25 de maio de 2018

Rosa de Porcelana / Novo Jornal/ Luanda 25-5-2018













Rosa de Porcelana

“Por enquanto não passa de uma noção, mas penso que posso obter o dinheiro suficiente para fazer dela um conceito e, mais tarde, transformá-la numa ideia.”
Woody Allen em Annie Hall

A caminho dos 443 anos de vida, Luanda, curiosamente fundada durante o reinado que os portugueses consideram ser um dos piores reis da sua história, D. Sebastião, morto numa expedição africana e que levou à perda da independência de Portugal.
            Tinha tudo para não ser um lugar vivível, e paradoxalmente hoje é uma urbe com quase 7.000.000 de habitantes. Carente de água, sem vegetação, com um calor e uma humidade permanente e sem árvores foi durante séculos um lugar muito pouco atrativo para todos.
            Gosto de Luanda e invariavelmente traz-me sempre à memória a frase de Marguerite Yourcenar: Quando se gosta da vida, gosta-se do passado, porque ele é o presente tal como sobrevive na memória.”.
            Nasci na pachorrenta Luanda de meados dos anos 50, numa clinica de um bairro que o meu pai chamava o “Bairro da Exposição Feira”, e que nós passámos a conhecer como o “Bairro do Miramar”, perto do cemitério dos Ingleses, que depois passou a ser conhecido pelo “Alto das Cruzes”, vulgo “cemitério velho”, hoje lugar de eleição para “repouso etéreo” das proeminentes figuras do dominante politico e económico destes novos tempos de Angola. A avenida ia com asfalto até ao limite do Bairro do Miramar começando a partir daí o “fecha a janela”, quando nos cruzávamos com outro carro, tanta era a poeirada, que se fazia soltar da maioria das ruas dos subúrbios da nossa “cidade capital”.
            Quando fui viver para o Braga, já se chamava “Bairro do Café”, nascido e desenvolvido pelo dinheiro de um tempo de grande subida do preço do café no mercado internacional do pós-guerra! Fez uma parte de Luanda e os prédios das avenidas novas na então cidade capital do “Império”, Lisboa.
            O asfalto ia tomando conta do areal, mas ainda me chega a lembrança, por exemplo, da “António Barroso” (Marian Ngouabi) ter uma picada desde o início da subida até aos depósitos da água contíguos a um bairro clandestino, onde se construía em todo o canto e que curiosamente se chamava Bairro Salazar. Não deixa de ser algo bizarro que os bairros clandestinos no tempo colonial eram todos de dignitários do regime colonial, veja-se o Bairro Salazar, Américo Tomaz, Adriano Moreira e Silva Tavares, entre outros!
            Com o 4 de Fevereiro de 1961 Luanda mudou, e começámos a ver as ruas com gente diferente, muitos militares, e os musseques a terem que se afastar cada vez mais do centro. A estratificação social existente passou a ser mais evidenciada, e a convivência quotidiana entre brancos e negros é cada vez mais dificultada por razões de toda a ordem.      
Luanda nasceu feia, e só a baia lhe dava alguma graça, e foi crescendo sem qualquer nexo. O avulsíssimo e o pato-bravismo transformaram uma cidade, que tinha crescido paulatinamente com um modelo de “português-suave” adaptado aos trópicos, que até era inovadora num determinado contexto de arquitetura, num espaço anárquico com construções em altura em que as identidades se foram perdendo.
            Luanda teve sempre uma identidade muito própria, até mesmo solidária nalguns aspetos, apesar do sistema colonial marcar bem as fronteiras entre as raças numa hierarquização perfeitamente soez da sociedade. Os quintais, os bares, as cantinas, as lojas, os largos, os terrenos libertos eram sítios de encontro, de cumplicidades, de brincadeiras e tudo isso se foi perdendo nos tempos finais do sistema colonial. A Luanda colonial asfixia-se nas suas contradições e quando chega a hora da decisão, os colonos que assistiram acomodados a um espaço posto e imposto sentem que essa terra não era sua, e encaixotaram o que puderam e embarcaram o rancor para com os que provavelmente foram os menos culpados da situação, os militares portugueses e as novas autoridades angolanas.
            Com o advento da independência os Luandenses voltaram a dispor da sua cidade, onde cresceu uma vontade algo pueril de fazer tudo diferente e bom, mas que efetivamente redundou num período de grandes dificuldades com carências e com a degradação do parque habitacional e as infraestruturas a colapsarem por falta de manutenção.
            Luanda voltou ao acumular do lixo, aos esgotos a escorrerem pelos prédios e ruas, em síntese o início de um tempo que se tem prolongado e que nenhuma operação de cosmética tem conseguido inverter, mormente a partir do momento em que a esfarrapada desculpa da guerra deixou de ter significado.
            Luanda hoje cheira à parte de traz de um circo, o que não é grande referencia para as pituitárias. Quando Luanda vai a caminho de Catete, de Porto-Quipiri ou das Palmeirinhas, o que temos não é uma cidade, é um território pouco harmonioso, sem identidade, impessoal e sem futuro.
            Nesta Luanda não há passado, há passados e a memória é plural.
            Como já sou novo há muitos anos posso dizer com certo orgulho, que nasci nas Ingombotas, porque Luanda como era raros a reconhecem, e cada vez menos as pessoas se revem na de hoje!
            “Só podemos esquecer o tempo servindo-nos dele” Luandino Vieira (Papeis da Prisão)
            


Fernando Pereira
            20/5/2018
              

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