30 de outubro de 2009

Viva a Malta do Liceu/ Ágora / Novo Jornal / Luanda/ 30-10-09



Na sexta-feira passada fui à apresentação do livro “Viva a Malta do Liceu”, num anfiteatro a” rebentar pelas costuras”, no Campo Grande em Lisboa.
Graficamente apelativo, profusamente ilustrado, com depoimentos muito interessantes, este livro que marca os 90 anos da criação do Liceu Salvador Correia, é um trabalho profícuo e de enorme qualidade.
Dentro da sociedade colonial, o Liceu Salvador Correia, de forma ainda que timorata, conseguiu dentro dos seus muros, manter um espírito de solidariedade, de sã convivência e de tolerância, contrastante com a realidade no contexto da cidade, muito bem ilustrado no livro, pelos depoimentos de antigos alunos: Adolfo Maria, a socióloga Ana Saint-Maurice e o economista Ennes Ferreira.
O arquitecto José de Melo Carvalheira faz um artigo notável, sobre a evolução do projecto do Liceu, da autoria do arquitecto António Costa e Silva, que é quase uma “lição de sapiência”, sobre o que foram os tempos que antecederam o ar condicionado e a “espelhiocracia” que tem tomado conta da cidade nestes tempos de desenvolvimento, no caso, insustentado!
Guilherme Espírito Santo, Onofre dos Santos, Paula Pena, Paulette Lopes, Nicolau Santos, Justino Pinto de Andrade, Fernando Nobre, Fernando Vaz da Conceição, Carlos Cruz, Carlos Pacheco, Daniel Leite, Artur Queiroz, Adélia Cohen, José Eduardo dos Santos, Rui Clington, José Carlos Venâncio, Reginaldo Silva, Aníbal Russo, Joffre Justino, Margarida Mercês de Melo, José Carlos Machado Rodrigues, Marta Cochat-Osório, Susana Neto e tantos outros que seria fastidioso enumerá-los todos, escreveram depoimentos que mostram que pessoas de gerações diferentes, com percursos de vida pessoal, profissional e política divergente, conseguem juntar-se em torno de um espírito materializado em realizações de relevo, onde toda a gente diz presente, num espírito completamente descomprometido, solidário e assumidamente de convívio salutar.
O “Novo Jornal” está muito bem representado no livro, pelo Fernando Pacheco, Carlos Ferreira (Cassé), Jerónimo Belo e já agora por mim próprio.
A equipa deste livro, que saiu de uma colaboração entre a Associação dos Antigos Alunos do Salvador Correia e um conjunto de pessoas e entidades, é constituída por Miguel Anacoreta Correia, Anabela Simão, Eurico Simeão Neto, Jerónimo Belo, João Eloy, José Lobo do Amaral, José Maria Pimentel, Manuel Ennes Ferreira e Rogério Pacheco, que num curto espaço de dez meses, com uma colaboração entusiasta de muita gente, conseguiram pôr nas livrarias um trabalho de excelência.
Soube que muita gente em Luanda foi convidada a participar, mas a adesão foi mais contida que em Portugal, e gostaria muito que o meu amigo Pedro Guerra Marques, presidente da AAALSC-MYK, tivesse participado, já que representa uma geração do Liceu da Angola independente. O Pedro, para além de presidente da direcção da Associação, é simultaneamente filho e sobrinho de duas figuras de referencia do Liceu Salvador Correia, infelizmente já falecidos: O José Luís e Valério Guerra Marques, pessoas que a memória dos angolanos nunca devia olvidar, pela dignidade profissional, disponibilidade política e probidade sem mácula, que caracterizaram as suas vidas, vividas com grande entusiasmo.
Já que se fala em pessoas de enorme carácter, ex-alunos do Liceu Salvador Correia, é imperioso não esquecer o malogrado Marcolino Meireles, que foi pioneiro de todo este movimento em torno da ideia do associativismo do “Liceu”. Foi ele que deu o primeiro toque para reunir toda a gente em volta de uma mesa, as pessoas reencontraram-se, e desde aí os encontros multiplicaram-se, os eventos sucederam-se e retomou-se o espírito do “Liceu”. Marcolino Meireles foi uma pessoa que dedicou toda a sua vida ao mais difícil: Juntar as pessoas e galvanizá-las para causas! Fê-lo enquanto dirigente da Federação de Xadrez, enquanto fundador e primeiro presidente AAALSC-MYK, e mesmo limitado pela a doença que o vitimaria, ainda lhe sobrou força bastante para criar uma associação que conseguisse meios ao diagnóstico precoce do cancro.
Por tudo isto Marcolino Meireles, a eterna gratidão de todos!
Fernando Pereira
27/10/09

25 de outubro de 2009

A emenda vem do ouvido, o juízo da multidão/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 23-10-09




“O que faz uma nação grande não é tanto os seus grandes homens, mas a estrutura dos seus inumeráveis medíocres”
Ortega Y Gasset (Madrid 1883-1955)
A propósito de um vídeo de uma multifacetada actriz brasileira, Maitê Proença, com talentos sublimados há tantos anos, levantou-se um coro de indignação que há muito se não via por terras de “além ar”(Portugal).
Vi o vídeo, que é uma parte de um programa “Saia Justa” do canal de cabo, GNT, e sinceramente a única coisa que consegui, foi mesmo encontrar alguma similitude na forma como Angola e os angolanos são tratados na blogosfera por alguns expatriados que falam o português, e que trabalham em Angola, de forma recorrente.
Só me apetece citar Eça de Queiroz, que no fim do século XIX, e ainda o número dos países que falavam português no mundo se limitava ao Brasil, dizia:” O brasileiro tem o defeito dos portugueses só que dilatados pelo calor”.
Desapetece-me ter que vir aqui, usar os estafados argumentos de um e outro lado, sobre a forma algo ignara como por vezes se embeiçam as partes envolvidas, mas a realidade é que o angolano pode ter muito defeito, pode dizer muito mal de tudo o que é seu, mas detesta que escarneçam das suas idiossincrasias colectivas.
Tudo isto me fez recuar no tempo, e resolvi reler um dos poucos exemplares que existem de literatura colonial, “ O Velo de Oiro” do escritor Henrique Galvão. Quando se diz literatura colonial, procura distinguir-se do que depois se apelidou de “literatura ultramarina”, que teve um serviçal permanente, Amândio César; acolitado por uns quantos apaniguados ideológicos, como Forjaz Trigueiros, Joaquim Paço de Arcos e outros.
Henrique Galvão (1895-1970) era um integralista indefectível, foi governador da Huíla, inspector superior do Ministério das Colónias, Secretário da Exposição Colonial do Porto, Director da Emissora Nacional e depois disso tudo intransigente opositor de Salazar, o primeiro homem no mundo a desviar um avião por motivos políticos, assim como a figura central do desvio do paquete português “Santa Maria”, que para além da denúncia do regime salazarista (Salazar, que tem como seu maior panegírico, com visibilidade, Jaime Nogueira Pinto), terá tido uma enorme importância, senão determinante, no levantamento de 4 de Fevereiro de 1961.
“O Velo de Oiro” (1931) é uma obra que deveria ser reeditada em Portugal, e devia ser lida pelos portugueses que demandam Angola na busca do dinheiro fácil, ou na procura de resolver os problemas que deixaram noutros lados, e que nalgumas circunstâncias só os agravam! É curioso como é que um livro escrito há 73 anos, tem tanta actualidade, pois “ o sonho que comanda a vida”, nem sempre tem um final razoável, e raras vezes um final feliz. “ O Velo de Oiro”, é basicamente a história de Rodrigo que embarca para África atraído pelo enriquecimento fácil, buscando muito dinheiro e pouco trabalho, e toda a narrativa é construído nas ilusões e desilusões numa África, que nada tinha a ver com o que ouviu e imaginava na sua aldeia distante.
Henrique Galvão ainda tem outro dentro da mesma sequencia, “O Sol dos Trópicos” (1936), mas já contextualizado de outra forma, talvez mais parecido com uma intervenção de Lobo Antunes na fase do “Esplendor de Portugal” ou o seu quase ignorado livro “As Naus”, uma critica muito conseguida ao colonialismo, socorrendo-se das figuras históricas, tão ao gosto da ideologia corporativista.
Há um provérbio popular umbundo que diz: “Ndao lia esila ku ka pohgolole. Ci kasi oko, haiko ci kasi oko”, que quer dizer mais ou menos “não devemos esperar escapar às dificuldades, indo para outra aldeia!
Gostava de poder integrar aqui, porque julgo pertinente no enquadramento do que se tem escrito, a obra de Gilberto Freyre, adaptada às circunstâncias de hoje, e a todo este movimento de gente que faz do “aeroporto 4 de Fevereiro”, primeiro local de peregrinação da lusofonia.
Por razões de enquadramento gráfico, e como pode ser um tema servido de forma “requentada”, sem que perca actualidade, a ele havemos de vir mais cedo que tarde!
Fernando Pereira 14/10/09

16 de outubro de 2009

“ O futuro caminha para o passado”/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda /16-10-09



“ O futuro caminha para o passado”
Edgar Morin (Paris-1921)
Há muitas coisas perturbadoras na Angola de hoje, que devem até ter sido sempre perturbantes, só que a nossa idade, o empenho nas tarefas de construir alguma coisa que assumíamos nossa, ou mesmo exercícios de expiação continuados, dava-nos uma couraça de alguma complacência que hoje destoleramos.
Uma das coisas que me confunde seriamente nas viagens pelo interior, ou mesmo uma passagem por mercados e esquinas de comércio informal em Luanda, é a quantidade de carvão à venda.
Numa Angola onde os atentados ambientais são quotidianos, a desarborização em série para o fabrico do carvão, pode trazer consequências de alguma gravidade num futuro próximo, com o abate indiscriminado das árvores, sem que haja uma reposição que permita que zonas que conheci frondosas, sejam hoje paisagens de erva rasteira, e nalguns casos já um pouco tipo solo lunar, algo que não é alheia a rápida degradação do solo africano.
Podia falar da actividade despudorada de alguns madeireiros também, mas a realidade é que é matéria que não conheço o suficiente, para poder sustentar uma discussão, pelo que tudo que aqui escrevo fica em jeito de “bitaite”!
Ao longo das décadas de 60 e 70 o Caminho de Ferro de Benguela, plantou entre o Cubal e o Luau , 95.000.000 de eucaliptos, o que transformou Angola no segundo território do mundo com maior numero de eucaliptos plantados, só ultrapassado pela Austrália, de onde a espécie é originária. O CFB fez esta plantação com o objectivo de utilizar a madeira como lenha, já que era substancialmente mais barata que o gasóleo.
A verdade é que esta enormidade de eucaliptos, que nunca foi avaliada em termos ambientais, levantou logo outro tipo de perspectivas de negócio, que passaria pela substituição da obsoleta fábrica de papel do Alto-Catumbela, através do seu reequipamento por maquinaria de última geração. A fábrica, com tecnologia sueca estava encaixotada para embarcar para o Lobito em 1974, mas com a degradação da situação militar, acabou por ser instalada na Figueira da Foz no dealbar dos anos 80, a Soporcel, ao tempo o maior fabricante de pasta de papel da Europa meridional.
Já que se falou em Caminho de Ferro de Benguela, que hoje está a ser reabilitado por empresas chinesas denegrido por certa mujimbice estulta de Luanda, com o argumento que” os chineses nada percebem de comboios (!!!)”,podemos dar um olhar rápido sobre estes1348Km de linha, para além de 301 Km de ramais (Cuima por exemplo).
O CFB surge objectivamente como uma necessidade de embaratecer, em termos de transporte os minérios do Shaba no Congo. Para o porto da Beira a distancia era de 2735km, bem menos que a distância a Capetown (3965km), a outra alternativa.
Não vou entrar em pormenores sobre a história do CFB, que em 2001 passou na totalidade para a posse do Estado Angolano, conforme ficara previsto na sua adjudicação em 28 de Novembro de 1902, mas sim lembrar que o Lobito de hoje deve a sua existência ao CFB, à população de Benguela que queria um lugar menos insalubre e ao comércio da borracha no fim do século XIX.
Benguela era uma sonolenta vilória, onde o tempo passava para passar o tempo, e os construtores ingleses do CFB quando ali chegaram deparam-se com “quase nada”, e como tiveram que trazer tudo, decidiram fazê-lo no referenciado Lobito, onde as águas da sua baía iriam acolher um dos melhores portos da África ocidental. O Lobito era uma língua de areia com choupanas de pescadores, local de alguma “pirataria”, conhecido pela Catumbela das ostras, ou a Catumbela da água salgada.
Começaram a construir armazéns, cais acostáveis, instalações administrativas, casas dos encarregados e empregados, hospital, serviços sociais e locais de lazer e desporto; O Lobito Spots Club, de instalações modelares, era um lugar de eleição no Lobito, mas também um dos locais que não procurava esconder a segregação racial e social da sociedade do Lobito ao longo de décadas, muito diferente da Benguela crioula.
O Hotel Terminus, com construção iniciada nos anos 20 é o único hotel angolano que tem características que o podem colocar como um hotel de charme em África, pois a sua construção obedeceu a características muito peculiares, e no seu interior respira-se uma atmosfera de histórias múltiplas de viajantes, andarilhos, aventureiros, gente normal, num enquadramento arquitectónico único no País.
È sempre muito bom ir ao Términus, e apesar de terem desaparecido alguns murais do Neves de Sousa e algum mobiliário que me habituei a ver desde miúdo, tudo faz voar a minha imaginação.
Se passarem por lá vejam as fotos das paredes e recuperem um pouco o “reviver o passado no Lobito”!

Fernando Pereira
9/10/09

10 de outubro de 2009

Anatomia a som de caixa/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 9-10-09


Aleixo de Abreu, médico alentejano licenciado em Coimbra, vem para Angola em 1594, como médico pessoal de Furtado de Mendonça, nomeado por Filipe I, governador de Angola.
Durante os quinze anos em que esteve em Angola, o licenciado tentou estudar dois flagelos horríveis, o mal de Luanda e o bicho. Para o primeiro os barbeiros e curandeiros, tentavam encontrar a cura, já o segundo a mezinha era beber todas as madrugadas um cálice de aguardente.
O mal de Luanda era o escorbuto, como provou Aleixo de Abreu no seu livro sobre enfermidades tropicais, e o bicho era uma doença intestinal originada por vermes, uma “rectite epidémica gangrenosa” como hoje pode ser dito.
O livro escrito em latim e traduzido para castelhano tem o título completo: Tratado de las siete enfermedades, de la inflammacion universal del hígado, zirbo, piloron e riñones, y la obstrucion, de la satiriasi, y fievre maligna y pasion hypocondríaca. Llena otros três tratados, del mal de Loanda, del guzano, y las fuentes e sedades, e é publicado em Lisboa em 1623, tornando-se o primeiro tratado de medicina tropical publicado no mundo.
Já que se fala em medicina, é bom que se saiba que a 11 de Setembro de 1791, na folha 2, verso, do livro V do registo de bandos, Anos 1790-1793, o coronel de cavalaria Manuel de Almeida e Vasconcelos, a propósito da chegada a Loanda do “ilustre médico formado nas melhores academias europeias”, Doutor José Pinto de Azevedo, decidiu abrir uma “escola com aula de medicina prática, com instruções anatómicas, em benefício de todos aqueles que quiserem seguir a profissão”.
Terá sido provavelmente a primeira tentativa de criar uma “faculdade de medicina” em Luanda, pois pouco se soube da sua duração para além da oficialização. Em 1845 é criada em Luanda uma escola médica, à semelhança de Goa, mas para além do decreto nada andou, e Angola teve de esperar pelo dealbar dos anos sessenta do século XX para finalmente ver instalada uma faculdade de medicina, nuns Estudos Gerais Universitários, que se transformaram em Universidade de Luanda.
Há uma história interessante sobre a criação dos Estudos Gerais Universitários, em que são intérpretes Salazar, Adriano Moreira ao tempo ministro do Ultramar, Galvão Teles, ministro da Educação, Veiga Simão, pela comissão instaladora da universidade de Lourenço Marques e André Navarro, da mesma comissão mas de Luanda. Veiga Simão, contou-me que entraram todos para uma sala escuríssima e gelada do palacete de S. Bento em Lisboa, instados a sentarem-se por Salazar, que ofereceu mantas a todos os presentes, num dia de fim de Inverno. Era um quadro surrealista com várias pessoas de mantas partilhadas sobre as pernas!
Começaram a conversar sobre o assunto que os levava ali, e tinha a ver com a instalação do ensino universitário nas colónias, em que Salazar enfatizava o discurso com “ a demasiada instrução que os terroristas poderiam vir a usufruir, e a criarem-se focos de tensão semelhantes às que se viviam em Portugal” (Recorde-se que ainda estavam frescas as grandes movimentações estudantis de 1962, que paralisaram as academias portuguesas durante um lapso grande de tempo). Todos contrariavam esta opinião de Salazar, com os cuidados habituais de não entrar em choque, com as opiniões do chefe supremo. A conversa ia fluindo, e entretanto Salazar levanta-se, e diz a todos: “Se querem dar cursos superiores aos pretos é lá convosco, mas também já não acho que seja tempo de insistir muito, pelo que podem sair daqui com a certeza que assinarei o decreto da criação dos Estudos Universitários em Luanda e Lourenço Marques”, como aliás acabou por ser assinado a 21 de Abril de 1962.
O contentamento era enorme, não partilhado pelo sisudo Salazar, e Veiga Simão era de todos o mais efusivo, pedindo a Salazar para telefonar para Lourenço Marques onde estava muita gente ansiosa por saber o desenvolvimento da conversa. Salazar, com aquela figura mista de seráfico e sardónico aconselha Veiga Simão: “ Senhor Professor, era bom começar a reduzir gastos de instalação, o telefone é caro e o telegrama faz o mesmo efeito”
Parte deste artigo foi feito com recurso ao livro de Ilídio Rocha. Portugueses em África, editado pelo Círculo dos Leitores em 1993.

Fernando Pereira
5/10/09

3 de outubro de 2009

Há cada latitude.../Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 3-10-09



No dealbar dos anos 70, era habitual na Europa os universitários fazerem o Inter-Rail, uma viagem pelos países que quisessem, com um bilhete que dava para um mês.
O bilhete era barato, mochila às costas, tenda partilhada com companheiros, um fogão camping gás, uma frigideira, uma leiteira, um prato e uma caneca de alumínio, um par de calças de ganga, várias t-shirts, um camisolão de lã, uma toalha, muita papa Cerelac, Nestum e leite condensado Moça, muito pouco dinheiro distribuído por tudo o que era buraco e uma bolsa de cabedal ao pescoço onde colocávamos o Passaporte e o cartão internacional de estudante.
As viagens de comboio são fascinantes, e quando são longas permitem toda uma série de sentimentos cruzados, aliados à contemplação, que o balançar sereno das carruagens nos traz num estado de completo desprendimento. Recordar Agatha Christie nos seus incontornáveis ‘4.50 from Paddington”, ou “Murder on Orient Express”, Zola em “La Bête Humaine”, “Desert Rails” de L.P. Holmes, Sepulveda no seu brilhante “ Patagónia Express”,Tolstoi, Remo Ceserani, Machado de Assis, Eça de Queirós entre tantos outros, é fazer o mundo com bonitas palavras escritas sobre carris.
Nessa viagem dormíamos nas viagens durante as noites nos comboios, nos lugares mais incríveis das carruagens, nas salas das gares, nos jardins públicos, às vezes nos parques de campismo e muito ocasionalmente nas pousadas da juventude. Não vou descrever minuciosamente essa viagem, mas que de facto deu para fazer coisas que nunca mais na vida tivemos oportunidade de fazer, durante vinte e poucos dias, num ambiente de grande companheirismo, de enorme solidariedade, e num querer conhecer o mais possível uma Europa, que para nós angolanos, era ao tempo de igual fascínio o que o Dubai é hoje para certos angolanos!
Nos canais de Amesterdão, estávamos sentados num cais a ver o movimento dos barcos e a comermos a nossa frugal refeição diária, e naturalmente falávamos alto sem cuidados com a linguagem. A determinada altura uma senhora que nos estava a observar, pergunta-nos num português quase perfeito, de onde éramos; Respondemos que éramos de Angola, e muito surpreendidos ficámos quando ela disse que conhecia muito bem Angola, e pelo que descreveu conhecia-a bem melhor que alguns de nós. A sua ligação a Angola, justificava-se pelo facto do irmão ser padre no Chinguar, tendo-nos contado algumas peripécias das suas visitas em Angola, acompanhamento adequado e sempre lembrado opíparo lanche, que nós já não tínhamos desde que arrancámos de Coimbra.
Rapidamente esquecemos este lanche, porque a viagem teve peripécias mais interessantes para recordar, mas a verdade é que este lanche provou ser providencial uns anos mais tarde, noutras circunstâncias e noutras latitudes.
Fiz pelo País, múltiplas viagens na discussão da carta do desporto angolano, e no estatuto das associações desportivas angolanas, acompanhado com o meu amigo, António Sousa Santos, insigne mestre do desporto que Rui Mingas em boa hora recrutou para a SEEFD. Uma dessas viagens foi ao Huambo e ao Kuito. No Huambo estávamos no hotel Almirante, um verdadeiro exemplo kitsch e a tresandar a Lifebuoy em todos os objectos, andares, ancoras, bombordos e estribordos, numa decoração delirante e a provocar uma hilaridade impossível de conter. Saímos de manhã cedo, “depois da camioneta de carreira”, porque assim se saberia se haveria impedimentos na estrada, e eis-nos num Fiat 128 a caminho do Kuito, tendo-nos limitado a beber um café e umas bolachas de qualidade duvidosa; Passámos Tcikala-Tchiloango, a pedra do Alemão, onde reza a história que se terá suicidado um alemão aí residente quando soube da derrota da Alemanha na 2ª guerra, Katchiungo, e numa curva apertada, por baixo de uma ponte do CFB, eis que aparece o nome da terra: Chinguar. Conheço algumas pessoas ilustres dessa terra como o meu amigo Orlando Ferreira Rodrigues e o Carlos Correia, físico, catedrático da Universidade de Coimbra, e acompanhante de viola do Zeca Afonso, mais conhecido por Bóris, pelas semelhanças com o actor britânico Boris Karloff ( 1887-1969).
Nesse dia lembrei-me do lanche de Amesterdão uns anos antes, e fiz questão de visitar o padre, que perante uma reserva inicial, ficou encantado ao saber em que circunstancias tinha conhecido a sua irmã. O padre Arnaldo convidou-nos para um lauto pequeno-almoço, que destoava do quotidiano daquele tempo, em que ele dizia que só não podia ser melhor, porque na semana anterior as “gloriosas Faplas tinham surripiado umas galinhas do galinheiro da paróquia (sic)”. Encheu-nos o carro de iguarias, como cestos de morangos que carregámos no regresso ao Huambo, e ainda tive o prazer de ouvir os agradecimentos do motorista ao padre, de forma reconhecida e repetida: “Muito obrigado camarada padre”! Passei por lá algumas vezes e sempre partilhámos o que havia para comer, e trocarmos conversas interessantes, o que não é fácil em mim dado alguma formação assumidamente anti-clerical.
Sei que o padre Arnaldo já morreu há muito, mas o Chinguar deve-lhe muito e deixou muitos amigos entre toda aquela gente, como posso testemunhar pelo conjunto de pessoas que sempre o relembram com palavras de saudade e embevecimento.
Amesterdam, foi uma das músicas míticas de Jacques Brel, que se fosse vivo teria feito em Abril deste ano oitenta anos! Também não o esquecemos!

Fernando Pereira
28/09/09
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