28 de dezembro de 2012

Carta a Pedro Alexandrino da Cunha!/ Novo Jornal nº258/ Ágora / Luanda 28/12/2012




Uma das habituais partidas que se faziam aos que partiam para Luanda durante o ultimo quartel do seculo XIX e a primeira metade do seculo XX era a carta de recomendação para Pedro Alexandrino da Cunha.
Pedro Alexandrino da Cunha teve muito justificadamente direito à primeira estátua edificada nas colónias portuguesas, resultado de uma recolha de fundos entre os comerciantes de Luanda para homenagear o governador-geral de Angola entre 1845 e 1848. Entre outras coisas que marcaram indelevelmente a sua administração foi a regulamentação profícua de vários sectores da cidade, desde a recolha do lixo, á presença dos animais nas ruas, iluminação, horários do comércio e um sem número de posturas que tornaram a cidade com outra ordem e com um pouco mais de vida. Com a criação do “Boletim Official” passou a ser considerado o pioneiro da Imprensa Angolana.
Quando da deposição dos símbolos do colonialismo as estátuas foram justificadamente apeadas das suas peanhas, pois simbolizavam o fim de um tempo que se queria de mudança, levaram todas o mesmo destino exceção ao Monsenhor Alves Da Cunha, um misto de Rasputine, Calvino e Quirino de Jesus. Foram todas para a fortaleza, algumas sem justificação como a de Tomás Vieira Da Cruz, poeta nascido em Portugal que versejou a angolanidade como poucos e o caso do Pedro Alexandrino da Cunha que se elevava no meio de uns quiosques horríveis em frente ao renovado edifício da Estação Central dos Correios.
Nesse tempo todos os desembarcados de Portugal com os parcos haveres em malas de cartão andavam pelas portas do mar na busca incessante o Sr. Pedro Alexandrino da Cunha. As portas do mar eram precisamente no largo fronteiro aos CTT, onde uns gasolinas faziam o desembarque de pessoas e bens para os navios que ficavam fundeados no meio da baia de Luanda.
O luandense com a sua prosápia de gozação permanente ia dizendo aos “desembarcados” que “esperassem por ali que ele não demoraria”, que “devia ter ido lá cima tratar de alguma coisa” apontando para a peanha, “Era um homem muito ocupado com as pombas”, “Gostava de ver os flamingos”, na realidade era um verdadeiro gozo o que faziam às gentes que vinham de Portugal no sonho de uma terra onde tudo sairia rico, chefes de qualquer coisa, e tudo o que os 18 dias de viagem ajudavam a alimentar ao muito que se ouvia nas aldeias do pobre interior de Portugal dominado pela padralhada e pelo caciquismo.
Era o primeiro contacto com a terra, e alguns ainda pagaram dos seus magros haveres a uns maduros para conseguirem chegar à fala com o Sr. Alexandrino, que objectivamente ninguém sabia o que fazia, mas pela forma como contaram e a forma como falavam em Luanda tinha que ser alguém poderosamente rico.
A alguns sortudos mostravam logo quem era o Pedro Alexandrino da Silva, e a deceção era a que se imagina, mas imaginem os requintes de malvadez que havia quando lhes diziam que só no dia seguinte podiam ser recebidos e ei-los a ser levados para tugúrios em pátios de comerciantes para passarem a noite. Esses espaços foram durante seculos lugares de “armazenamento” de escravos para depois serem enviados para S. Tomé, Brasil e América Central.
Quando se davam conta do logro, era o bom e o bonito, mas também quem chegava não lhe apetecia ser gozado e acabava por engolir em seco e esperar a oportunidade de fazer a outro o que lhe tinha sido feito.
Com a inauguração do cais acostável no início dos anos 50, a carta a Alexandrino caiu em desuso e ainda foi tentada uma carta a Diogo Cão, que tinha uma estátua de um mau gosto que rivaliza com algumas que os norte-coreanos “plantaram “ um pouco por toda a Angola, mas como era uma figura mais conhecida não permitiu as “patifarias” que durante anos encheram o anedotário da pacata urbe.
Havia ao tempo um comboio que fazia a ligação entre os cais das colunas e a estação de caminho-de-ferro do Bungo, e que corria quase toda a marginal. Também terá havido uma fracassada tentativa de copiar as praias europeias que tinham uns pequenos comboios para levarem os banhistas às praias, mas esse “comboio bébé” que fazia o percurso entre a ermida da Nazaré e a Igreja do Cabo, teve uma efémera existência, apesar da tentativa de o fazer chegar à Praia do Bispo, onde hoje está a ser construída uma imitadela mista de Yamoussoukro e aquela enormidade Ceausescada de Bucareste.
Se não nos virmos antes, um Bom 2013, e pede-se aos portugueses expatriados recentemente que façam chegar a carta ao Pedo Alrexandrino da Cunha, e não andarem a dizer em todo o lado que em Angola só há corruptos! Primeiro porque não é verdade e depois porque não é correto para quem lhes dá trabalhinho. Só isto!
Uma nota de rodapé: Já não é a primeira vez que peço que coloquem lá a estátua, repito o pedido em época festiva. Façam de conta que é uma homenagem ao Campeonato do Mundo de Hóquei em Patins!

Fernando Pereira
17/12/2012

21 de dezembro de 2012

É mais ou menos isto! / ágora / Novo Jornal nº257/ Luanda 21/12/2012



Num tempo não muito distante aproveitava o “Dia da Família” para enviar uns postais a amigos, que raras vezes via e nessas circunstâncias aproveitava para escrever umas palavras com uma carga mais emotiva que o vulgar “boas festas” ou outras frases feitas adaptadas à época em curso.
O aparecimento do correio electrónico e as animações em diferentes formatos permitiram-me começar a escrever menos e a enviar “felicitações “ a gente que mal conheço e que em determinadas circunstâncias começando a conhece-los melhor desejo-lhes precisamente o contrário.
Aproveitei alguns artigos regulares para dar motes e remoques a algumas situações, na expectativa que o espirito nataleiro não deixasse os destinatários aborrecidos comigo, mas nem esse objetivo foi conseguido porque toda a expectativa está num tempo em que o enquadramento prandial concita a maior parte das preocupações e isto de missas do galo, árvores de Natal e outros artefactos passam para segundo plano.
Dizia com alguma piada um amigo meu que o tempo do Natal, que eu gosto mesmo de insistir dizer que é o “Dia da Família”, tem a sua atividade central de comemorações no “4 de Fevereiro”. É provavelmente a maior homenagem que a áspora, a diáspora, os patriados e os expatriados fazem à data da eclosão da luta armada em Angolano já distante 1961.
Dos idos tempos das caravelas, das missangas, tecidos, espelhos e uma cruz transportada por um missionário a prometer o céu a quem se recusasse a ser bígamo, trígamo,quadrígamo etc. , o que hoje assistimos é o pecado da gula consubstanciado no bacalhau, azeite, vinho, frutos secos, etílicos diversos, bolos e outras iguarias tão distantes dos nossos tempos das dificuldades quotidianas de todos nos primeiros tempos da independência.
Para o nosso continente a recente decisão do Bento, não o de Luanda, mas o do Vaticano, o bairro de 14ha no centro de Roma, de acabar com a vaca e o burro acabou por ser uma medida de muito bom senso, pois evitou-se um dos maiores problemas dos presépios ao vivo. De um momento para o outro começaram a proliferar em escolas, clubes, centros de convívio, e outros locais públicos presépios, o que é estranhável num país constitucionalmente consagrado como laico. Que se presepeteie nas igrejas, seminários e colégios de frades e madres nada tenho a opor, agora imporem isso na sociedade civil é um pouco de descaramento e mais um claro desrespeito à liberdade individual.
Pior que isso é mesmo destruir escolas, teatros e salas de espetáculos para construir arranha-céus para empresas majestáticas, algumas delas em que os fundadores nasceram na roda…da sorte!
Há um pedaço final do “Mayombe” do Pepetela que releio todos os anos, quase um ritual desde o dealbar dos anos 80, não sei se por catarse a algo que ainda não descobri: “….e vejo quão irrisória é a existência do indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo. Penso, como ele, que a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia? Existem, no entanto, e eu sou um deles. Sem Medo também o sabia. Mas insistia em que era um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando, nítido, o verde do Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do verde.”
Cada ano que leio sinto-o de forma diferente, o que de certa forma me liberta e tolhe. Porque já não sou jovem e estou livre da certeza que sei de tudo e já me vou confrontando em que antigas certezas são abaladas pela teimosia dos factos e como eles são irrefutavelmente teimosos só passo a colecionar dúvidas e sem respostas tangíveis começam a afigurar-se preocupantes.
Como é uma época de conciliação e reconciliação segundo dizem, e de facto não estou para aí virado vou-me ficar por aqui porque mais não fiz que juntar o capim seco para deitar o fósforo, mas também começo a sentir que não envelhecemos, mas sentimos passar os anos e cada vez mais a gostar dos da “Família”, dos que gostam mesmo do “Dia da Família”.
Anataliai-vos bem gente da minha terra!
Fernando Pereira
18/12/2012

14 de dezembro de 2012

Há mais mundo (II) /Ágora/ Novo Jornal nº256/ Luanda 14-12-2012



Os próximos anos vão determinar se as opções dos nossos filhos serão maiores ou menores. Temos hoje um manancial de informação que qualquer geração anterior sonhou ter sobre as interações entre a população, os recursos e o desenvolvimento. Dispomos de base para agir. O combate definitivo tem que passar por tomar medidas decisivas para combater a pobreza, o crescimento populacional e proteger o ambiente.
Há três décadas havia um indício que o ritmo da população estaria a abrandar em todo o mundo excetuando a África e o Sul da Ásia. Então foi estimado que até final do século XXI a população estabilizaria nos 10,2 mil milhões de pessoas.
Hoje a situação é bem menos prometedora. Os progressos na baixa da natalidade foram mais lentos do que se esperava, pelo que as Nações Unidas já acham 11 mil milhões de pessoas a estimativa otimista, falando-se já nos 14 mil milhões, caso não resultem os planos que visem a redução de fertilidade, que continuam longe do projetado. A título de exemplo, em quinze países, treze dos quais em África, as taxas de natalidade cresceram na última década; nesta amostra houve vinte e três países, com grandes campanhas de fertilidade a taxa de natalidade caiu apenas menos de dois por cento.
Atualmente, o nosso planeta tem “só” sete biliões de seres humanos, dos quais mais de mil milhões vivem na pobreza mais aviltante. A pergunta que urge colocar é o que fazer para estancar esta “hemorragia” que vive ao nosso lado?
O impacto do Homem já foi bastante para degradar o solo de milhões de hectares, pôr em risco manchas de florestas tropicais, milhares de espécies que nelas vivem, reduzir a camada de ozono e criar um aquecimento global cujas consequências vamos ignorando deliberadamente.
Os “mil milhões do topo”, os que vivem nos países industrializados, são responsáveis pela maior parte dos recursos utilizados e dos desperdícios gerados. Esses países são esmagadoramente responsáveis pelos danos na camada de ozono e pela acidificação, bem como por cerca de dois terços do aquecimento global.
Contudo, nos países em desenvolvimento o efeito combinado da pobreza e do crescimento populacional desses “últimos mil milhões” afeta o ambiente nalguns dos domínios mais sensíveis, provocando nomeadamente a continuada desflorestação e concomitante degradação progressiva dos solos.
Restabelecer o equilíbrio exige ações em três grandes áreas:
1º- Todos os países, mas em especial aqueles que albergam o quarto mais rico da população mundial, devem optar por tecnologias mais limpas, pela suficiência alimentar e pela conservação dos recursos.
2º-Combate sem tréguas à pobreza.
3º-Redução da taxa global do crescimento populacional.
A qualidade de vida humana é inseparável da qualidade do ambiente. Torna-se cada vez mais claro que ambas são inseparáveis da questão do número e concentração de pessoas. Uma das lições a reter de duas últimas décadas de trabalho no domínio da população é a de que os investimentos no desenvolvimento dos recursos humanos (melhoria da condição feminina, no acesso à educação, na saúde e nos meios de planeamento familiar, por exemplo) não só melhoram a qualidade de vida como também constituem a maneira mais rápida de reduzir as taxas de crescimento populacional. Abrindo opções no presente, fazem-no também para o futuro.
O investimento em recursos humanos propicia uma base sólida de rápido desenvolvimento económico, e pode ter consequências significativas na crise ambiental. É essencial para a segurança global. No entanto, num passado recente, a este tipo de investimento tem sido atribuída menor prioridade do que à despesas militares ou com a industria ou agricultura.
É altura de definir nova escala de prioridades: não existe mais nenhuma área de desenvolvimento em que o investimento possa dar maior contribuição para as opções e qualidade de vida, tanto atuais como futuras.
Fernando Pereira
5/12/2012


Há mais mundo (I) / Ágora / Novo Jornal nº255/ Luanda 7-12-2012




«Não sou suficientemente jovem para saber tudo.»
James Matthew Barrie (1860-1937)
A década que vivemos vai ser crítica. As opções dos próximos dez anos vão determinar o ritmo do crescimento populacional durante grande parte da primeira metade do século XXI; vão decidir se a população mundial triplicará ou apenas duplicará, antes de deixar de crescer. Vão determinar uma aceleração ou abrandamento do ritmo de destruição do ambiente.
Esta década por razões diversas vai decidir a fisionomia do que resta do seculo XXI e pode decidir o futuro da terra como lar da humanidade.
A população atual é de sete biliões (31 de Outubro de 2011) aumentam em média três pessoas em cada três segundos-cerca de um quarto de milhão por dia. Na atual década em cada ano estima-se que haverá mais 100 milhões de pessoas, mais ou menos a população da Europa Oriental ou da América Central ou seja mais mil milhões de pessoas, toda uma China durante a década.
Os maiores aumentos verificar-se-ão na Asia meridional e em África. O Sul da Ásia, que tem quase um quarto da população mundial, será responsável por 31 por cento do crescimento total até ao final do século e a África, que atualmente tem 12 por cento da população mundial, será responsável por 23 por cento desse mesmo crescimento. Em contrapartida o Leste da Ásia, que tem 25 por cento da atual população do mundo apenas contribuirá com 17 por cento do aumento global previsto. Da mesma forma aos países denominados desenvolvidos, Europa, Rússia e todas antigas repúblicas da ex-URSS, América do Norte e Japão representam 23 por cento da atual população do mundo e terão um aumento previsível de 6 por cento.
O problema persiste nos países de menores recursos, ou o inapropriadamente chamado de países pobres, os maiores aumentos serão aí refletidos, sendo os menos apetrechados para investir no futuro e fazer face às necessidades dos que irão nascer.
Se tivermos em conta que na última década a produção de cereais per-capita diminui em 51 países em desenvolvimento e aumentou apenas em 43 aliado ao facto do número total de pessoas mal nutridas passou de 512 milhões para 532 milhões ficamos com uma ideia perfeita do cenário terrível com que somos confrontados no nosso quotidiano global.
O número total de crianças analfabetas subiu de 300 milhões no início do século para 315 milhões atualmente, números pouco rigorosos e talvez a pecarem por defeito. O número de analfabetos subiu de 889 milhões no dealbar do século para quase um bilião. O número de pessoas sem instalações sanitárias de qualquer tipo passou de 1750 milhões para os 2.000.000 de pessoas.
Isto é sobejamente preocupante quando se assiste à globalização da informação com um acesso permanente a um aparecimento continuado de novas tecnologias e evoluções nos últimos cinco anos superiores a tudo que foi desenvolvido até então.
Registam-se sólidos progressos no domínio da saúde, educação e nutrição. A fertilidade e a dimensão das famílias diminuíram. Nas ultima década aumentou substancialmente o planeamento familiar e o de governos que o apoiam. Mas nos países e regiões mais vulneráveis, o crescimento populacional abafou os progressos realizados.
Esse crescimento tem vindo a desgastar o próprio planeta. O rápido aumento da população nos “países pobres” já começou a provocar alterações danosas irreversíveis no ambiente. Não estaremos longe de que se atinjam níveis críticos nalgumas regiões da Terra. São evidente o desmesurado crescimento dos centros urbanos, a degradação acelerada dos recursos terrestres e hídricos, a desflorestação mássica e o aumento dos chamados “gases com efeito de estufa”.
A falta de medidas que acautelassem a situação que prevalece em muitos casos com caracter de irreversibilidade levou a que situações já sejam irreversíveis. As decisões dos nossos predecessores tornaram pequeno o leque de opções que se oferecem à geração atual. A nossa gama de escolhas, como indivíduos ou nações, é não só mais estreita como também mais difícil.
(CONTINUA NO PRÓXIMO NUMERO)

7 de dezembro de 2012

“Pátria, Lugar de Exílio”/ O Chá nº 3 / Luanda/ Outubro 2012





Na dura realidade insular do seu território natal, em que sobreleva a luta do homem contra a natureza escassa, nasce, em 1925 na ilha da Boavista, Daniel Damásio Ascensão Filipe.
Cabo Verde foi, no contexto dos territórios coloniais portugueses, o primeiro onde brotou a mais válida expressão coletiva que atingiu um movimento literário abarcando os domínios da poesia, da ficção e do ensaio com características próprias, enraizado no húmus da sua região e com interesse universal.
Daniel Filipe, falecido precocemente aos trinta e nove anos, foi um combatente pela liberdade. Fez o seu percurso académico em Portugal e, depois de terminar os seus estudos liceais, foi funcionário da então Agência Geral do Ultramar, onde foi suspenso pelo opróbrio habitual de “delito de opinião”. Preso e torturado pela PIDE algumas vezes, acabou por falecer no seu Cabo Verde natal.
Inicialmente, o poeta deu-nos cinco obras cheias duma trágica “glória de ir sozinho”, dum “deixai-me ser liricamente fútil”, cheias de frustração e pessimismo. Numa ligeira análise dos títulos de quatro dos seus livros isso é bem patente: “Marinheiro em terra”,” O viageiro solitário”, “Recado para a amiga distante” e a “Ilha e a Solidão”.
Pertenceu ao núcleo da “Távola Redonda”, o qual se congregou, segundo as palavras de um dos seus diretores e o melhor dos seus teorizadores: David Mourão-Ferreira- “sobretudo pelo desejo de reagir contra as tendências da produção poética da época, nomeadamente contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais”. Fez publicar na “Seara Nova” alguns trabalhos, como por exemplo o “Recado para a amiga distante” (1956) que indicia novos posicionamentos na forma de fazer poesia e abrir portas a poemas mais interventivos: “Cem mil casa/ mas nenhuma é nossa meu Amor/ Em nenhuma nos sentiríamos seguros/ livres/ alegres”, para terminar dizendo: “Alguma coisa está matando a cidade/calando a voz da cidade/ amor dançando na cidade//Alguma coisa terrível/ meu amor// terrível”.
Em 1957 aparece como um dos responsáveis pela efémera publicação “Notícias de Bloqueio”.
Este poema indicia o surgimento de “Invenção do Amor”, onde mais uma vez “ a cidade surge como uma coisa terrível”.
“A invenção do amor” é um impetuoso e longo poema de revolta e denúncia, no qual a referência lírica parece ser acessória para o autor, quando é nesse contexto localizado que se afigura o poema mais conseguido. Referência para Eluard com a transcrição de dois versos de “Et un sourire”: “au bout du chagrin une fenetre ouverte/ une fenetre eclairée”.
Na segunda parte do livro,” Canto e lamentação na cidade ocupada” e na terceira “Balada para a trégua possível” consegue uma ténue unidade perante a força da “Invenção do Amor”, afinal a primeira parte do livro. Este conjunto representa uma viragem decisiva na obra do seu autor, pelo impetuoso e irradiante calor humano, pela denúncia corajosa e que prenuncia o aparecimento de “Pátria Lugar de Exílio”.
Neste, quanto mais impetuoso e irradiante é o calor humano, mais corajosa é a denúncia. Há aí uma tal necessidade e veemência de expressão, que mesmo as partes que apresentam algumas debilidades ganham novas dimensões impelidas por essa força criadora que vai carreando todos os materiais e que com a sua diversidade alcança a unidade fundamental do poema.
Em “Pátria, Lugar de Exílio”, há um corte com algumas incoerências que terão surgido ocasionalmente no trabalho poético entretanto produzido. “Estamos perante um texto de límpida comunicabilidade, utilizando os mais sóbrios e eficientes meios expressivos, onde tudo é a coreografia duma realidade visível, palpável, que o poeta verso a verso vai erguendo emocionada e solidamente” (José Carlos de Vasconcelos).
Daniel Filipe interroga: “Pergunto poderia cantar de modo alheio/ dizer outras palavras como quem diz bom dia (…)//Poderia escrever meu amor e pensá-lo/ sem mais nada sem a mancha rubra de sangue na parede da cela/ sem um nome ou um grito” e aqui sente-se que os seus poemas são tudo aquilo que são e se tornaram :”sangue, gesto e olhar”.
Utilizando versos de diferente respiração e intercalando no poema cinco canções, Daniel Filipe conseguiu dar-lhe uma grande vivacidade e equilibrar a sua arquitetura, de tal forma que subsiste nele uma unidade fundamental, que só uma bem apetrechada oficina poética conseguiria lograr.
Mário Viegas, um dos mais talentosos atores do teatro português contemporâneo, falecido no fim do século passado, deu voz a um trabalho de declamação da “Invenção do Amor” proporcionando assim que a obra poética de Daniel Filipe saísse quase do anonimato ou das tertúlias literárias onde os neorrealistas e “asteroides” eram colocados em guetos.
Recentemente foi reeditado em CD o disco de Mário Viegas, gravado em 1973, e terá sido mais uma oportunidade para voltarmos a ouvir palavras bonitas bem ditas e recordar este poeta.
Daniel Filipe, teimosamente esquecido na literatura de expressão portuguesa, onde rareiam referências a muitos poetas que como ele fizeram da poesia, amor e combate político contra o cinzentismo, a intolerância e a repressão, merece esta tímida referência num mensário cultural de um País de muita gente que partilhou lutas, vivências e trajetos culturais comuns.

Fernando Pereira
26/10/2012

30 de novembro de 2012

Coimbra, a Angola Utópica! (III)/ Ágora/ Novo Jornal 254/ Luanda 30/12/2012





O “Quimbo dos Sobas” resultou da necessidade dos alunos angolanos possuírem uma casa sua já que os 1000-Y-Onários não tinham lugar para os que vinham. Inicialmente instalaram-se na Nicolau Chanterene, num andar que se denominava “Solar do Quimbo dos Sobas”. Em 1963/64 um grupo onde estava o médico Fernando Martinho, do Lubango e os homens do Huambo, Manuel Rui Monteiro e Segadães Tavares alugam uma casa ao Dr. Dantas, ao tempo proprietário da Clinica de Montes Claros para instalarem a entretanto aceite pelo Conselho de Republicas, a “Republica do Quimbo dos Sobas”. No Antero Quental, hoje praticamente em ruinas, o estado do edifício é para todos uma enorme amargura. “O Quimbo dos Sobas” tem muito a ver com os caboucos do nascimento do País, mais que não fosse porque Manuel Rui Monteiro, seu fundador, é o autor da letra do hino de Angola. Os hoje generais Joaquim Rangel, Roberto Leal Monteiro (Ngongo), João Saraiva de Carvalho (Tetembwa) e o assassinado a 27 de Maio de 1977 Comandante Eurico Gonçalves são alguns dos homens do “Quimbo” que saíram de Coimbra para se juntar à luta armada nas fileiras do MPLA. A PIDE era visita constante e Garcia Neto, outra vitima dos fraccionistas em 27 de Maio de 1977 e o falecido Fernando Sabrosa, médico, foram presos em 20/2/1970, o que motivou uma onda de solidariedade em toda a academia coimbrã para a sua rápida libertação. Por aqui ainda que por pouco tempo passou Gilberto Teixeira da Silva, o comandante Gika, morto em combate na 1º guerra de libertação do País, o jurista Aníbal Espírito Santo, um homem da Catumbela e Néne Pizarro, que conseguiu fugir um dia antes da PIDE fazer mais uma visita de “cortesia” ao Quimbo. António Trabulo do Lubango e alguns da prole, Fonseca Santos do Huambo e Benguela também estiveram na casa, aproveitando esta ocasião para fazer uma homenagem tardia ao Henrique José Fonseca Santos (Quicas), morto pela Unita em Fevereiro de 1979 no Longonjo. Jaka Jamba também passou pelo Quimbo e saiu para se juntar à UNITA. Rui Cruz, Aníbal João de Melo, Eloy Malaquias, Jaime Madaleno da Costa Carneiro, Hernani Santana, o malogrado Noélio da Conceição e outros reuniam regularmente nesta casa que durante muitos anos foi só um dos embriões do que viria a ser “República Popular de Angola” em Coimbra, mesmo com a vigilância atenta da PIDE a pouco mais de cem metros, na mesma rua. Não foram habitantes do Quimbo, mas eram habituais nas suas festas, e muitos “patos” proporcionaram a gente da casa, o Carlos Correia (Bóris) do Chinguar e o viola baixo dos Álamos, o Luis Filipe Colaço, que gravaram com José Afonso dois discos emblemáticos, “Cantigas do Maio” e o “Traz outro amigo Também”. Na gravação deste trabalho, Phil Colaço aproveita para sair para um exílio para o reencontro em 11 de Novembro de 1975.
Em Janeiro de 1975 Agostinho Neto reúne todos os angolanos residentes em Coimbra numa exígua sala do Hotel Oslo e incentiva-nos a lutarmos de todas as formas possíveis contra as ameaças que se preparavam para obstar à independência do País. Foi uma assembleia muito participada e discutida e Neto com serenidade ia refreando a nossa impetuosidade dos “verdes anos”. Não esqueci nunca mais esse momento, em tempos que eram bem difíceis.
É interessante fazer notar que o “centenário” do “Quimbo”, que mais não é que a festa anual de convívio entre novos e antigos repúblicos, se realiza desde sempre no dia 4 de Fevereiro, uma homenagem ao início da luta armada em Angola, outra iniciativa que muito aborrecia a PIDE.
O “Quimbo” está hoje em ruinas, mas antes de acabar só quero informar que há um grupo de antigos repúblicos que está a fazer um livro com a história completa da república e a participação dos seus elementos na história recente dos dois Países.
FIM
Fernando Pereira
5/11/2012

23 de novembro de 2012

Coimbra, a Angola Utópica! (II) / Ágora/ Novo Jornal 253 / Luanda 23-11-2012



Agostinho Neto vem para Coimbra já com ideias bem claras, até porque era mais velho que a maioria dos que o acompanhavam e politicamente com outra tarimba.
Vem do Liceu Salvador Correia, hoje o encerrado Mutu-Ya-Kevela, com o Antero de Abreu, jurista, Procurador-Geral da República nos anos que se seguiram à independência, os irmãos Guerra Marques, o médico Eduardo dos Santos, jogador de futebol da Académica, Diógenes Boavida de direito, João Videira e João Vieira Lopes de medicina, foram outros que vieram do Salvador Correia. Do Sul de Angola, do Liceu Diogo Cão, que absorvia as gentes do Huambo, Benguela, Lobito e Namibe vieram Lúcio Lara, Emílio Quental, Carlos Mac-Mahon Vitória Pereira, Freitas de Oliveira (mais tarde delegado da FNLA no Huambo), a poetisa Alda Lara e outros que me deslembro.
A CEI, para além das atividades desportivas e culturais, foi um local onde começaram a fervilhar as ideias que eram ecos de Frantz Fanon, Césaire, Senghor, Kenhyata, Nkrumah e outros que partilhavam os ideais de libertação das colónias. No âmbito cultural, Agostinho Neto funda com Lúcio Lara e o moçambicano Orlando Albuquerque, médico que casa entretanto com Alda Lara, a revista “Momento” órgão da filial da CEI em Coimbra. No âmbito desportivo a CEI constitui uma equipa de futebol e de hóquei em patins, que disputa o nacional e onde pontificam os lobitangas irmãos Couceiro (Amandio, Júlio e Carlos).
Agostinho Neto vive uma parte da sua vida académica em Coimbra desde o fim dos anos 40, transferindo-se na primeira metade dos anos 50 para Lisboa onde entra na direção da CEI, complementando as tarefas que fazia em Coimbra. Nessa altura a delegação da CEI em Coimbra encerra.
Alguns dos que andaram por Coimbra nesses tempos participaram em atividades culturais na Academia como foi o caso de Lúcio Lara e Carlos Alberto Mac Mahon Vitória Pereira que integraram no Orfeão Académico de Coimbra. BAVIL, nome de guerra de João Vieira Lopes, recentemente falecido, fez parte dos órgãos sociais da DG da AAC numa lista com Salgado Zenha. França Ndalu, Daniel Chipenda, José Araújo (Ben Barek), Avidago e o moçambicano José Julio jogavam futebol na AAC e em 1962 saem clandestinamente de Portugal para apoiar a luta armada. Nessa fuga saíram também dois irmãos Bernardino (o Zé e o David) e o Liahuca que saiu com a mulher, todos do Huambo.
No fim da década de 50 começam a afluir a Coimbra muitos angolanos, Já que as companhias onde os pais trabalhavam davam bolsas para a continuação dos estudos superiores em Portugal.
Um grupo de estudantes provenientes de várias colónias decidem constituir a primeira república, os 1000-Y-Onários que acaba no fim da década de sessenta. No núcleo inicial entra Norberto Canha a quem se junta o moçambicano António Cardoso, os angolanos Fausto Martins da Costa e “Manecas” Balonas, todos médicos. Mais tarde junta-se o António José Miranda, o M’beto Traça e o Carlos Pestana (Katiana), que acompanharam a célebre fuga dos 100 em 1962, para se juntarem à luta armada, e hoje generais nas FAAs. Na casa ainda permaneceu Rui Clington, Orlando Ferreira Rodrigues, insigne professor da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Foram repúblicos nos 1000 os angolanos Filipe Amado, Piricas, Arnaldo Pereira (José dos Calos) o moçambicano Óscar Monteiro, ministro da informação no governo de Samora Machel e os santomenses Celestino Costa e Carlos Graça, que chegaram a 1ºs ministros em S. Tomé e Príncipe. Alguns cabo-verdianos foram os que fecharam a casa, na Antero Quental do outro lado da rua do Quimbo dos Sobas.
(Continua no próximo numero)

16 de novembro de 2012

Coimbra, a Angola Utópica! (I)/ Ágora/Novo Jornal nº252/ Luanda 16-11-2012






(Parte de uma intervenção que fiz a 7 de Novembro de 2012 na Universidade de Coimbra numa homenagem a Agostinho Neto e comemorativo do 37º aniversário da independência de Angola)
Quando eclodiu o 25 de Abril de 1974 começou um movimento de ocupação das estruturas físicas onde estavam instaladas organizações do regime salazarista. Os estudantes das colónias, com alguns angolanos que em Coimbra trabalhavam e aqui recordo os médicos Manecas Balonas e Fernando Martinho, e o advogado Manuel Rui Monteiro, resolveram ocupar na Rua Guerra Junqueiro um andar onde estava instalado o CEU (Centro de Estudos Ultramarinos), o responsável era o mediático José Adelino Maltês, logo transformando na Casa dos Estudantes das Colónias.
Não me vou alongar sobre esses tempos, as múltiplas atividades que se desenvolveram, as discussões que se multiplicaram, mas evocar uma situação marcante para nós estudantes angolanos em Coimbra, e que teve a ver com a presença do Luandino Vieira e do saudoso N’Dunduma (Costa Andrade), primeiros a visitarem-nos entusiasmando-nos para o princípio de uma luta que seria longa e difícil como se previa. Eram os nossos escritores de referência principalmente o Luandino, um preso com muitos anos de Tarrafal e o orgulho partilhado de ter ganho o prémio que o regime não queria que se atribuísse. Foi uma agradável tarde de Junho desse 1974 não esquecido em que ouvimos gente nossa.
José Alberto Teixeira é um antigo estudante de direito de Coimbra, capitão da seleção de Angola de voleibol, jurista e administrador de uma importante empresa agroalimentar angolana, bom amigo e cúmplice de muitas lutas. Certa vez, estávamos a recordar umas gentes de Coimbra e fomos vendo umas fotos desses anos que partilhámos por cá. A determinada altura começámos a ver as fotos do cerco que se fez à sede da PIDE-DGS, na Antero Quental, um pouco acima da “República do Quimbo dos Sobas”, e numa dessas fotos reparo que estou num telhado num edifício contíguo sentado com o José Luis Carrilho, que entretanto regressa a Moçambique onde durante anos foi Procurador-Geral da Republica e com Guilherme Pousser da Costa, ex-primeiro ministro de S. Tomé e Príncipe. Não estávamos a cercar nada, estávamos a assistir ao estertor do regime. Serve apenas esta história para ilustrar a grande cumplicidade que havia entre as poucas dezenas de estudantes das colonias em Coimbra.
As nossas cumplicidades estendiam-se às farras, aos jogos de futebol, às discussões políticas à surdina, aos piqueniques e aos passeios pelos arredores, porque o dinheiro era pouco mas partilhado.
O nacionalismo angolano passou por aqui, é o que se oferece dizer e desde o dealbar do seculo XX com Alfredo Troni, ilustre poeta e advogado de causas em Luanda, o famoso Dr. Videira causídico e maçom dos anos 30 e 40 a Eugénio Ferreira, ex-director da revista Coimbrã do neo-realismo “A Vértice”, advogado, Presidente da Sociedade Cultural de Angola e Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, até ao surgimento do Tribunal Supremo em 1991 , cabouqueiro da angolanidade a partir dos anos 40 foram marcos importantes de gente que apoiou sempre a causa independentista.
Com a instalação em Coimbra da Casa de Estudantes do Império, inicialmente numa casa no Penedo da Saudade, inaugurada por Marcelo Caetano então ministro das colónias e fundador da CEI, começa a surgir um movimento aglutinador de ideias em torno de uma independência começando a ultrapassar-se o atávico e vago conceito da “autodeterminação progressiva” onde cabiam as propostas colonialistas de Norton de Matos, as rebuscadas de Armindo Monteiro e as tardiamente colocadas em prática por Adriano Moreira.
(Continua no próximo numero)

9 de novembro de 2012

PI / O INTERIOR/ Guarda/ 8-11-2012






Incautamente tropecei numa estultice do tipo “Casa dos Segredos”, numa TV que foi da Igreja quando da liberalização “encavacada” da imprensa, para dar oportunidades a uma malta onde poderiam proliferar os Maxwell, Murdoch, Berlusconi, Martinhos ou o doméstico Balsemão, nos tempos idos do fascismo deputado pela UN (ou ANP) pelo distrito da Guarda.
A Igreja foi bafejada (oh, suprema admiração!) com um canal que começou a lançar a Bárbara Guimarães e outras bem-apessoadas jornalistas, com uma programação muito discreta, interessante na reposição de filmes, mas muito pouco apelativa no que às audiências diga respeito. Os administradores nomeados pelo patriarcado, na busca incessante de uns capitais que permitissem mais-valias interessantes, mesmo que colidissem com os fundamentos de comunicação da doutrina social da SMI, acabaram por vender a “estação” a uns grupos de capitais de duvidosa proveniência, que se comprometeram a levar “valores cristãos” aos cidadãos, mas de uma forma mais ousada como, aliás, se tem visto.
De um momento para o outro, a TVI, que tinha inicialmente uma cruz numa vela, passou a trepar nas audiências através de uma programação desanuviada, aberta e com uma linguagem pejada de Pis, que nada tem a ver com os 3,141592653589793238462643382795 que aprendemos numa sala em que tínhamos na parede, por cima do estrado, as fotos solenes do venerando Chefe de Estado, o santacombense Salazar, e o cruxifixo a oxidar.
Teresa Guilherme, em determinada altura, alimentou a expectativa de que podia ser um mix de Ophra e de Hermano Saraiva; escolheu francamente mal o trilho pois ligou-se ao multifacetado Goucha, que horripilantemente faz a figura ao microfone de um Nel Monteiro trajando fatos escolhidos nos fundos de alguma loja do “Exército de Salvação”.
Exageradamente amadeixada de lourice, aperdigotada na linguagem, coloca as questões a um conjunto significativo de idiotas que estão numa casa fechados, e que pontualmente exercem o direito a ter uma audiência enorme que valoriza a flatulência verbal para gáudio de uma população que cada vez mais tem que permanecer numa casa que não sabe se consegue pagar ao fim do mês.
Dessei se, ao ver assiduamente programas destes, se conseguem créditos para equivalências nas cadeiras ou promoções nalgumas carreiras, e se os galhofeiros que estão na casa podem aspirar a entrar diretamente no D. Maria e saltarem de imediato para representarem o Macbeth; Convenhamos que era uma circunstância trágica antecipada, pois é uma peça associada a grandes tragédias ao longo dos tempos. No intervalo da “Casa dos Segredos” tem o António Sala, e muita gente fica com a sensação de que ele é o Paul Krugman, tal a forma expedita como historia as crises económicas e como as resolve num ápice, tal Conde de Aguilar da prestidigitação moderna. Depois dele, um produto para a micose das unhas, que resolve o seu problema com um frasco, mas se ligar de imediato dão-lhe dois, sem conseguirem explicar para que se querem os dois milagrosos frascos, produtos das unhas micose adas do Brasil.
Tenho estado aqui a falar da Teresa Guilherme para evitar falar da novela que foi deitar abaixo um quiosque atamancado numa das rotundas de maior movimento na Guarda, a que chamavam a tasca da Ti Jaquina, senhora que nunca conheci, nem tampouco consegui perceber o que estava ali a fazer aquilo, quando as regras para se abrir o que quer que seja são cada vez mais apertadas, exigentes e desconexas nalguns casos, há vários anos. Em determinada altura fiquei com a convicção de que andava por ali mão do IGESPAR, tantas foram as hesitações para que um pardieiro fosse demolido.
Pelo tempo que demora certas implosões na nossa cidade capital de distrito, fico com a sensação de que o futuro nunca deixa de ser um passado permanente no quotidiano de cada um. Paira sempre alguma coisa de escatológico quando se ousa mudar o que quer que seja por aqui.
Fernando Pereira
2/11/2012

Intervenção alusiva à homenagem a Agostinho Neto em Coimbra 7/11/2011





Minhas senhoras e meus senhores.

Há algumas décadas que não entrava neste edifício onde estudei pelo que é gratificante estar aqui num momento destes, nesta homenagem singela a António Agostinho Neto nas comemorações do seu nascimento em Kaxicane há noventa anos e simultaneamente na comemoração do 37º aniversário da independência de Angola.
Com tantos oradores e com tanto que haveria para dizer o melhor que poderemos fazer para não aborrecer as pessoas aqui presentes é apelar à nossa parca capacidade de síntese.
Porque a minha intervenção é sobre o papel que as Republicas dos “1000-y-onários” e o “Quimbo dos Sobas” tiveram na mobilização dos estudantes angolanos e de outras ex-colónias portuguesas sedeados em Coimbra, na luta contra o colonialismo e no engajamento na luta de libertação nos territórios africanos, obriga-me a contar duas histórias passadas de um tempo em que somos cada vez menos as testemunhas.
Quando eclodiu o 25 de Abril de 1974 começou um movimento de ocupação das estruturas físicas onde estavam instaladas organizações do regime salazarista. Os estudantes das colónias, com alguns angolanos que por cá estavam a trabalhar e aqui recordo os médicos Manecas Balonas e Fernando Martinho, e o advogado Manuel Rui Monteiro, resolveram ocupar na Rua Guerra Junqueiro um andar onde estava instalado o CEU (Centro de Estudos Ultramarinos), o responsável era o mediático José Adelino Maltês, logo transformando na Casa dos Estudantes das Colónias.
Não vou perder muito tempo a falar sobre esses tempos, as múltiplas atividades que se desenvolveram, as discussões que se multiplicaram, mas evocar uma situação marcante para nós estudantes angolanos em Coimbra, e que teve a ver com a presença do Luandino Vieira e do saudoso N’Dunduma (Costa Andrade), primeiros a visitarem-nos entusiasmando-nos para o princípio de uma luta que seria longa e difícil como se previa. Eram os nossos escritores de referência principalmente o Luandino, um preso com muitos anos de Tarrafal e o orgulho partilhado de ter ganho o prémio que o regime não queria que se atribuísse. Foi uma agradável tarde de Junho desse 1974 não esquecido em que ouvimos gente nossa. É bom estar aqui de novo consigo hoje, trinta e oito anos depois pelas mesmas boas razões.
José Alberto Teixeira é um antigo estudante de direito de Coimbra, capitão da seleção de Angola de voleibol, jurista e administrador de uma importante empresa agroalimentar angolana, bom amigo e cúmplice de muitas lutas. Certa vez, estávamos a recordar umas gentes de Coimbra e fomos vendo umas fotos desses anos que partilhámos por cá. A determinada altura começámos a ver as fotos do cerco que se fez à sede da PIDE-DGS, na Antero Quental, um pouco acima da “República do Quimbo dos Sobas”, e numa dessas fotos reparo que estou num telhado num edifício contíguo sentado com o José Luis Carrilho, que entretanto regressa a Moçambique onde durante anos foi Procurador-Geral da Republica e com Guilherme Pousser da Costa, ex-primeiro ministro de S. Tomé e Príncipe. Não estávamos a cercar nada, estávamos a assistir ao estertor do regime. Serve apenas esta história para ilustrar a grande cumplicidade que havia entre as poucas dezenas de estudantes das colonias em Coimbra.
As nossas cumplicidades estendiam-se às farras, aos jogos de futebol, às discussões políticas à surdina, aos piqueniques e aos passeios pelos arredores, porque o dinheiro era pouco mas partilhado.
O nacionalismo angolano passou por aqui, é o que se oferece dizer e desde o dealbar do seculo XX com Alfredo Troni, ilustre poeta e advogado de causas em Luanda, o famoso Dr. Videira causídico e maçom dos anos 30 e 40 a Eugénio Ferreira, ex-director da revista Coimbrã do neo-realismo “A Vértice”, advogado, Presidente da Sociedade Cultural de Angola e Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, até ao surgimento do Tribunal Supremo em 1991 , cabouqueiro da angolanidade a partir dos anos 40 foram marcos importantes de gente que apoiou sempre a causa independentista.
Com a instalação em Coimbra da Casa de Estudantes do Império, inicialmente numa casa no Penedo da Saudade, inaugurada por Marcelo Caetano então ministro das colónias e fundador da CEI, começa a surgir um movimento aglutinador de ideias em torno de uma independência começando a ultrapassar-se o atávico e vago conceito da “autodeterminação progressiva” onde cabiam as propostas colonialistas de Norton de Matos, as rebuscadas de Armindo Monteiro e as tardiamente colocadas em prática por Adriano Moreira.
Agostinho Neto vem para Coimbra já com ideias bem claras, até porque era mais velho que a maioria dos que o acompanhavam e politicamente com outra tarimba.
Vem do Liceu Salvador Correia, hoje o encerrado Mutu-Ya-Kevela, com o Antero de Abreu, jurista, Procurador-Geral da República nos anos que se seguiram à independência, os irmãos Guerra Marques, o médico Eduardo dos Santos, jogador de futebol da Académica, Diógenes Boavida de direito, João Videira e João Vieira Lopes de medicina, foram outros que vieram do Salvador Correia. Do Sul de Angola, do Liceu Diogo Cão, que absorvia as gentes do Huambo, Benguela, Lobito e Namibe vieram Lúcio Lara, Emílio Quental, Carlos Mac-Mahon Vitória Pereira, Freitas de Oliveira (mais tarde delegado da FNLA no Huambo), a poetisa Alda Lara e outros que me deslembro.
A CEI, para além das atividades desportivas e culturais, foi um local onde começaram a fervilhar as ideias que eram ecos de Frantz Fanon, Césaire, Senghor, Kenhyata, Nkrumah e outros que partilhavam os ideais de libertação das colónias. No âmbito cultural, Agostinho Neto funda com Lúcio Lara e o moçambicano Orlando Albuquerque, médico que casa entretanto com Alda Lara, a revista “Momento” órgão da filial da CEI em Coimbra. No âmbito desportivo a CEI constitui uma equipa de futebol e de hóquei em patins, que disputa o nacional e onde pontificam os lobitangas irmãos Couceiro (Amandio, Júlio e Carlos).
Agostinho Neto vive uma parte da sua vida académica em Coimbra desde o fim dos anos 40, transferindo-se na primeira metade dos anos 50 para Lisboa onde entra na direção da CEI, complementando as tarefas que fazia em Coimbra. Nessa altura a delegação da CEI em Coimbra encerra.
Alguns dos que andaram por Coimbra nesses tempos participaram em atividades culturais na Academia como foi o caso de Lúcio Lara e Carlos Alberto Mac Mahon Vitória Pereira que integraram no Orfeão Académico de Coimbra. BAVIL, nome de guerra de João Vieira Lopes, recentemente falecido, fez parte dos órgãos sociais da DG da AAC numa lista com Salgado Zenha. França Ndalu, Daniel Chipenda, José Araújo (Ben Barek), Avidago e o moçambicano José Julio jogavam futebol na AAC e em 1962 saem clandestinamente de Portugal para apoiar a luta armada. Nessa fuga saíram também dois irmãos Bernardino (o Zé e o David) e o Liahuca que saiu com a mulher, todos do Huambo.
No fim da década de 50 começam a afluir a Coimbra muitos angolanos, Já que as companhias onde os pais trabalhavam davam bolsas para a continuação dos estudos superiores em Portugal.
Um grupo de estudantes provenientes de várias colónias decidem constituir a primeira república, os 1000-Y-Onários que acaba no fim da década de sessenta. No núcleo inicial entra Norberto Canha a quem se junta o moçambicano António Cardoso, os angolanos Fausto Martins da Costa e “Manecas” Balonas, todos médicos. Mais tarde junta-se o António José Miranda, o M’beto Traça e o Carlos Pestana (Katiana), que acompanharam a célebre fuga dos 100 em 1962, para se juntarem à luta armada, e hoje generais nas FAAs. Na casa ainda permaneceu Rui Clington, Orlando Ferreira Rodrigues, insigne professor da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Foram repúblicos nos 1000 os angolanos Filipe Amado, Piricas, Arnaldo Pereira (José dos Calos) o moçambicano Óscar Monteiro, ministro da informação no governo de Samora Machel e os santomenses Celestino Costa e Carlos Graça, que chegaram a 1ºs ministros em S. Tomé e Príncipe. Alguns cabo-verdianos foram os que fecharam a casa, na Antero Quental do outro lado da rua do Quimbo dos Sobas.
O “Quimbo dos Sobas” resultou da necessidade dos alunos angolanos possuírem uma casa sua já que os 1000-Y-Onários não tinham lugar para os que vinham. Inicialmente instalaram-se na Nicolau Chanterene, num andar que se denominava “Solar do Quimbo dos Sobas”. Em 1963/64 um grupo onde estava o médico Fernando Martinho, do Lubango e os homens do Huambo, Manuel Rui Monteiro e Segadães Tavares alugam uma casa ao Dr. Dantas, ao tempo proprietário da Clinica de Montes Claros para instalarem a entretanto aceite pelo Conselho de Republicas, a “Republica do Quimbo dos Sobas”. No Antero Quental, hoje praticamente em ruinas, o estado do edifício é para todos uma enorme amargura. “O Quimbo dos Sobas” tem muito a ver com os caboucos do nascimento do País, mais que não fosse porque Manuel Rui Monteiro, seu fundador, é o autor da letra do hino de Angola. Os hoje generais Joaquim Rangel, Roberto Leal Monteiro (Ngongo), João Saraiva de Carvalho (Tetembwa) e o assassinado a 27 de Maio de 1977 Comandante Eurico Gonçalves são alguns dos homens do “Quimbo” que saíram de Coimbra para se juntar à luta armada nas fileiras do MPLA. A PIDE era visita constante e Garcia Neto, outra vitima dos fraccionistas em 27 de Maio de 1977 e o falecido Fernando Sabrosa, médico, foram presos em 20/2/1970, o que motivou uma onda de solidariedade em toda a academia coimbrã para a sua rápida libertação. Por aqui ainda que por pouco tempo passou Gilberto Teixeira da Silva, o comandante Gika, morto em combate na 1º guerra de libertação do País, o jurista Aníbal Espírito Santo, um homem da Catumbela e Néne Pizarro, que conseguiu fugir um dia antes da PIDE fazer mais uma visita de “cortesia” ao Quimbo. António Trabulo do Lubango e alguns da prole, Fonseca Santos do Huambo e Benguela também estiveram na casa, aproveitando esta ocasião para fazer uma homenagem tardia ao Henrique José Fonseca Santos (Quicas), morto pela Unita em Fevereiro de 1979 no Longonjo. Jaka Jamba também passou pelo Quimbo e saiu para se juntar à UNITA. Rui Cruz, Aníbal João de Melo, Eloy Malaquias, Jaime Madaleno da Costa Carneiro, Hernani Santana, o malogrado Noélio da Conceição e outros reuniam regularmente nesta casa que durante muitos anos foi só um dos embriões do que viria a ser “República Popular de Angola” em Coimbra, mesmo com a vigilância atenta da PIDE a pouco mais de cem metros, na mesma rua. Não foram habitantes do Quimbo, mas eram habituais nas suas festas, e muitos “patos” proporcionaram a gente da casa, o Carlos Correia (Bóris) do Chinguar e o viola baixo dos Álamos, o Luis Filipe Colaço, que gravaram com José Afonso dois discos emblemáticos, “Cantigas do Maio” e o “Traz outro amigo Também”. Na gravação deste trabalho, Phil Colaço aproveita para sair para um exílio para o reencontro em 11 de Novembro de 1975.
Em Janeiro de 1975 Agostinho Neto reúne todos os angolanos residentes em Coimbra numa exígua sala do Hotel Oslo e incentiva-nos a lutarmos de todas as formas possíveis contra as ameaças que se preparavam para obstar à independência do País. Foi uma assembleia muito participada e discutida e Neto com serenidade ia refreando a nossa impetuosidade dos “verdes anos”. Não esqueci nunca mais esse momento, em tempos que eram bem difíceis.
É interessante fazer notar que o “centenário” do “Quimbo”, que mais não é que a festa anual de convívio entre novos e antigos repúblicos, se realiza desde sempre no dia 4 de Fevereiro, uma homenagem ao início da luta armada em Angola, outra iniciativa que muito aborrecia a PIDE.
O “Quimbo” está hoje em ruinas, mas antes de acabar só quero informar que há um grupo de antigos repúblicos que está a fazer um livro com a história completa da república e a participação dos seus elementos na história recente dos dois Países.
Há um pedido que aqui fica, por razões apenas de natureza funcional: Que as placas que por lá se encontram sejam entregues ao museu académico para preservar a memória de uma casa que Angola fez por merecer.
Obrigado por me terem aturado este momento que desejei mais curto.
Fernando Pereira
4/11/2012

TEMPO PRESENTE/ ÁGORA/ NOVO JORNAL nº 251/ LUANDA 9-11-2012



«As pessoas não vendem a terra onde vivem» - frase Sioux
Conta uma velha anedota que o reitor de uma universidade americana, de visita a Inglaterra, via com sorriso superior e condescendente as instalações de uma famosa universidade britânica: na América tudo era maior, tudo era melhor, o equipamento superior; só uma coisa invejava, e essa coisa era a maravilhosa e impecável frescura dos relvados que se estendiam entre os edifícios vetustos da universidade. Como obtinham os ingleses relva tão magnífica? Nos Estados Unidos não se conseguia coisa que se comparasse. Qual era o segredo?
O reitor britânico que acompanhava na sua visita o ilustre colega yankee, até aí visivelmente agastado, não pôde esconder um sorriso de malícia e esclareceu com falsa candura: “O segredo? Muito simples. Basta regar e cortar a relva, voltar a regar e a cortar periodicamente; ao fim de trezentos anos fica assim…”
Gosto desta anedota: não é aquilo a que costuma chamar-se cultura qualquer coisa como o relvado britânico? Apenas a persistência do esforço, a rega e a poda regulares, a continuidade do empreendimento, a paciência e a perseverança do exercício, alcançam, no âmbito do saber e da criação, produzir esses frutos de polpa rica, densa, nutritiva, saborosa que são o tesouro das nações. E não basta que uns quantos se apliquem à tarefa por desfastio; é preciso que as gerações se sucedam, acumulando a experiência, suscitando a tradição do trabalho bem feito, renovando o viço.
"O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos falta as qualidades.". Esta frase de Almada Negreiros, um poeta português do grupo Orpheu, cúmplice e contemporâneo de Pessoa, nascido em S. Tomé e Príncipe no fim do século XIX, também se adequa a nós angolanos, que nunca temos tempo para nada, fazemos tudo a correr, e enleamo-nos em projetos múltiplos para no fim nos habituarmos a atamancar qualquer coisa, preocupando-nos mais com os “exteriores” do que propriamente com a solidez e eficácia dos “interiores”.
Não acho mal, a priori, que se rasguem novas avenidas; aceito que se sacrifiquem certas áreas verdes para fins necessários, em obediência a um plano de urbanismo bem estudado; compreendo, igualmente, que errare hunanum est e que não há planos perfeitos; mas que haja um plano! Quando os espaços escasseiam, e é o nosso caso, pobres de nós! Parece-me estultice destruir o pouco que há em nome de um futuro duvidoso, provavelmente nulo. Os trezentos anos da anedota serão por certo excessivos, mas quantos serão precisos para que a relva volte a crescer?
Há trinta e sete anos todos nós queríamos fazer rápido sem pensar que poderíamos fazer mal, porque nos sobrava em voluntarismo o que nos faltava em talento. Nesses tempos, olhávamos à volta e pensávamos que, com a nossa perseverança no trabalho criador, conseguíamos que o “slogan” abundantemente repetido de “Ao inimigo nem um palmo da nossa terra” era o suficiente para sentirmos que este País era rico demais para nos preocuparmos. Pepetela, numa resposta a um jornalista sobre o facto de Angola ser um País rico, metaforizou essa riqueza de uma forma que permanece com singular atualidade nos dias de hoje: “ Angola um país potencialmente rico, é mais ou menos a imagem de um cão esfomeado, preso, com um prato cheio de suculenta carne à sua frente, com o cheiro do pitéu a entrar pelas narinas, mas que tem uma corrente demasiado curta que o impede de lá chegar e comer!”.
Porque estamos a comemorar o aniversário do 11 de Novembro de 1975, e apesar de muito se ter resolvido, muito se ter feito, algo se ter conquistado, parece-me que ainda não estamos em condições de fazer desfiles de jaguares para dignificar um órgão de um País, em que o presidente Agostinho Neto chegou há trinta e sete anos, para ler a declaração de independência num “estafado” Citroen boca de sapo, com uma das portas visivelmente amolgadas.
Fernando Pereira
5/11/2012

2 de novembro de 2012

O passado não é só um resto/ Ágora/ Novo Jornal 250 Luanda / Angola 31/10/2012




Para uma cerimónia evocativa dos oitenta anos do nascimento do Presidente Agostinho Neto precisei de pesquisar alguns documentos, rever jornais e revistas e tentar recolher depoimentos sobre a sua passagem por Portugal, que “infelizmente conheceu demasiado bem” (Século Ilustrado 25-1-1975).
Numa entrevista ao “Século Ilustrado” a 25-1-1975, dias depois de ter rubricado os “Acordos do Alvor”, o entrevistador Rui Cartaxana perguntou: “O dr. Agostinho Neto conhece bem, viveu e estudou em Portugal, que pensa do atual momento da vida portuguesa e da profunda revolução que se operou neste País desde o 25 de Abril?”
Agostinho Neto respondeu: “- Sim infelizmente conheço «demasiado bem» Portugal, o Portugal fascista que oprimiu os portugueses durante 48 anos, pois estive em Portugal, sem sair de cá, durante 13 anos. E esses 13 anos não foram apenas para eu fazer o meu curso de medicina mas também para permanecer alguns anos nas cadeias da PIDE. É, pois, nesse sentido que eu digo que conheço «demasiado bem» esse Portugal, que felizmente já lá vai, e alguns locais e situações pouco agradáveis . Mas também posso dizer que a experiencia dessa fase da minha vida teve o seu lado positivo, pois conheci também a outra face deste país e alguns dos seus homens mais notáveis, aqui fiz amigos dos melhores.”
(….)”Quase não conheço Lisboa”(...)
(…)” –Para terminar, uma pergunta: Quais foram para si os políticos africanos que mais contribuíram para a libertação do continente africano do colonialismo?”
“- Os que mais se distinguiram na luta política foram sem dúvida aqueles que podemos considerar os mais progressistas. Alguns nomes? Não gosto muito de nomes, pois posso cometer, sem querer, uma omissão. Nkrumah, Sekou Touré, Nyerere – e, de formação ou expressão portuguesa, a grande figura de Amílcar Cabral.”
“- Amílcar Cabral teve de resto, uma grande influência na formação do MPLA, não teve?”
“- Teve, sim. Não só na fase da sua formação, pois todos os movimentos de libertação pode dizer-se que nasceram aqui em Lisboa – o MPLA, o PAIGC, a FRELIMO e até o MLSTP, sensivelmente na mesma altura – mas até numa situação que julgo pouco conhecida: Amílcar Cabral depois de se formar, foi para Angola como engenheiro agrónomo e lá ingressou no MPLA, clandestinamente, é claro, tendo trabalhado nos nossos quadros e desenvolvido até uma notável ação. O seu nome não pode ser esquecido neste momento, ele foi também um dirigente do MPLA.”
Este extrato de uma entrevista de Agostinho Neto ao SI, no distante Janeiro de 1975, vem colocar uma referência “nova” na historiografia angolana, demasiado permeável às modas dos tempos políticos prevalecentes. Nesta minha recolha, com muito diletantismo à mistura, tenho encontrado demasiadas notas que penso serem importantes na construção de uma história contemporânea de Angola que não seja feita de lugares comuns, mas com um critério científico que a legitime num futuro próximo ou distante, independentemente de se manterem as “querelas” e as duvidas que só a enobrecem e dignificam os seus intervenientes.
Fora da História e no contexto das “estórias”, lembro-me de uma anedota que circulava em Angola nos tempos do “Alvor”, e que sempre gostei de contar, e que acaba por revelar um sectarismo politico que nunca supus sequer pensar em disfarçar.
No hotel da Penina, nos Montes de Alvor em Janeiro de 1975, os presidentes dos então “movimentos de libertação de Angola” preparavam-se para assinar o acordo que levaria Angola à independência em Novembro desse ano.
O secretário encarregado de transportar o livro onde seriam rubricados os acordos chega ao pé de Agostinho Neto que, em representação do MPLA, coloca a sua assinatura sem problemas. Chegado junto de Jonas Savimbi, da UNITA, este diz não saber assinar, ao que o secretário lhe responde que coloque uma cruz no lugar da assinatura; surpreendentemente, Savimbi coloca duas cruzes. O secretário pergunta surpreendido o porquê, e ele responde prontamente que uma é o seu nome e a outra corresponde a Dr.. Continuou o secretário em direção a Holden Roberto, da FNLA, e, quando este também refere que não sabe escrever, o secretário da conferência, com medo das “cruzes”, resolve pegar numa almofada de carimbo e dizer-lhe para, com o indicador esquerdo, colocar a impressão digital no acordo. Prontamente, Holden coloca tinta no dedo e fá-lo deslizar sobre o papel perante a incredulidade do secretário que pergunta o porquê da “borrada”, ao que Holden responde que é "o meu nome por extenso”!
Para os que pretendem fazer, realmente, História em Angola, limitem-se a utilizar, se o acharem de alguma utilidade, como verosímil a primeira parte da crónica, porque a segunda é só uma “estória”.

Fernando Pereira
31/10/2012



26 de outubro de 2012

Turismaldamente!(II) / Ágora / Novo Jornal nº249/ Luanda 26-10-2012





Turismaldamente!(II)
Voltando à BITUR, importa referir que os relatórios da Organização Mundial de Turismo apontam para pouco mais de 5% o número de turistas anuais no nosso continente, contra os 54% da Europa, os 5% do Médio Oriente, 15% no continente americano e 21% na região Asia/ Pacífico.
Dos discutíveis 5% que cabe ao nosso continente, o Egipto e a Republica da Africa do Sul partilham os primeiros lugares no acolhimento pontual de visitantes, deixando o resto em valores quase residuais para os outros países onde se salientam as Maldivas, Seychelles, Quénia, Moçambique, etc.
Com o proverbial hábito do angolano na hiperbolização dos números estimados, logo se apontaram metas que como na maior parte das situações pecam por demasiado exagero.
“Angola é o segundo destino turístico em número de vistos a seguir à Nigéria no continente africano”, “Estimamos num curto espaço de tempo acolher quatro milhões de turistas ano”, “ ressaltadas as enormes potencialidades do País em termos de turismo”, “Angola com infraestruturas para fazer face a exigências de turismo de qualidade” foram algumas das muitas frases ditas, repetidas e que se ousaram proferir durante o evento.
Este é um tema aliciante para um grande debate e não para uma crónica avulsa como esta, pois a realidade no terreno está cada vez mais longe desta mirífica linguagem.
Angola tem mar, sol, paisagem, rios, vegetação, fauna diversa, gente acolhedora e estabilidade política. Os condimentos indispensáveis para um turismo de qualidade parecem que estão todos reunidos. Pura estultícia.
Deixemo-nos de chauvinismos pueris porque sobejam exemplos de desordenamento do território que vão inibir a oferta turística do País durante muito tempo.
Um dos exemplos inerentes ao desordenamento do território tem a ver com os desmandos que a indústria do petróleo faz em toda a costa de Benguela a norte, e que tem vindo a transformar as “idílicas” areias de águas tépidas da costa de Angola numa mistura hidrocarbonada de água do mar. Acresce a tudo isto que os barcos petroleiros e cargueiros aproveitam a falta de fiscalização do nosso território marítimo para lavarem porões e depositarem detritos que se alojam ao longo da costa. Quando se tenta compatibilizar uma refinaria, como a que está em construção no Lobito com as qualidades das praias das redondezas temos que convir que o resultado é no mínimo uma bizarrice angolana.
A sul de Benguela as águas são frias, e naturalmente que haverá na costa africana muito mais opções, mais baratas e melhor localizadas para o chamado turismo de sol e mar.
Importa referir que Angola fica “longe” da Europa, principal “municiador” da indústria turística, e só franjas muito residuais poderão acabar por ser seduzidas pelo apelo ao turismo no País.
Formação de quadros, menos exigências burocráticas para a obtenção de vistos, melhoria das acessibilidades aos locais de interesse turístico, diminuição gradual mas rápida da pobreza, erradicação de doenças propiciadores de pandemias, assistência médica ao nível da excelência, harmonização de tarifas aéreas e possibilidade de companhias de low-cost operarem em vários aeroportos do território, campanhas agressivas em mercados de grande procura turística e melhorar a apresentação de Angola nos pavilhões em certames internacionais de turismo, são apenas alguns exemplo só do muito que há a fazer para alterar o quase nada que há feito neste momento. Só nessa altura o Turismo poderá então ter veleidades para representar um dígito no PIB angolano.
Gostaria que houvesse um debate sobre este assunto e anuncio que numa crónica futura irei falar sobre o turismo solidário e sustentável no mundo e em Africa particularmente onde há exemplos muito interessantes e economicamente viáveis. Era uma via a ser observada com interesse porque começa a haver muitos parceiros e muitas adesões a um mercado com grande potencial nas próximas décadas.
“O espaço turístico é antes de mais uma imagem.” “Imagem complexa, sonhada, adormecida e que reflete pinturas, livros, roteiros, filmes, odores, sons, sensações, enfim as experiencia e o imaginário de cada individuo” Jean-Marie Miossec.

Fernando Pereira
17/10/2012

Turismaldamente I/Ágora/ Novo Jornal 248 / Luanda 19-10-2012




Encerrou a 1ª Bolsa Internacional de Turismo de Luanda (BITUR), organizada no âmbito da programação anual das Feiras e Exposições que vão mostrando o trabalho desenvolvido em múltiplas áreas de intervenção económica.
Porque é uma área que tenho acompanhado de perto, nem que apenas seja porque partilho a gestão de uma pequena unidade de “turismo de habitação” nos contrafortes do Parque Natural da Serra da Estrela no interior de Portugal.
Pelas imagens que vi, pelo conjunto de informações que saiam em catadupa na imprensa e na internet, a sensação com que fiquei foi que o certame correu acima das expectativas, e que há neste momento alguma motivação extra para que as potencialidades do País sirvam para propiciar receitas acrescidas numa industria que tem um peso residual no quadro global.
Desde que o Homem se tornou sedentário, começou a sentir uma enorme necessidade de evasão e, ao mesmo tempo, uma forte curiosidade de contactar com outras terras e outras gentes, que só conhecia através dos contadores de histórias. Este apelo à viagem talvez tenha a ver com o facto de durante milhões de anos o homem e seus ascendentes terem sido nómadas. É neste contexto, de necessidade de evasão/curiosidade de conhecer, que reside a base do turismo moderno.
O fenómeno turístico é, em termos conceptuais, um fenómeno que tem acompanhado a evolução, o uso do tempo e o conceito de lazer.
O uso do tempo está, diretamente relacionado com a organização das estruturas socioeconómicas da sociedade. Já as civilizações clássicas tiveram a sua forma de utilizar o tempo e a praticar o lazer – o termalismo. As termas (Spas como modernamente são chamadas) eram utilizadas não só como aspeto terapêutico, mas também sob o aspeto lúdico.
Com a queda do Império Romano, e até ao final da recessão medieval (Sec. XIV), as pressões de caracter religioso e social, associados a grandes epidemias que contagiavam as águas, conduziram a um progressivo abandono do termalismo e em seu lugar surgem as peregrinações a lugares de culto, onde havia sempre “Santos” para receber os seus prosélitos, então únicos turistas dignos desse nome.
O período mediado entre o seculo XIV até ao seculo XVVIII é caracterizado pelo desejo de conhecer mundo. Numa base de aventura e comércio, a que também começa a associar-se a prática de atividades lúdicas.
O seculo XVIII é sem dúvida, uma época de grande mudança para o turismo. A partir de então este começa a organizar-se e a sistematizar-se. O que hoje existe é o resultado da evolução do que se passou nesse tempo.
A palavra turismo constituiu-se a partir do vocábulo inglês “The tour”, ou seja volta ou ida, com retorno ao ponto de partida. Este “tour” designava a viagem que o jovem aristocrático britânico fazia no final dos seus estudos académicos. Esta viagem era por norma realizada à França, Itália ou à Grécia com o objetivo de complementar a sua formação.
Após a Revolução Industrial, a burguesia, detentora de um grande poder económico, possuía um enorme fascínio pelos valores e hábitos da aristocracia, e para a imitar começou a enviar os seus filhos para os melhores colégios da Europa, e no final lá vinha a tal viagem. O fascínio por Paris era grande já que era o local privilegiado pela aristocracia.
O turismo surge intimamente ligado ao crescimento económico concomitante com o nascimento da civilização industrial ocidental.
Com o fim da IIª Guerra Mundial, num quadro de grande dinâmica económica e com as alterações no domínio social, nomeadamente férias remuneradas, o reforço das acessibilidades (transporte ferroviário, rodoviário, aviação, vulgarização do automóvel particular),a escolaridade obrigatória, em suma a melhoria generalizada da qualidade de vida nos países industrializados leva aquilo que hoje se designa correntemente pela massificação do turismo.
O progressivo sucesso da atividade turística reside, não só no desenvolvimento socioeconómico e cultural das sociedades modernas mas também no crescente aumento do tempo livre.
(Continua no próximo numero)

23 de outubro de 2012

O CHÁ,/ "EU, KARIPANDE" / "O POETA DA INCOMODIDADE" Nº 2- Setembro de 2012 / Luanda






EDITAL
Foi afixado
nos locais do costume
que É PROIBIDO MENDIGAR.
Logo mão que se descobre
escreveu a tinta por baixo
MAS NÃO É PROIBIDO SER POBRE.
Joaquim Namorado (A Poesia Necessária, 1966)

“ O poeta de Incomodidade desde sempre escolheu a não comodidade de se entregar de corpo e alma, muito mais do que à sua obra, ao afã quase secreto de organizar e dinamizar culturalmente e ao, não menos importante, de preparar novos organizadores e dinamizadores”- Disse Mário Dionísio numa das últimas homenagens feitas em vida a Joaquim Namorado, em 1983, na Figueira da Foz.
Joaquim Namorado e Mário Dionísio tinham muita coisa em comum na literatura enquanto cultores do neorrealismo, nas cumplicidades políticas de luta contra o fascismo e o colonialismo português, na forma solidária como se habituaram a viver e terem sido ambos meus professores em períodos distintos da minha longa vida académica.
Todos os estudiosos desse fecundo período da literatura portuguesa, são aliás unânimes a tal respeito. Alexandre Pinheiro Torres, por exemplo, no seu livro sobre o neo-realismo refere-se a Namorado como “corajíssima e exemplar personalidade” em torno do qual gravitou, em Coimbra, o movimento neo-realista, tal como aconteceu em Lisboa relativamente a Mário Dionísio. Jorge de Sena e Eduardo Lourenço partilham essa opinião e o segundo, num ensaio que lhe dedica no seu livro “ Sentido e forma de poesia neo-realista” (Dom Quixote, Lisboa), atribui a Joaquim Namorado o papel de “polarizador de energias de um grupo, a sua referência ativa e ativista, tanto como ética”.
“Só a revelação da insuficiência e incapacidade do esteticismo para efetuar uma transformação social que se tornava premente e nos levaram a defender uma arte inspirada nas circunstâncias corretas da vida real que achávamos imperioso modificar. Isto é uma arte que era ao mesmo tempo sujeito e agente transformador do real em que se inseria”, assim definia o neo-realismo, Joaquim Namorado, um homem que nasceu no Alentejo em 1914 e faleceu na Coimbra em 1986. Nesta cidade, onde sempre viveu, licenciou-se em matemáticas na Universidade onde foi proibido de lecionar, foi preso pela PIDE algumas vezes, tendo sido reintegrado após o 25 de Abril de 1974. Foi ainda aqui que exerceu a atividade cultural e intervenção cívica que o transformaram num pilar de coerência e determinação, símbolo para muitas gerações de gente que por lá passou e na qual me incluo.
Recordo-me de ter ido, numa tarde cinzenta, no dealbar dos anos 70, a sua casa pedir-lhe para me dar explicações de matemática, onde me recebeu, na sua sala” desarrumadamente” pejada de livros, jornais e discos. Com um ar matreiro perguntou-me de onde era e eu disse-lhe que “era de Luanda”. Indagou-me então se sabia o que eram os musseques e quem lá vivia. Fiquei surpreendido com a pergunta, mas respondi de forma algo titubeante que eram os negros. Perguntou-me se eu vivia lá, e eu respondi-lhe que não, limitando-me a vê-lo encolher os ombros e pegar num disco de José Mário Branco, “ Margem de uma Certa Maneira”, que tinha entretanto saído e imediatamente sido censurado e proibida a sua venda no Portugal de Caetano. Foi com Joaquim Namorado que ouvi este álbum pela primeira vez e também o “Portugal-Angola “do Luis Cília editado pelo “Les Chants de Lutte” em meados dos anos 60, a primeira denúncia em disco das atrocidades do colonialismo português. Aí já tinha percebido o alcance das perguntas que me deixaram tão surpreendido no primeiro contacto.
A relação de Joaquim Namorado com várias gerações de angolanos onde avultam os nomes de Agostinho Neto, Antero de Abreu, Eugénio Ferreira, com quem partilhou a liderança da “Vértice”, Manuel Rui Monteiro entre outros sugere terá havido uma forte influência do neo-realismo na fase debutante dos conhecidos percursos literários de autores africanos, sugerindo uma reflexão sobre o assunto.
Tive o privilégio de o ter acompanhado em várias ocasiões desde manifestações, convívios, homenagens, e tê-lo quotidianamente como companheiro de café, no velhinho “Tropical” em Coimbra, lugar de muita inspiração, algumas aspirações e poucas bem sucedidas conspirações.
Assumidamente comunista, pouco dado a transigir nas suas arreigadas e determinadas convicções, nunca temeu nem nunca vergou, mesmo quando o quiseram ostracizar na ditadura, e já depois na democracia, na “revanche” de uns quantos que nunca conseguiram ser como ele na defesa firme nas suas inabaláveis certezas.
Percebi o sentido do “não gosto de velhos” repetido nas múltiplas discussões que mantinha com Deniz Jacinto, Orlando de Carvalho, Jaime Serra, seus contemporâneos e Soveral Martins, Henrique Faria, Cristóvão de Aguiar, gente mais nova que ainda convivia connosco, os benjamins do grupo.
Ora, quando se pensa que o grupo neo-realista de Coimbra nos deu escritores tão importantes como Fernando Namora, Carlos de Oliveira, João José Cochofel ou Álvaro Feijó, e o de Lisboa como Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Alves Redol e Sidónio Muralha, etc, logo se alcança a importância de Joaquim Namorado num período relevante da vida portuguesa.
Sempre desenvolveu uma intensa atividade de dinamização cultural, colaborando na redação ou direção de revistas tão significativas como “O Diabo”, “Sol Nascente”, “Latitude”, etc. Foi desde sempre o animador da “Vértice”, presença ativa e constante na resistência cultural ao fascismo e, durante muitos anos, espécie de “órgão oficioso” do neo-realismo.
Joaquim Namorado : Um homem e poeta “incómodo”, que não esquecemos!

Fernando Pereira
19/9/2012

12 de outubro de 2012

Encargos II / Ágora/ Novo Jornal 247/ Luanda 12/10/2012



Querem um desporto escolar onde? Nas escolas onde o camartelo não funcionou e o parque desportivo foi ocupado por mais um prédio ou pelo parque de estacionamento de alguma empresa vizinha, com acordos sórdidos de permeio com autoridades que deveriam zelar pela manutenção das estruturas escolares na sua globalidade? Do ensino básico ao superior, conto pelos dedos das mãos o equipamento desportivo edificado em condições em todo o País, principalmente na nossa cidade capital.
O próprio ensino privado, pago a peso de ouro, está “privado” de instalações desportivas porque, na lógica do mercado, é mais rentável uma sala para trinta alunos numa hora, que dez alunos a ocuparem, em duas horas, um lugar onde cabem oito salas, no mínimo. O alvará é concedido sem que alguém se importe e os resultados começam a estar à vista.
Não temos quadros técnicos que se disponham a inverter este estado de coisas, o que não deixa de ser algo inquietante porque, se houve um esforço enorme na formação de quadros, foi de facto na Secretaria de Estado dos Desportos com Ruy Mingas e durante os consulados de Sardinha de Castro, no Ministério da Juventude e Desportos, apesar das inerentes dificuldades. Onde pára essa gente jovem ao tempo, que tinha uma disponibilidade total para trabalhar, desenvolver projetos e mobilizar gente? Era urgente recuperá-los nem que fosse para formar outra geração de técnicos.
Não é saudosismo dizer que as campanhas que Vitorino Cunha e outros faziam para arregimentar gente para o basquetebol, produziam resultados. Tal como as gentes do andebol feminino como os Betos (Ferreira e Batista) a pegarem em miúdas, algumas descalças, a jogarem em campos de cimento, iluminados por um holofote conseguido à má-fila.
Não é querer voltar ao passado, quando recordamos os Caçulinhas da Bola, onde o entusiasmo de um saudoso Rui de Carvalho na sua RNA, à frente de tanta gente generosa e solidária, montou o maior movimento de futebol infantil de que há memória no desporto do País, com meios exíguos, mas com uma alegria enorme entre participantes e organizadores.
É este País que temos que vir a ter, com maior empenho de empresas, individualidades e estruturas oficiais, para que as pessoas se mobilizem numa dinâmica coletiva indispensável à homogeneidade do País, unidos na defesa de princípios fundamentais, mas na diversidade de opiniões e também da ação política baseada no respeito e na dignidade da pessoa.
Apesar do meu proverbial agnosticismo e algum arreigado ateísmo, por vezes demasiado primário, não deixo de sublinhar que é nas missões, em colégios ligados a confissões religiosas, que vai havendo um trabalho aceitável ao nível da educação dos jovens, o que na realidade só sublinha que há envolvimento de uma estrutura que tem sido uma resposta eficaz ao vazio que a administração central não resolve em determinados lugares. O próprio desporto de recreação é muito valorizado nestas estruturas, que vão mantendo com alguma dignidade os seus espaços físicos de prática educativa.
A cultura física, nas suas diferentes componentes (e de que o desporto é parte integrante), é indispensável na formação plena de qualquer cidadão. Quanto ao desporto, permite, a qualquer um que o pratique, na forma de rendimento e até no domínio da recreação, o saber distinguir até onde vai o individual e onde se inicia o colectivo.
À imprensa, exige-se maior divulgação do grande debate que urge fazer para, daqui por quatro anos, por mais debilitados que estejamos no que à representatividade desportiva diz respeito, não recorrermos às ladainhas do costume na procura de "responsáveis". Isto, se entretanto não tivermos mexido uma palha nem sugerido o que quer que seja de construtivo para nos podermos voltar a orgulhar da nossa bandeira em provas internacionais de clubes ou seleções.
É urgente também acabar com os discursos encomiásticos em alturas em que isoladamente lá vem uma vitória, mas enaltecer-se os que verdadeiramente trabalham e se sacrificam para ser campeões, o que, naquele léxico, é muitas vezes deslembrado.
Convém deixar bem claro que, enquanto estou a escrever este texto, não sei quem serão os responsáveis pela Educação, Juventude e Desportos do País, no novo governo saído das eleições. Mas a minha conceção do desporto, a minha análise crítica do desporto que temos e a minha disponibilidade para colaborar através deste tipo artigos vai ser total, porque, como angolano, tenho a noção de que não vai ser nada fácil colocar outra vez o País no pelotão da frente do desporto africano, nem que seja apenas nas modalidades em que dominámos anos a fio.
Querem um culpado de tudo isto? NÓS TODOS!

Fernando Pereira
29/9/2012


Caderno de Encargos I / Ágora/ Novo Jornal 246/ Luanda 5/10/2012




Passadas as eleições, empossados os eleitos, talvez não fosse má ideia começarmos a falar de como resolver os problemas do quotidiano do País.
O desporto angolano foi um catalisador maior para a edificação de Angola enquanto Nação, de afirmação plena no quadro dos países africanos, e mobilizadora de vontades e manifestações de enorme solidariedade por parte dos cidadãos nos momentos de muitas vitórias das nossas seleções nalgumas modalidades coletivas.
Os Jogos Olímpicos de Londres, neste Verão de 2012, evidenciaram o que muitos de nós vaticinávamos, alguns em surdina e outros, onde me incluo, de forma pública.
Penso que não vale muito a pena andar à procura dos responsáveis por esta situação, que infelizmente vai começar a repetir-se com regularidade nas futuras participações das nossas seleções, clubes ou atletas em modalidades individuais.
Num artigo que fiz neste espaço antes da deslocação da delegação olímpica, infelizmente antecipei o que efetivamente veio a acontecer, o que não me trouxe satisfação alguma, mas a vontade de ajudar a inverter um estado de coisas que, para não voltarem a dar os mesmos resultados, vão exigir uma década, no mínimo, de reflexão, empenho, trabalho, afirmação política e mobilização de muita gente.
Vamos começar a acabar com a linguagem do novo-riquismo. Na realidade, a Etiópia, o Uganda, o Quénia e até a Jamaica têm menos poços de petróleo que Angola, Arábia Saudita, Qatar e outros países, que acham que podem comprar tudo ... menos medalhas olímpicas, como se comprova no quadro de medalhados. Era bom que deixássemos de olhar para o nosso umbigo, e olhássemos antes para a presença da Africa do Sul, em termos desportivos, em competições internacionais, e não arranjássemos argumentos pueris para justificar a cada vez maior distância que nos separa deles.
Os discursos frívolos de muitos agentes desportivos devem ser substituídos por um trabalho aturado de planeamento, que passe, numa primeira fase, pela avaliação do que está a acontecer no quotidiano das crianças e jovens do País.
Vamos começar a falar verdade connosco próprios; a maior parte das crianças e jovens do País não frequenta a escola, pelo que o desporto escolar não pode servir de campo de recrutamento para a competição e ainda menos como trampolim para a alta competição. O que estamos a construir é uma sociedade de contornos perigosos porque, ao ideológico coletivo e gregário, substitui-se a máxima do liberalismo económico francês de François Quesnay (1694-1794) do “Laissez-faire, laissez-passer, le monde va de lui-même”. As crianças e os jovens proliferam em bairros socialmente degradados, em famílias destruturadas, e têm necessidade absoluta de sobreviver, num quadro onde as referências são poucas e nalguns casos desrecomendáveis. Terá que ser através do desporto que tem que se recuperar essa juventude, nem que seja só para a sua integração de cidadania plena, o que, convenhamos, já era um enorme avanço e um progresso assinalável para o País.
Fala-se de desporto escolar e da sua revitalização, e houve aí, de facto, um esforço valoroso ao ir buscar-se uma figura referente e maior da cultura física e desporto angolano: Ruy Mingas. Mas, na realidade, acho que nem ele vai conseguir inverter a situação actual. Para isso, exigem-se compromissos que obrigam a um cumprimento faseado e a ultrapassar vaidades pessoais ou interesses económicos de outra ordem. Só a autoridade moral de ter sido o grande obreiro da edificação da educação física e deporto no País poderá permitir ter-se alguma réstia de esperança para o êxito de um trabalho que tenho acompanhado e por saber do seu empenho e capacidade dificilmente inigualáveis.
(Continua no próximo jornal)

11 de outubro de 2012

1900 O INTERIOR 11/10/2012


Muito antes de os EUA sonharem sequer que teriam um presidente mestiço, um ator negro nascido nas Bahamas( 20 de Fevereiro de 1927), conseguiu uma proeza impressionante: um Óscar de Hollywood pelo melhor desempenho masculino em “Lírios do Campo”.
Ocorreu em 1963, por acaso no ano em que Martin Luther King fazia um dos mais belos discursos de todos os tempos, declarando em Washington que “sonhava com um mundo onde os homens não pudessem ser julgados pela cor da pele”!
Sidney Poitier estava então para o cinema como Barack Obama está hoje para a política. Impôs-se desde muito jovem em filmes como “No Way Out” (Joseph L. Mankiewicz, 1950), “Sementes de Violência” (Richard Brooks, 1955) e “Um Homem tem Dez Metros de Altura” (Martin Ritt, 1957). Contracenou com Paul Newman, Tony Curtis, Glenn Ford, Richard Widmark, todas as vedetas da época. E continuou a romper barreiras raciais em filmes como “Adivinha Quem Vem Jantar” e “No Calor da Noite”, ambos de 1967. Neste, ficou célebre uma réplica sua a Rod Steiger, que fazia de polícia racista: "Chamam-me Mister Tibbs." Uma das frases mais memoráveis do cinema, pronunciadas pelo “senhor” Poitier. Antes dele, os negros em Hollywood apenas podiam ser mordomos, porteiros de hotel ou pianistas de bar. Depois dele, puderam ser tudo.

Julgo curioso recordar que o filme de 1967 “Guess Who’s Coming to Dinner” /”Adivinha quem vem jantar”, de Stanley Kramer, só conseguiu ser estreado em Portugal já durante o ano de 1969, naquilo que se denominou “ A primavera marcelista”, pois Sidney fazia de Dr. Prentice, o noivo de Joey, uma jovem WASP, com uns pais conservadores que rejeitavam o seu amor. Ver um negro e uma branca beijando-se no grande ecrã, foi para muitos, algo que não dá hoje muito para acreditar, um ato quase de militância antirracista e anticolonialista. Para não esquecer que tudo isto acontecia há menos de meio século num País que nalgumas coisas mudou pouco, e em que a saudade é de algo que nunca se viveu.

Porque estamos em tempos de “lembradoras”, convém não esquecer que estamos no limiar da comemoração da publicação dos quarenta e cinco anos do “Álbum Branco” dos Beatles, e não gostaria de deixar de relevar uma efeméride. Até o Vaticano se associou quando “despenalizou” John Lennon, por ele ter dito ao tempo que “ Os Beatles eram mais importantes que Jesus Cristo”. Valeu-lhe a ira dos cristãos, que convenhamos iram-se demais com pouca coisa, e ameaças do Ku-Klux-Klan, para além de manifestações públicas de partir discos ao que o baterista Ringo Starr, terá dito:” Partam mais, porque quanto mais partirem mais tem que comprar”, (pragmatismo q.b.).
Podia fazer uma crónica a dizer mal de alguma coisa, mas todos os meus colegas da “achologia” o fazem não me permitindo ser original, por isso cá ficam as banalidades e simultaneamente falar de gente que vale a pena ser lembrada e nomeada.
Para o fim, só digo que apesar de não ter nada a ver com o resto do texto, mas como precisava de um título apelativo para uma crónica preguiçosa, apraz-me dizer que o 1900 do Bernardo Bertolucci é só um dos dez melhores filmes que já vi antes de ter morrido.
Fernando Pereira
9/10/2012
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