18 de maio de 2018

Todo o poder abusa, o poder absoluto abusa absolutamente! / Jornal de Angola -17/05/2018




Todo o poder abusa, o poder absoluto abusa absolutamente!

Provavelmente o Maio de 1968 em França terá sido o ultimo movimento utópico mobilizador de gente na história contemporânea da Europa.
                Há obviamente muita subjetividade nesta afirmação, mas quando se faz uma retrospetiva do que foram esses dias fervilhantes, onde havia uma avidez por fazer tudo que acontecia de diferente do que tinha sido até então.
                A Europa vivia um período de relativa acalmia social e política, e a economia tinha adquirido uma estabilidade que ainda não se tinha observado no pós-guerra. Isso não conseguia esconder as contradições inerentes ao modelo capitalista prevalecente, nem à ideologia agregada ao convencionalismo burguês, assente em valores suportados por um ensino ainda fortemente matizado pela herança cristã.
                A União Soviética que tinha sido uma esperança para muito cidadão da Europa, e para um conjunto de intelectuais, enleou-se pela “burocracia da ideologia” e deixou de ser apelativa substituindo-se o “realismo soviético” por Trotsky, Mao Tsé-Tung, Fidel de Castro, Che Guevara e outros contemporâneos da luta pela libertação.
                O Maio de 1968 é o corolário de um tempo de contestação contra a guerra do Vietname, que tinha cada vez mais adesões a nível mundial particularmente nos EUA, e contra as ditaduras na América Latina e em Portugal e Espanha. Apoiava-se abertamente Cuba, a luta armada na América Latina e em África, a luta dos negros americanos pelos direitos cívicos e a Revolução Cultural na China (1966-1969).
                Em simultâneo agudizavam-se as lutas estudantis na Alemanha (organizada em Berlim pela SDS- Sozialisticher Deutscher Studentbund, tendo o seu líder Rudi Dutschke sofrido um atentado em 11 de Abril de 1968). Em Berkeley nos EUA iniciou-se um rastilho de contestação por parte dos estudantes, que rapidamente alastrou um pouco por universidades em todos os Estados dos EUA. No Brasil a repressão contra os estudantes foi violenta, mas não atingiu as proporções de Tlatelolco no México, onde o exército é mobilizado para calar a contestação estudantil saldando-se o balanço final em mais de 200 mortos, 500 feridos e 2000 pessoas presas.
                Um pouco por todo o mundo germinava a contestação estudantil, e os estudantes assumiam então que era altura de apoiar as lutas dos trabalhadores, e apoiar as conceções políticas inovadoras que emergiam em vários locais, nomeadamente na China, onde só muito mais tarde chegaram as terríveis descrições de uma então idolatrada Revolução Cultural.
                No Senegal afrontando a subserviência francesa de Senghor, e na procura de um ensino mais adequado à realidade africana, procuraram imitar os estudantes franceses, e através da UDES (União de Estudantes Senegaleses) que reagrupava os estudantes locais e a UED (união de Estudantes de Dakar, que aglomerava os estudantes de diferentes países africanos, fizeram um conjunto de manifestações fortemente reprimidas com muitas prisões de premeio e expulsão de centenas de estudantes do País.
                Voltando a França, e ao já distante 1968 importa referir que tudo começou no dealbar de Maio na Universidade de Nanterre, uma escola de subúrbios onde a origem social dos estudantes era claramente diferente das universidades do centro de Paris, frequentadas pelos filhos da burguesia, ao tempo os únicos que tinham acesso ao ensino superior.
                As reivindicações dos estudantes inicialmente eram de natureza corporativa, em que se pedia entre várias reformas o fim de que “as grandes disciplinas (ciências, direito, medicina, letras, sociologia, etc.) eram ensinadas em faculdades separadas”; pediam-se universidades pluridisciplinares para favorecer as evoluções científicas que acontecem nas fronteiras das disciplinas”.
                A realidade é que a repressão sobre os estudantes de Nanterre a 3 de Maio de 1968, acabou por despoletar uma irrupção social que chegou a colocar 10.000.000 de trabalhadores em França, incendiou a Bolsa de Paris, ocuparam-se escolas, universidades, teatros, fábricas, em suma tudo foi diferente naquela primavera de 1968.
                O ensino foi contestado no seu todo e pretendeu-se questionar a utilidade social de um conhecimento abstrato, separado da prática.
                O marxismo estava arredado do ensino superior nas ciências sociais e na economia, e exigiu-se que passasse a ter uma prevalência maior em todo o ensino, de forma a tornar-se mais identificada com a luta dos trabalhadores, inicialmente desconfiados dos estudantes pela sua origem de classe, mas depois aliados nos propósitos de alterar a sociedade.
                Os intelectuais participaram no movimento de Maio de 1968, principalmente nas conferencias que se realizavam um pouco por todo o lado, aproveitando-se os lugares mais incríveis como velhos armazéns ao longo do sena, ou os anfiteatros austeros de uma Sorbonne ocupada pelos estudantes. Charles Bettelheim, Lucian Goldmann, Louis Altusser, Henri Lefebvre, Henri Dennis, Jean Paul Sartre, Roger Garaudy, Simon de Beauvoir, e naturalmente Marcuse e Guy Debord, o anarquista que criou o “situacionismo”. Não esqueçamos Alain Krivine o trotskysta fundador da UEC, entre tantos outros.
                Para além de Marx, recuperou-se Gramsci, o “livro Vermelho de Mao”, Nicos Poulantzas, Giap, Freud e emerge William Reich, trazendo a sexualidade e o prazer para o centro do debate político, tema tabu até então.
                A comunicação social detida pelo Estado, ou pelos grandes grupos económicos tentaram através de manipulação de fotos e filmes inverter a situação para repor a ordem “velha” que o presidente de Gaulle exigia para recuperar a França que tinha idealizado. A verdade é que influenciados pela China, os jornais de parede tiveram uma influencia decisiva na mobilização, e na permanente informação aos cidadãos empenhados em fazer valer as suas convicções. Os jornalistas da rádio oficial, a ORTF, assumiram a sua postura de informar sem pressões, o que lhes valeu serem despedidos quando o poder recuperou as rédeas da situação. A própria ORTF fez uma greve solidária com a luta dos estudantes e trabalhadores. Os panfletos, as serigrafias e os cartazes encheram as ruas. Milhões de panfletos, 500.000 cartazes com cerca de 400 motivos diferentes executados por artistas, operários, estudantes, tipógrafos, etc. mostra bem o grau de engajamento das pessoas no Maio de 1968. Apareceu a figura do jornalista militante, que acaba por dar origem ao quotidiano “Libération”, onde colaborou Sartre entre outros e que ainda hoje existe com todo o seu prestígio acumulado desde então.
                Um dos pormenores pouco difundido no Maio de 1968 tem a ver com a instalação das Universidades Populares, locais de discussão permanente e partilha de conhecimentos que transformaram radicalmente a mentalidade dos que viveram o Maio de 1968. Outro aspeto pouco divulgado tem a ver com a atenção que os intervenientes deram aos problemas do terceiro mundo, e não devemos olvidar que havia colónias francesas que tinham ascendido à independência meia dúzia de anos antes. Outra ação de grande importância foi o trabalho de alfabetização feito pelos estudantes aos emigrantes africanos que enxamearam Paris para trabalharem duramente na recuperação da França no pós-guerra.
                Claro que houve detratores do Maio de 1968, nomeadamente Raymond Aron, que escrevo um libelo acusatório veemente “La revolution impossible”, mas “ninguém conseguiu impedir que as flores de Maio desabrochassem”!
                O Maio de 1968 foi claramente uma luta contra a ordem capitalista prevalecente. Não conseguiu vencê-la, mas ter-se-ão conseguido conquistas importantes em áreas que marcaram os anos seguintes, ou mesmo as décadas, até à inflexão que se vai assistindo na implantação de um liberalismo desregulado que se tem imposto na Europa e no mundo.
                Seria difícil de imaginar a Jacques Sauvageot, Alain Geismar e Daniel Cohn- Bendit e a outros, que a sua tenacidade em Nanterre iria provocar este abanão com consequências, a primeira das quais a demissão do General de Gaulle de Presidente da Republica francesa, para além de outras de maior significado no quotidiano das pessoas.
                Controversa sobre o significado dos acontecimentos de 1968, não se pode negar a sua importância na história da ultima metade do seculo XX.
                Uma geração de estudantes e jovens trabalhadores ficou marcada por esses acontecimentos. Uma grande parte dessa gente participou nos debates universitários e manifestações de rua. Algo mudou no quotidiano de vida de muita gente, no relacionamento interpessoal, na visão do mundo e na afirmação clara entre o que se gosta e o que se detesta.
                Sonhou-se um poder numa premissa de igualdade, e de distribuição equitativa de riqueza. Pura estultícia, pois mesmo nas fases mais duras o capitalismo regenera-se e aparece travestido de novas roupagens. Ficam as lembranças vivas do que se tentou!
                Ficaram palavras que sintetizam muito do que foram aqueles dias e noites em que alguma Europa sonhou que tudo ia ser diferente, e outros tinham pesadelos porque podia ser o fim de um tempo que se perpetuava devagarzinho, como convinha ao poder instalado.
                Ainda hoje ecoam as palavras, os grafitis e de vez em quando aí voltam a ser palavras de ordem num tempo que episodicamente é de esperança: "Abaixo a sociedade de consumo.”, “Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo." ,"A ação não deve ser uma reação, mas uma criação.”, "O agressor não é aquele que se revolta, mas aquele que reprime." , "Amem-se uns aos outros." ,"O álcool mata. Tomem LSD." ,"A anarquia sou eu.”, “as armas da crítica passam pela crítica das armas." ,"Parem o mundo, eu quero descer." ,"A arte está morta. Nem Godard poderá impedir." ,"A arte está morta, liberemos nossa vida cotidiana." "Antes de escrever, aprenda a pensar.”, "A barricada fecha a rua, mas abre a via." ,"Ceder um pouco é capitular muito.”, “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês.”, “A cultura é a inversão da vida." ,"10 horas de prazer já." ,"Proibido não colar cartazes." ,"Abaixo da calçada, está a praia.", "A economia está ferida, pois que morra!" ,"A emancipação do homem será total ou não será.”, "O estado é cada um de nós.”, “A humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado com as tripas do último padre.”, “A imaginação toma o poder." ,"A insolência é a nova arma revolucionária.", "É proibido proibir." ,"Eu tinha alguma coisa a dizer, mas não sei mais o quê." ,"Eu gozo.”, “Eu participo. Tu participas. Ele participa. Nós participamos. Vós participais. Eles lucram.”, “os jovens fazem amor, os velhos fazem gestos obscenos." ,"A liberdade do outro estende a minha ao infinito.", "A mercadoria é o ópio do povo.", “As paredes têm ouvidos. Seus ouvidos têm paredes." ,"Não mudem de empregadores, mudem o emprego da vida." ,"Nós somos todos judeus alemães." ,"A novidade é revolucionária, a verdade, também." ,"Fim da liberdade aos inimigos da liberdade." ,"O patrão precisa de ti, tu não precisas do patrão.", "Professores, vocês nos fazem envelhecer." ,"Quanto mais eu faço amor, mais tenho vontade de fazer a revolução. Quanto mais faço a revolução, mais tenho vontade de fazer amor.”, “A poesia está na rua." ,"A política se dá na rua." ,"Os sindicatos são uns bordéis." ,"O sonho é realidade." ,“Só a verdade é revolucionária.”, “Sejam realistas, exijam o impossível.",
"Trabalhador: você tem 25 anos, mas seu sindicato é de outro século." "Abolição da sociedade de classes." ,"Abram as janelas do seu coração.”, “A arte está morta, não consumamos o seu cadáver. “,"Não nos prendamos ao espetáculo da contestação, mas passemos à contestação do espetáculo. “,"Autogestão da vida quotidiana", "A felicidade é uma ideia nova." ,"Teremos um bom mestre desde que cada um seja o seu." ,"Camaradas, o amor também se faz na Faculdade de Ciências." ,"Consuma mais, viva menos." ,"Escrevam por toda a parte!" ,"Abraça o teu amor sem largar a tua arma.”, "Enraiveçam-se!", "Ser rico é se contentar com a pobreza?", "Um homem não é estupido ou inteligente: ele é livre ou não é.", "Adoro escrever nas paredes." ,"Decretado o estado de felicidade permanente." ,"Milionários de todos os países, unam-se, o vento está a mudar.”, “Não tomem o elevador, tomem o poder."
            Uma coisa é certa, o debate nunca está encerrado!

Fernando Pereira
12/5/2018
               

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