28 de março de 2008

Houve fogo sem fumo/Ágora/ Novo Jornal-28/03/08








Houve fumo sem fogo!



Hoje, vou fazer uma homenagem a uma verdadeira instituição desaparecida na penumbra difusa da globalização. Pode parecer paradoxal, e quiçá mesmo socialmente desenquadrado, mas estou a falar dos cigarros Hermínios.
Verdadeiro decano dos tabacos angolanos, o Hermínios, nasce em 31 de Outubro de 1886, precisamente no dia da inauguração do Caminho-de-ferro de Luanda e Ambaca, e era vendido numa caixinha azul preta e vermelha a $390 cada maço. Partilhava com maços com nomes interessantes como Natália, Orientais, Presidentes, Pérola, Sultana, Jacintos, Francês nº 1 entre outros.
A partir de 1928, começaram a surgir por imperativos da concorrência (Ricardo Pires instala a ETA), novas marcas, e só mesmo o Hermínios resiste, ainda que com nova “roupagem”, a mesma que se manteve até aos quase dias de hoje. Macedónia, Rey, Estrellas, Alerta, e o Swing vão aparecendo, já como tabaco claro, o que leva a uma quebra do consumo dos Hermínios a partir de 1935. É engraçado que a marca Caricocos, surge como homenagem à firma Diogo e Companhia, empresa que ficava ali ao pé da Biker, nome porque era conhecida pelas populações do mato, na sua tentacular distribuição comercial, pela então colónia de Angola, nomeadamente no Norte.
Fui um fumador inveterado, e os Hermínios foram os cigarros que mais saudades me deixaram, mas digo-o quase off-record.
Digo sem rebuço que estes cigarros marcaram a história do século XX angolano.
Quem me ousa ler com regularidade, deve estar a dizer que ensandeci de vez, pois coloco os Hermínios num pedestal que ninguém ousaria sequer lembrar-se, mas a realidade é que assistiram a toda a história do sec. XX de Angola
Os Hermínios sobreviveram ao desastroso governo do “Rhodes” à portuguesa, Norton de Matos. Assistiu ao governo de Filomeno da Câmara e à implantação do tenebroso Acto Colonial, instrumento jurídico-administrativo que colocou os angolanos ao nível da escravatura. Manteve-se de chama acesa quando começou a contestação à ditadura Salazarenta e ao colonialismo do fim da 2ª Grande Guerra.
Foi com o seu aroma inigualável que se criaram tertúlias literárias, grupos de acção, movimentos de libertação, e foi também o primeiro cigarro que muitos ousámos fumar no desafio a penates, porque era provavelmente o mais parecido com aquela drogazinha inofensiva chamada marijuana. Sentíamo-nos de peito feito, quase mesmo a rebentar, pois era um cigarro que compartilhava personalidade.
O seu design era branco (pouco), azul-escuro (muito), vermelho (quanto baste) e manteve-se desde os anos 30 ao fim do século XX, com a mesma embalagem e com um leão de juba enorme, que parecia que todas as semanas ia a uma permanente num qualquer cabeleireiro do burgo.
Foi o verdadeiro símbolo da Angola independente, pois apesar de ser um cigarro com alguma utilização interclassista, era acima de tudo um tabaco afirmativo como rebeldia. Ninguém ousava ver um ex-colono ou candidato a futuro empresário, travestido de revolucionário fumar Hermínios; Fumava invariavelmente AC, Coimbra, Baia, Delta ou SL, e quando começou a epopeia do mercado voltou ao Marlboro, e se os negócios começassem a correr bem, faziam a única concessão conhecida aos cubanos, que era fumar Cohiba ou Monte Cristo.
Havia uns quantos que fumavam cachimbo, e o Ouro Preto foi-se mantendo, até a economia dar a maior importância ao ouro negro e as pessoas aconselhadas a fazer um check-up light q.b., passaram a deixar de fumar para poderem usufruir, e talvez fruir de muitos negócios, onde se pede que se atire muito fumo para certos olhos, e desejavelmente para certos olhares.
Desvou continuar a fazer a minha campanha pelos Hermínios, e guardo religiosamente um maço, que tanto me custou não fumar, mas quando olho para ele, sem comendas e recomendas, e vejo o preço do tempo em que o Kwanza era um rio com poucas barragens e com margens mais libertas, apetece-me mesmo continuar a quase idolatrá-lo.

Fernando Pereira
21/3/2008
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