7 de março de 2019

AS MALHAS QUE A REVOLUÇÃO TECEU! /Novo Jornal / Luanda 8-03/2019






AS MALHAS QUE A REVOLUÇÃO TECEU!
                Acabei de ler “São Paulo, Prisão de Luanda” escrito por Carlos Taveira (Piri) um dos poucos da OCA (Organização Comunista de Angola) que eram de fora de Luanda, preso no Lobito pela DISA, quando se preparava para entrar num apartamento para uma reunião “conspirativa”
                O livro, editado pela “Guerra e Paz”, é uma descrição interessante dos seus tempos de “estadia” numa prisão herdada da PIDE, e que é hoje prisão hospital e frequentada por gente que foi capa da “Caras” em algumas circunstancias.  Um relato despretensioso, sem amargura, aqui ou ali polvilhado de histórias engraçadas, sobre situações que ao tempo eram mais de desgraça do que de graça. Um livro para ler, por todos, para se ter consciência que não foi só a guerra que prejudicou o País.
                As sucessivas prisões e assassinatos de gente da OCA, Comités Henda, Comités Amílcar Cabral,”fraccionistas” , e outros, o que terão conseguido foi destruir uma parte significativa do melhor capital de entusiasmo e diferenciação intelectual e técnica que sobrou com a saída dos colonos portugueses. Era gente culturalmente bem formada, todos com vontade de construir, trabalhar e também determinados a mudar o estado das coisas, com a irreverencia da juventude. Muitos dos que saíram são hoje quadros de enorme valia espalhados pelo mundo, e Angola exangue teve que recorrer a muito pior, pagando mais e os resultados aí estão à vista de todos.
                Estou à vontade para escrever porque nunca aderi a esses movimentos, que alguns deles pouco mais representavam uma mesa do Vilela transportada para a sociedade angolana. Algumas destas organizações se quisessem fazer um comício, com mobilização o máximo que conseguiriam seria encher um balneário da Cidadela.
                O poder teve medo, ou melhor alguns pícaros tiveram receio de se verem confrontados com gente bem preparada para desenvolver um País, e quando começou essa debandada e a morte abandonada, o País entrou numa espiral de asneiras suportadas por palavras de ordem e a eterna busca de procurar inimigos exteriores para justificar a nossa impreparação e a falta de coragem para fazer parar os excessos.
                A história vai fazer-se um dia, e talvez os herdeiros dos filhos dos da minha geração quando analisarem o que aconteceu concordem com o que disse Chico Buarque: “A memória é uma vasta ferida”. Convém também lembrar antecipadamente que, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, como disse o brasileiro Nelson Rodrigues.
                Das histórias bizarras desse tempo, e que são verdade porque quase todos as fomos vivendo num quotidiano da Luanda de uns tempos em que se respirava um ar angustiado, mas ao mesmo tempo ternurento e solidário quando se olhava para o quotidiano de mingua de que se vivia no dia a dia.
                Piri conta que teve que ir ao dentista, e é transportado numa viatura até ao Hospital Militar. A consulta atrasa-se e a viatura tem outro serviço, ou outra função e desaparece. Acabada a consulta, perante o desaparecimento do veículo, o guarda que o acompanhava, obviou logo a situação e mandou parar um carro qualquer e “requisitou” logo ali o carro e o motorista para “levar o preso a São Paulo”. E lá foram perante o olhar desconfiado do condutor!
                Veio-me à memória a única vez que fui cangado num recolher obrigatório. Tinha um livre de transito renovável e apesar de saber que o controlo era feito na esquina da Avenida Hoji-Ya-.Henda resolvi nem procurar alternativas, tão certo estava de ter o documento comigo. Mandaram-me parar e pediram os documentos delicadamente, e mostrei o livre transito. Foi junto ao farol confirmar se estava tudo em ordem e veio de lá dizendo que o livre transito tinha acabado às 12h do dia anterior. Lá tentei explicar ao militar que me tinha esquecido de o ir buscar ao gabinete, tinha tido uma reunião e mais uns argumentos algo pueris que não convenciam ninguém. O FAPLA ouviu o arrazoado de justificações e no fim diz-me com grande serenidade: “O camarada é dirigente, tem que dar o exemplo, e não devia ter esquecido o seu livre-trânsito, portanto vai ficar aqui como os outros”! Nada feito, eram duas da manhã e ali fiquei a assistir à atividade. Fiquei na conversa com ele, a fumar Hermínios, que recusou porque não tinham filtro. Às quatro disse-me que tinha de ir com ele levar uns cangados à 7ª esquadra móvel, ao tempo na Estrada de Catete. Lá nos apertámos na Renault4 e fiz esta viagem duas vezes porque o carro que supostamente nos levaria não apareceu. A única compensação que tive dessa noite desdormida foi ele ter-me mandado embora quando despejei a segunda carrada à porta do posto.
                Já que se está a falar de recolher obrigatório, reproduzo-a fielmente como me contaram. No largo da Maianga um FIAT 132 azul é mandado parar (Importa dizer que ao tempo era o carro de ministro ou vice-ministro que não pertencesse ao Comité Central do MPLA, já que o destes era um FIAT 132 branco). O condutor era um vice-ministro de que já não me lembro o nome. Pediram os documentos e o livre transito, e o homem não o tinha consigo. Disseram que o camarada teria que ficar por ali, pois eles não o conheciam. Parou entretanto, o Elias Dia Kimuezo e entre os “zeladores da noite” cresce um grande entusiasmo por estarem perante um ídolo. Ele olha e vê acabrunhado o ministro que conhece bem, e pergunta que está ali a fazer, e o governante diz que está detido por falta de documentos. O cantor vira-se para o chefe e diz: “Este camarada é o vice-ministro fulano de tal, e não devia ser detido!”; prontamente o camarada responsável pelo controlo deu “ordem de soltura” ao ministro e balbuciou algo do tipo: “Ele disse-nos, mas anda por aí tanto bandido, que não acreditámos”!
                Houve um tempo que eu não tinha carro e morava na Casa do Desportista, não privatizada, (uma desgraça nunca vem só) e como gostava de andar a pé saía do Kinaxixe de casa de uns amigos e aí ia eu até à ilha, tentando sempre passar pelo controlo na entrada da ponte, antes da meia noite. Normalmente eles eram deixados ali por volta das 11h30m e invariavelmente perguntavam-me as horas, e eu lá lhes dizia. Um dia vinha atrasado e perguntaram-me as horas e eu disse que eram meia noite e vinte e logo um deles disse que eu estava detido. Eu argumentei que me tinha atrasado, que estava perto de casa e que não havia necessidade nenhuma de me deter. O único argumento que acabou por prevalecer foi o ter dito que fui eu que lhe disse as horas e podia ter-lhe dito outra. Aí os dois guardas conferenciaram e lá me deixaram ir com a preocupação que não fosse pela estrada porque podia ser interpelado pelo jeep patrulha, e os problemas sobravam para eles.
                Há muitas histórias deste tipo numa Angola dos anos 80 que deixou algumas saudades, e que se detesta por outras.


Fernando Pereira 
10/02/2019

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