14 de maio de 2010

A Sombra do que fomos/ Ágora / Novo Jornal / Luanda 14-5-2010



“Às minhas companheiras e companheiros que caíram, que se levantaram, curaram as feridas, conservaram o riso, registaram a alegria e continuaram a caminhar”
Luis Sepulveda in “A Sombra do que fomos”

Muitos estudiosos da literatura contemporânea da América Latina, divergem em muita coisa, mas são unânimes em colocar William Faulkner (1897-1962) como o “alter ego” do romance latino-americano.
Sou um admirador confesso de toda a literatura americana, exceptuando os entediantes Harold Robbins, e a sua versão mística na expressão portuguesa, Paulo Coelho, ou um Nicholas Sparks que escreve livros que me parecem pão de forma, de uma qualquer prateleira de supermercado, em que a diferença acaba por ser entre o ter côdea ou ter sementes de sésamo e outros ingredientes tal como o E-952,E-951,E-950, e todos os Es com que hoje nos habituámos a conviver no “caminho do futuro”.
Li num ápice o último livro do talentoso Luis Sepúlveda, “A Sombra do que fomos”, e sem ser o mais brilhante, este livro mordaz, irónico e inteligente reflecte a nostalgia dos tempos que antecederam o 11 de Setembro de 1973, os tempos de exílio, as cumplicidades e as capitulações, que não terão sido exactamente traições. O livro é apesar de tudo um reencontro de emoções, paixões e a procura de motivações descomplexadas, com um passado vivido de forma desencontrada quase quarenta anos.
Talvez fosse um livro interessante para servir de “manual de utilizador”, para encontros destes na sociedade angolana actual, para de certa forma “tirar os esqueletos dos armários”, figura muito comum na linguagem anglo-saxónica, que a língua portuguesa utiliza como “abrir arcas encouradas”, que acabasse com os clichés da moda para determinadas motivações obscuras, e resquícios de coisas menos boas para justificarem apropriação indevida de bens tangíveis, com argumentos estafados, só mobilizadores de ideologicamente ineptos.
A verdade é que Sepulveda, me fez “marinar” em muita coisa, nalgumas em que fui actor e noutras em que terei sido interessado e quiçá por vezes pouco informado espectador. Veio-me à lembrança muitas coisas, desde as que aparentemente serão mais pueris, às mais elaboradas e assumidamente com outra exigência no “maturidrómetro”, que vamos utilizando para medir a nossa vida e vivencias circunstanciais.
Lembrei-me por acaso do meu amigo Mário Simões, com quem passei muitas noites em vários locais, a ouvi-lo tocar e cantar com um profissionalismo inatacável. Não me lembrei dele por ter feito umas canções do Benfica (o Bota de Ouro) e do Belenenses (ser Belenenses), ele que era um fervoroso adepto do Sporting, autor do célebre “Cantinho do Morais” entre várias, mas lembrei-me dele porque entre os seus grandes êxitos, tocados no Tropical, ou no Páteo do Hotel Universo, havia os célebres “Lápis do Lopes”, e a “Borracha do Rocha”, que andou os últimos vinte anos de carreira sem cantar, mesmo rejeitando insistentes pedidos, afirmando que “teve a sua época”, e mais não dizia!
A propósito da “Borracha do Rocha”, ele contou-me que a seguir ao 25 de Abril de 1974, as pessoas perguntavam-lhe se aquilo não era uma “afirmação sua contra a censura, já que era uma letra ousada”, e o Mário Simões, com a honestidade intelectual que sempre o caracterizou, disse que saiu-lhe aquela letra e musica como podia ter saído outra qualquer, o que desalentou os jornalistas.
Talvez haja alguma semelhança com a canção “Os Vampiros” do José Afonso, e o refrão “Eles Comem Tudo, Eles Comem Tudo e Não deixam nada…”. Havia uns tipos que invadiam as “repúblicas” coimbrãs nos anos 50 e 60, comiam o que havia e deixavam as despensas vazias, daí a canção, que se transformou numa emblemática canção de combate, adaptada a denunciar abusos iguais em latitudes diferentes!
Há já bué de anos, numa noite quente de Luanda no apartamento do Orlando Rodrigues, ouvíamos Thelonious Monk (1917-1982) numa virtuosa interpretação, que na altura me mereceu apenas isto: “Acho o Mário Simões melhor!”. O Orlando “atirou-se ao ar”, mas hoje admito que o Monk foi o maior de todos os tempos!
O Mário Simões era meu amigo, e assim fomos até ele morrer!
Fernando Pereira
11/05/10
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