquecerem o que quer que fosse. Foi um negócio que permitiu a sobrevivência de muitos, mas levou a um desbaste de árvores praticamente em todo o País e a renovação não existiu. O que é lamentável é que a situação continua a não ter resposta nem de entidades públicas nem empresas privadas.
Esta é uma situação muito preocupante na generalidade dos países africanos e Angola confronta-se com essa realidade, sem que se vá dando conta de que a mancha verde que cobria uma parte do País foi sendo cada vez mais reduzida devido à falta de controlo no abate de árvores nos tempos que correm.
As cidades foram crescendo para locais onde antes existiam pequenas lavras e zonas com vegetação, mais luxuriante no norte e centro que no sul. O solo degrada-se e o manto verde, rico em húmus, ficam vulneráveis e substituídos pelas camadas de argila, calcário e areia, paupérrimas para qualquer atividade agrícola ou pecuária.
Este fenómeno é comum no campo, onde a inclemência do clima, com uma exposição solar continuada, a que acrescem as chuvadas diluvianas, aumentam os níveis de degradação dos solos que vão sendo mais estéreis e os terrenos cada vez mais pobres e, concomitantemente, pouco disponíveis para a fixação de gente, dada a cada vez menor rendabilidade na sua exploração.
Angola vive esta situação dolorosa que parece indiferente à maioria dos cidadãos, e as próprias autoridades tendem a ignorar algumas malfeitorias que os pouco escrupulosos madeireiros vão fazendo um pouco por todo o lado, abatendo espécies arbóreas que deveriam ser protegidas. A lei que existe talvez seja suficiente, mas era de todo indispensável que as sanções aos prevaricadores fossem maiores porque na realidade não estão a prejudicar as pessoas de hoje, estão a deixar um futuro degradado e sem expectativas às gerações vindouras. Salvo a ADRA e pouco mais, vejo muito poucos na sociedade civil a tentarem impor outras regras.
Conheci locais luxuriantes como a Gabela ou o Songo, isto a título de exemplo, e o que se vê hoje é quase paisagem lunar, o que me deixa muito preocupado porque nas colinas, quando chove copiosamente, a camada produtiva é empurrada para os vales, tornando-as inóspitas e de todo indisponíveis para fazer o que quer que seja para o seu aproveitamento a favor de uma agricultura sustentada e com possibilidade de fixar gente!
Talvez me repita com o que aconteceu com a Ilha de Páscoa, e talvez ajude a mostrar alguma coisa em que o caso Catumbela ou o corte das árvores na antiga estrada do Cacuaco são apenas alguns casos que se generalizaram no País, com as consequências já perceptíveis.
Recupera-se periodicamente a história da Ilha de Páscoa, território chileno com cinco mil habitantes, a maior parte deles idos do continente. A ilha de Páscoa é famosa pelas suas inúteis estátuas.
Num filme, Rapa Nui, contava-se a história dos Moai, povo que, vindo da Polinésia, se tinha instalado na ilha, onde desenvolveu uma civilização.As gigantescas estátuas de pedra, património da Humanidade, eram construídas como oferendas a divindades e, naturalmente, para serem transportadas até ao seu destino final onde estão esculpidas, houve necessidade de abater árvores para as arrastar desde a pedreira.
Esse foi o princípio do fim dos Moai, segundo o filme que afinal corrobora a opinião da maior parte dos investigadores. Em determinada altura começaram algumas tribos a digladiar-se com o objetivo de atingir a supremacia de uns sobre os outros, e cada um dos vencedores ia fazendo estátuas maiores para oferecer às divindades. A guerra acabou, provavelmente por falta de guerreiros, míngua de árvores e de Moai em número suficiente para obter os favores ou aplacar as fúrias dos sempre silenciosos deuses. As árvores eram mais necessárias que os Moai, mais férteis, e ofereciam sombra e abrigo contra os ventos oceânicos. Sem elas, depressa os solos se degradaram e a ilha ficou desértica. O ecossistema da ilha foi destruído e acabou para se revelar insuficiente para alimentar a população de dezenas de milhares de pessoas.
Quando os primeiros europeus ali aportaram, num qualquer domingo de Páscoa, encontraram pouco mais de dois mil habitantes, depauperados fisicamente, sem a grandeza dos Moai, que acabaram por legar ao futuro uma ilha deserta, inóspita e habitada por continentais que vivem do turismo, a sua única fonte de receita. As doenças que os europeus trouxeram acabaram com o que restava dos Moai, porque os habitantes não tinham defesas para elas.

Velhas Árvores

Olha estas velhas árvores, mais belas
Do que as árvores novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto mais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas...
O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas
Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!
Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!

Olavo Bilac


Fernando Pereira
11/5/2015

Copypastadamente- O Interior- 14/5/2015



"Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador". Diógenes Laércio, o cínico.
Um destes dias tive necessidade de recorrer ao livro “Desporto e Estruturas Sociais”, do professor José Esteves, para tirar uma dúvida sobre o número de praticantes desportivos numa determinada modalidade, em Portugal, na primeira metade dos anos sessenta e assim corrigir, com precisão, um amigo sobre o assunto.
Como sempre acontece quando estou com algum livro do professor José Esteves, continuo a relê-lo e gostaria de partilhar aqui algumas histórias que marcaram o quotidiano político do “Portugal uno e indivisível”.
O Diretor Geral dos Desportos era, no distante ano de 1958, o tenente-coronel Sacramento Monteiro que, cheio de boas intenções, resolve pedir uma audiência a Salazar para a discussão de um plano de construção de instalações desportivas em Portugal e colónias.
Com a frieza habitual com que recebia os subalternos, mesmo que titulares de cargos de responsabilidade governativa, recebeu o Diretor que lhe entregou um dossier. Salazar perguntou que era aquilo. “ Trata-se de um plano de construção de piscinas, para o fomento da natação entre a nossa juventude, Sr. Presidente”. O militar Sacramento Monteiro contou ainda: “o homem olhou para mim, olhou para o dossier, afastou-o logo a seguir, com um dedo só, com um ar de muito desprezo e despede-me com esta simples frase: Senhor Diretor Geral, está muito frio para tratar desse assunto. Venha lá mais para o Verão!”.
Em 1959, numa visita efetuada ao Estádio Universitário de Lisboa, ao verificar, na planta geral das instalações, que havia um espaço destinado a uma piscina, ali mesmo decidiu a eliminação pura e simples de tal hipótese. O homem abominava a natação.
Falou-se de coisas sérias, agora falemos do Almirante Tomas, ultimo presidente da Republica de Portugal do tempo colonial que teve uma tirada que ainda é hoje recordada no anedotário político português, passados quarenta anos da sua deposição: «Comemora-se em todo o país uma promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados.».
Porque falei do Tomas, não queria deixar de recordar uma frase que a “censura” em Portugal fez a um discurso seu, e que a Seara Nova, revista oposicionista, deu à estampa e que dizia isto: «Pedi desculpa ao Sr .Eng.º Machado Vaz por fazer essa retificação. Mas não havia razão para o fazer porque, na realidade, o Sr. Eng.º Machado Vaz referiu-se à altura do início do funcionamento dessa barragem e eu referi-me, afinal, à data da inauguração oficial. Ambas as datas estavam certas. E eu peço, agora, desculpa de ter pedido desculpa da outra vez ao Sr. Eng.º Machado Vaz.». Não deixa de ser bizarra a “Censura” proibir a publicação de partes do discurso do “Venerando Chefe de Estado de Portugal do Minho a Timor”.

Alexandre O’Neill em “Uma coisa em forma de assim”: «Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima com poder, é, quase sempre, um perigo. Oremos. Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.»
Para memória presente e futura nas profundezas das Beiras ou na “vida boa de Lisboa”!

Fernando Pereira
11/5/2015

8 de maio de 2015

Morreu o “Senhor Lubito” / Ágora / Novo Jornal/ Luanda/ 8-5-2015








Morreu o “Senhor Lubito”
Preparava-me para escrever o artigo semanal quando recebo a notícia do falecimento do arquiteto Francisco Castro Rodrigues (1920-2015).
Com o seu desaparecimento, o Lubito perde a última das suas grandes referências de um tempo de luta, de esperança batalhada, de uma gente que sentia que a cidade não se resumia a uma lingueta de areia, esquecendo toda uma periferia com gente que labuta há muito na busca de um dia melhor, que vai tardando.
Ocasionalmente conversávamos ao telefone, porque já há uns tempos que as limitações físicas o impediam de se deslocar com facilidade. Ficou muito abalado quando lhe dei a notícia do desaparecimento do Engenheiro Fernando Falcão assim como a do Dr. Canhão Bernardes, o “escultor” do Lubito. Julgo que foi a última vez que conversámos, e sempre nas suas palavras o “Lubito” do seu coração.
Em homenagem a Francisco Castro Rodrigues irei, por sistema, usar Lubito, afirmando sempre que era uma forma de acabar com a estulta ideia que foi prevalecendo de que o nome Lobito apareceu por causa de Lobos que rondariam as cercanias.
Conta no seu livro “ Um cesto de cerejas” que, em determinada altura, se decidiu fazer um estandarte da cidade, tendo o desenho “um castelo, uma âncora, umas conchas de ostra- Antigamente chamava-se ao Lubito, a Catumbela das Ostras, que era a única coisa que lá existia-, e as quinas”. Estavam a trabalhar afanosamente no estandarte, que era necessário para a visita do Presidente de Portugal, Craveiro Lopes, à cidade e telefonam ao arquiteto da “Casa das Bandeiras”, já perto da meia-noite, para lhe dizerem que ” tinha havido uma alteração no desenho pois tinha lá aparecido um tipo do Ministério a propor um novo desenho, o escudo já não tinha o bico em baixo, tinha um no meio circulo. E havia um lobo em pé…E o texto da memória descritiva dizia assim: «lobo de prata passante em campo de púrpura»”. As peripécias são deliciosamente descritas por FCR para depois dizer no fim que no Ministério do Ultramar ficaram indignados quando lhes disse o óbvio: Não há lobos em Angola! A verdade é que entre o põe lobo e tira lobo, acabou por prevalecer a opinião do arquiteto que defende que “Lubito vem de uma partícula que eles (umbundos) têm, «Olu», para designar determinado substantivo”…” Lubito é «Olu pito» que na composição do étimo” Lu é água e pito, porta; ”porta da água”! Nada tem a ver com lobos!
Não sei se terá sido premonição, mas quando recentemente houve a tragédia nos morros do Lubito, pensei telefonar ao arquiteto para tentar recordar uma conversa que mantivemos há uns anos sobre a consistência dos morros que cercam a “baía” do Lubito. Na realidade acabei por não o fazer e pelos vistos o desenlace estava iminente.
FCR ia ouvindo o que lhe desagradava relativamente ao excessivo número de casas que os morros circundantes ao Lubito estavam a receber, o que contrariava em tudo o plano diretor por si gizado, onde, num contexto de reordenamento urbano, se previam os bairros da Bela Vista, da Esperança (Bairro da Rádio), do Vale do Liro, dos Morros da Catumbela e do Alto do Liro. Quando falávamos disso, dizia que uma tragédia poderia ocorrer se não se seguissem determinados preceitos que permitissem a fixação dos solos, que eram facilmente “desmoronáveis” a uma chuvinha de alguma intensidade. Ria-se muito quando falava de um bairro emblemático num monte entre Lobito e a Catumbela, construído pelo Cassequel num quadro promocional de inserção social dos negros com um conjunto de casas cor-de-rosa, todas alinhadinhas e cobertas de colmo, mas “invivíveis”, porque era impossível lá dentro aguentar a canícula e a humidade que se concentrava, obrigando os putativos habitantes a fazerem as suas próprias casas com material da região, de aspeto menos apelativo, mas com melhores condições de habitabilidade! “Eram autênticas frigideiras”, dizia Castro Rodrigues que sempre lutou contra as empresas majestáticas do Lubito, a Companhia Agrícola do Cassequel, o Caminho de Ferro de Benguela, o Porto do Lobito e fábrica de cimento.
Seu livro “Um cesto de cerejas” surge como resultado de uma conversa com a Professora Eduarda Dionísio, filha do meu professor Eduardo Dionísio, numa passagem “insucedida”, pelo Liceu Camões em Lisboa no fim da década de sessenta, um antifascista e um homem grande do neorrealismo. Uma edição pequena da Casa da Achada!
Não esconde nada, fala de quem gosta e zurze em quem não gosta, fundamentando as suas opiniões. Fá-lo de uma forma desprendida, como todos o foram conhecendo ao longo de uma vida que deu muito a uma Angola que esquece rapidamente quem ousou lutar por ela, e construída lutando num processo em que conseguia unir a sua forte convicção política de homem de esquerda, vanguardista no seu trabalho, só possível ao nível dos que sempre estiveram bem com a vida, que muitas vezes nada tem a ver com o bem na vida.
O desaparecimento de Francisco Castro Ferreira quase que marca o fim de um conjunto valoroso de arquitetos que fizeram em África o que em Portugal lhes foi negado por razões de ordem política. A realidade acabou por mostrar que este grupo onde esteve Vasco Vieira da Costa, Fernando Batalha, irmãos Castilhos, Simões de Carvalho, Francisco Castro Rodrigues e tantos outros, deram um arejamento à arquitetura bafienta e de monumentalidade bacoca do salazarismo.
Francisco Castro Rodrigues, nos seus quase quarenta anos de vida no Lubito, foi mais que um arquiteto; foi professor, numa altura de abandono generalizado depois da independência de Angola, dinamizador associativo, interventor político e divulgador cultural.
Nunca se colocou em bicos de pés em circunstância alguma, apesar da excelência da sua obra e de todo um conjunto de prémios e menções honrosas recebidas ao longo de uma vida cheia.
Já nos últimos anos, foi um dos obreiros da construção do museu do neorrealismo em Vila Franca de Xira, a quem doou uma parte do seu riquíssimo espólio.
No seu Lubito ficam as marcas da sua passagem como as Portas do Mar, o edifício Universal, a Colina da Saudade, a Casa do Sol, o Liceu Saydi Mingas, o Cine Flamingo, as atuais instalações do Instituto Lusíada no silo-auto da Casa Americana, a reconversão do Tamariz, o Mercado Municipal, a urbanização do Alto Liro, da Bela Vista, o obelisco da entrada, o edifício da aerogare e tantas obras particulares e públicas de décadas de trabalho. No Sumbe, entre vários projetos assinala-se a catedral e o edifício da Câmara Municipal, que em certa altura uns “desenhistas” resolveram desvirtuar.
Seria de toda a justiça que Francisco Castro Rodrigues figurasse na toponímia de uma cidade de que foi um dos seus mais ilustres cabouqueiros. Como normalmente todos têm sido esquecidos, talvez ainda consiga ser suficientemente ingénuo acreditar que eventualmente as autoridades do Lobito (assim mesmo) se lembrem dessa forma de homenagear “um verdadeiro homem da terra”.
Como angolano só me resta, Francisco Castro Rodrigues, agradecer-lhe!

Fernando Pereira
3/5/2015
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