10 de outubro de 2009

Anatomia a som de caixa/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 9-10-09


Aleixo de Abreu, médico alentejano licenciado em Coimbra, vem para Angola em 1594, como médico pessoal de Furtado de Mendonça, nomeado por Filipe I, governador de Angola.
Durante os quinze anos em que esteve em Angola, o licenciado tentou estudar dois flagelos horríveis, o mal de Luanda e o bicho. Para o primeiro os barbeiros e curandeiros, tentavam encontrar a cura, já o segundo a mezinha era beber todas as madrugadas um cálice de aguardente.
O mal de Luanda era o escorbuto, como provou Aleixo de Abreu no seu livro sobre enfermidades tropicais, e o bicho era uma doença intestinal originada por vermes, uma “rectite epidémica gangrenosa” como hoje pode ser dito.
O livro escrito em latim e traduzido para castelhano tem o título completo: Tratado de las siete enfermedades, de la inflammacion universal del hígado, zirbo, piloron e riñones, y la obstrucion, de la satiriasi, y fievre maligna y pasion hypocondríaca. Llena otros três tratados, del mal de Loanda, del guzano, y las fuentes e sedades, e é publicado em Lisboa em 1623, tornando-se o primeiro tratado de medicina tropical publicado no mundo.
Já que se fala em medicina, é bom que se saiba que a 11 de Setembro de 1791, na folha 2, verso, do livro V do registo de bandos, Anos 1790-1793, o coronel de cavalaria Manuel de Almeida e Vasconcelos, a propósito da chegada a Loanda do “ilustre médico formado nas melhores academias europeias”, Doutor José Pinto de Azevedo, decidiu abrir uma “escola com aula de medicina prática, com instruções anatómicas, em benefício de todos aqueles que quiserem seguir a profissão”.
Terá sido provavelmente a primeira tentativa de criar uma “faculdade de medicina” em Luanda, pois pouco se soube da sua duração para além da oficialização. Em 1845 é criada em Luanda uma escola médica, à semelhança de Goa, mas para além do decreto nada andou, e Angola teve de esperar pelo dealbar dos anos sessenta do século XX para finalmente ver instalada uma faculdade de medicina, nuns Estudos Gerais Universitários, que se transformaram em Universidade de Luanda.
Há uma história interessante sobre a criação dos Estudos Gerais Universitários, em que são intérpretes Salazar, Adriano Moreira ao tempo ministro do Ultramar, Galvão Teles, ministro da Educação, Veiga Simão, pela comissão instaladora da universidade de Lourenço Marques e André Navarro, da mesma comissão mas de Luanda. Veiga Simão, contou-me que entraram todos para uma sala escuríssima e gelada do palacete de S. Bento em Lisboa, instados a sentarem-se por Salazar, que ofereceu mantas a todos os presentes, num dia de fim de Inverno. Era um quadro surrealista com várias pessoas de mantas partilhadas sobre as pernas!
Começaram a conversar sobre o assunto que os levava ali, e tinha a ver com a instalação do ensino universitário nas colónias, em que Salazar enfatizava o discurso com “ a demasiada instrução que os terroristas poderiam vir a usufruir, e a criarem-se focos de tensão semelhantes às que se viviam em Portugal” (Recorde-se que ainda estavam frescas as grandes movimentações estudantis de 1962, que paralisaram as academias portuguesas durante um lapso grande de tempo). Todos contrariavam esta opinião de Salazar, com os cuidados habituais de não entrar em choque, com as opiniões do chefe supremo. A conversa ia fluindo, e entretanto Salazar levanta-se, e diz a todos: “Se querem dar cursos superiores aos pretos é lá convosco, mas também já não acho que seja tempo de insistir muito, pelo que podem sair daqui com a certeza que assinarei o decreto da criação dos Estudos Universitários em Luanda e Lourenço Marques”, como aliás acabou por ser assinado a 21 de Abril de 1962.
O contentamento era enorme, não partilhado pelo sisudo Salazar, e Veiga Simão era de todos o mais efusivo, pedindo a Salazar para telefonar para Lourenço Marques onde estava muita gente ansiosa por saber o desenvolvimento da conversa. Salazar, com aquela figura mista de seráfico e sardónico aconselha Veiga Simão: “ Senhor Professor, era bom começar a reduzir gastos de instalação, o telefone é caro e o telegrama faz o mesmo efeito”
Parte deste artigo foi feito com recurso ao livro de Ilídio Rocha. Portugueses em África, editado pelo Círculo dos Leitores em 1993.

Fernando Pereira
5/10/09
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