30 de dezembro de 2009

Opinião/ Dez anos que não mudaram o mundo/ Luanda/ Novo Jornal 30-12-09




Dez anos que não mudaram o mundo.

Longe vai o ano de 1845, em que o jovem Karl Marx, escrevia as 11 teses de Feuerbach, e que a décima primeira dizia: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
Foi o preambulo teórico de todo um processo de lutas, e mudanças sociais, económicas e políticas, ao longo de todo século XX.
Estes primeiros dez anos, foram a acrimónia dos últimos anos do século transacto. Tem sido feito, com algum sucesso aliás, um esforço continuado em obliterar ideologias que prevaleceram dominantes no mundo no século passado, e que por razões ainda não suficientemente estudadas cientificamente, tem sido guilhotinas, para se saber as devidas causas. O seu lugar foi ocupado pelo liberalismo que se esperava, pois a realidade é que esta primeira década de um milénio que se augurava promissor, transformou-se num mundo onde a globalização (antes chamada de imperialismo), a selvajaria de novos métodos de velhos sistemas económicas, levaram à descrença a maior parte da população mundial, que entusiasmadamente aplaudiu a mudança.
No campo da tecnologia, houve avanços significativos e as pessoas passaram a estar mais próximas para saberem mais dos outros, com cada uma cada vez maior desigualdade na distribuição da riqueza. Este século, e esta crescente sociedade da informação, dá a possibilidade das pessoas saberem que trabalham arduamente, mas o seu magro salário, ou a dignidade da sua vida é concebida pelos ditames de uns números que giram a grande velocidade numa Wall Street (uma rua em Nova York do tamanho da R. dos Mercadores), de um Nikei em Tókio ou um Dax em Frankfurt, onde muitos milhares de pessoas, enxameiam espaços a vender e a comprar papéis de coisas, que outros realmente produzem em circunstâncias social e materialmente degradantes.
Numa década em que os conflitos étnicos, tribais, fronteiriços e religiosos se multiplicaram e desenvolveram com uma violência inimaginável há uns anos, o que assistimos é a derrota dos que apregoavam, que os países do leste europeu eram a cabeça da hidra do “Eixo do Mal”. A realidade é que a desagregação da ex-URSS mostrou as fragilidades da sua economia, e a sua inépcia em preservar o ambiente, mas também mostrou um sistema que deu quadros mais capacitados e desenvoltos, mesmo para competirem nos mercados tecnologicamente exigentes do centro da Europa, para dar um pequeno exemplo.
A Liberdade é um valor sagrado em qualquer modelo de sociedade, mas a realidade é que com a falta de discussão ideológica, em torno da posse dos meios de produção, do lucro e do seu uso, e dos direitos dos cidadãos, permite que as religiões monoteístas, e as poderosas instituições que as regulam hierárquica e economicamente, tentem ocupar esse lugar, não olhando a meios, e nalguns casos usando torpes razões para fazer valer a sua implantação no terreno.
Acabámos a década com o aparecimento de potências emergentes, mas simultaneamente, os dados dos organismos das Nações Unidas dão 900.000.000 de pessoas a sobreviverem na indigência e na pobreza extrema.
Conceitos de solidariedade, de desenvolvimento sustentado, de remuneração justa, de trabalho digno, de combate continuado à doença e um acesso à educação, são “retóricas”, que já nem no domínio do léxico político se consegue vislumbrar.
Tudo hoje é mais rápido, porque há redes sociais, computadores, meios de transporte mais velozes e cómodos, antenas parabólicas, radares, telemóveis, uma miríade de coisas que nos apareceram esta década, e que vão transformando quem ainda “valoriza outras coisas” em verdadeiros “botas-de-elástico”.
A realidade é que houve uma crise na economia mundial, talvez parecida com a de 1929, tão bem tratada pelos “Tempos Modernos” do talentoso Charlie Chaplin, porque apesar de nos darem a ver muita coisa, há também a arte de esconder outra, e por vezes o essencial. Oitenta anos depois, tudo tão diferente, e ao mesmo tempo tão igual.
No mundo inteiro vai prevalecendo o princípio, que a terra é dos nossos antepassados, e que a teremos que usar e entregá-la aos nossos filhos em condições. Os Índios, os que escaparam, têm uma teoria diferente: a terra é dos nossos filhos, nós é que a pedimos emprestada, pelo que temos que cuidar dela com redobrado cuidado porque não é nossa.
O fim de década não podia ficar marcado por pior espectáculo, como o que se assistiu em Copenhaga, ou talvez tivesse sido o epílogo de uma década que deixa poucas saudades. A posição de alguns países, nomeadamente dos EUA, foi no mínimo hipócrita, pois disseram pura e simplesmente: Poluímos enquanto quisermos, e se há países que se sentem lesados com a poluição, pagamos! Um conjunto de países ouviu falar de dinheiro, quis lá saber do ambiente, do aquecimento, do futuro, e logo se colocaram naquela posição dúbia de não discutirem o que era em termos ambientais importante, mas quanto poderiam receber para que tudo continue na mesma e a degradação continue até à irreversibilidade!
Sou um pessimista, mas salvaguardo que um pessimista é um optimista com experiencia!
Que venha outra década, que esta já a ficámos a conhecer!

Fernando Pereira
28/12/09

Tchiweka / Ágora / Novo Jornal/ Luanda 30-12-09



Tchiweka

“Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis”
Bertold Brecht

Fui presenteado, por um bom amigo, com o livro “Lúcio Lara, imagens de um percurso”, editado pela “Associação Tchiweka de documentação”.
Este livro, graficamente excelente, é a fotobiografia do homem que trilhou toda a luta de libertação de Angola, do seu nascimento enquanto País, e a sua tumultuosa existência nestes quase trinta e cinco anos de independência.
Há uns tempos, passei a pé na casa branca, a 124, da Rua Comandante Stona, e reparei que era a única casa de Luanda que tinha visto sem grades, sem arame farpado, sem segurança sentado numa cadeira à porta, sem muros altos e com o jardim cuidadosamente arranjado. Comentei esse facto com alguns amigos, e realmente foi generalizada a opinião que essa situação era imposta pelo respeito, só possível pela probidade e estatura moral do proprietário da casa: Lúcio Lara.
Lúcio Lara dedicou toda a sua vida à luta pela independência do povo angolano, sacrificando-se, sacrificando a sua família, e nunca nada pediu em troca, rejeitando demasiadas vezes cargos, lugares, em suma todo um conjunto de “prebendas”, que o violentassem no seu carácter de homem impoluto, de grande maturidade ideológica e profundamente arreigado a valores, que se para alguns são dispensáveis, para ele foi a razão de luta de uma vida vivida, dura e materializada nalguns dos seus lídimos objectivos.
Esta fotobiografia, bem como os outros três livros de documentos, já publicados pela ATD, revela uma pessoa de combate, mas também alguém que dava e retribuía com facilidade doses elevadas de afectividade. O MPLA foi a razão da sua vida, ele que é um dos poucos sobreviventes, de um projecto que criou e desenvolveu, onde tantos tem entrado, e que merece do seu País tudo que se deve dar a um dos seus melhores, que são tão poucos..
Lúcio Lara funcionou para mim e para muitos da minha geração, quase que como um alter-ego, com a sua luta continuada pela libertação do País, a defesa obstinada do seu projecto de sociedade igualitária em Angola, o tenaz combate ao racismo e tribalismo, pasto fértil para a penetração de formas de liberalismo niilista, em que o lucro a qualquer preço é o mote da sociedade, e em que o homem passa a mercadoria ou estatística.
Este livro, é provavelmente do melhor que se fez em Angola, nos últimos trinta e cinco anos, e mostra fotos de paixão, de amizades perpetuadas, de reuniões aturadas, de situações complicadas, de momentos de tensão, de permanente trabalho político, de cumplicidades forjadas em propósitos comuns de afirmação de vontades de transformação de sociedade, enfim mostra o trajecto dos quase cinquenta e cinco anos do MPLA, que só tem um denominador comum: Lúcio Lara.
O livro abre a sua casa, mostra a sua dedicada família, expõe a simplicidade dos seus hábitos e partilha com todos o que gosta de fazer, os seus amigos, e os anos vividos com a sua companheira Ruth, falecida em 2000, e que seguramente foi um enorme choque, tal a cumplicidade de quase cinquenta anos de vida em comum, e de partilha de ideias, sentimentos e convicções.
Este livro é o verdadeiro livro de Angola, obrigatório para todas as gerações, principalmente para a juventude, para perceberem se o que hoje é fácil ou facilitado., foi feito com luta por pessoas imprescindíveis, e que felizmente ainda vivem entre nós.
Lúcio Lara, agradecemos-te porque não deitaste os papéis fora, e teres sido sempre um rato de papeis! Talvez assim se tivesse evitado, que em Angola, ou noutro lugar, se escrevesse ou reescrevesse a história segundo as conveniências do mercado e das circunstâncias adaptadas a determinados momentos.
Á Associação Tchiweka de Documentação, saúdo o mérito de todo o trabalho que aí está ao alcance de todos os angolanos, sem peias nem meias!

Fernando Pereira
24/12/09

23 de dezembro de 2009

Engenheiros de Almas? / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 23/12/09




Estamos nataliando, e esperava-se provavelmente uma crónica à volta de renas, pais natais, presépios, cabazes, doçarias, bacalhaus e outras vitualhas, adaptadas às circunstâncias do desenvolvimento e inerente envolvimento!
Hoje o tema é sobre uma situação que trouxe em polvorosa algumas pessoas, meios políticos e culturais do País, por João de Melo, ter vencido o prémio de Literatura e Artes atribuído pelo Ministério da Cultura em 2009.
Quero fazer desde já uma declaração prévia de interesses: Sou amigo de João de Melo. Foi meu colega de turma vários anos no Salvador Correia, percorremos juntos locais de Coimbra enquanto estudantes, fui seu colaborador regular no “Correio da Semana”, sou admirador da sua obra literária, e acompanho com entusiasmo qualquer projecto onde participe, pois habituei-me a dimensionar a o seu civismo impoluto.
Acho que João de Melo há muito que merecia este prémio, e não o digo por simpatia, mas porque acho que é um dos escritores angolanos com obra solidificada e com leitores fiéis, sem ter procurado colocar-se em bicos de pés, ou na busca quase doentia de protagonismo a qualquer preço, para se promover, como há exemplos suficientes na escrita doméstica e exportada.
João de Melo, foi sempre uma pessoa discreta, simultaneamente sagaz e hábil na construção das palavras assertivas, num espaço de intervenção política que sempre foi seu, geneticamente herdado, e militantemente afirmado. Nunca foi pessoa a quem se pedissem meias-palavras, penumbras lógicas e matizes indecisas. Foi deputado pelo seu MPLA de sempre, e se hoje faz parte dos quatro milhões de militantes (?), houve momentos em que ele era militante e à sua volta estavam apenas quatro múltiplos de cem, depois 4 múltiplos de mil e por aí fora, até não termos uma praça em lado nenhum para juntar tanto militante, tanta divergência ideológica, política, religiosa, económica e étnica num quadro muito difuso de “socialismo democrático”, ou “partido de esquerda”, matrizes tão enfatizadas recentemente no VI Congresso do MPLA.
Viriato da Cruz merece este prémio, mas antes disso merecia que não fosse tão ostracizado da memória colectiva dos angolanos, e do próprio MPLA, movimento que fundou e liderou.
Não conheci Viriato da Cruz, e sempre que tentei saber algo sobre ele, vi barreiras demais, o que ainda aumentava o número de interrogações. O que conheci primeiro dele, foram os seus poemas, e acho que ele há-de vir a ser Prémio Nacional de Literatura e Artes, mas tenho a convicção que primeiro é necessária uma catarse, para que Viriato da Cruz não continue a ser ignorado pelos angolanos, e que o seu papel na história de Angola e da sua libertação seja relevado da forma solene, com dignidade, e que Angola se obrigue a olhar para as pessoas que lutaram e acreditaram nela como País, de uma forma reverente.
Em síntese, é indiscutível o merecimento de João de Melo pelo prémio, como é indiscutível que é urgente dignificar Viriato da Cruz, independentemente de percursos descontinuados em determinadas circunstancias.
Angola necessita pouco de “Engenheiros de Almas”, como Estaline chamava aos intelectuais e jornalistas em 1936, e este episódio da atribuição do prémio, ainda vai deixando pairar que não terão findado alguns tiques de ortodoxia dispensável, pelo menos nestes casos. Acabou por ser levado para um campo falacioso, e só algum bom senso manteve a dignidade do prémio, premiados e júri, que mereciam pouco esta exposição pública, pelo menos da forma como aconteceu.
Quis comparar-se, e mal, diga-se de passagem, a atribuição do prémio Camões, e recusado por Luandino Vieira. As razões aduzidas não tinham comparação nenhuma com este caso, e se querem manter o argumento, não deixem de se lembrar que quando Luandino recusou, o prémio foi entregue ao extraordinário Luis Miguel Cintra, um dos melhores actores do teatro e cinema português, encenador emérito e fundador em 1973 do Teatro da Cornucópia. Pode-se dizer que um ao recusar e o outro ao aceitar, equivaleram-se em prestígio, pois são ambos excelentes, e nenhum deles perdeu as qualidades com que foram distinguidos.
Um bom “Dia da Família” para quem vai tendo paciência de me ler.
Fernando Pereira
15/12/09

19 de dezembro de 2009

Capacete obrigatório/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 18-12-09



O Novo Jornal faz o brilharete de 100 números. Esta coluna está pertinho de o fazer, por isso vão preparando os V. encómios (Narcisista q.b.).
Findou o VI Congresso do MPLA, e do que fui acompanhando, ressaltou que os Congressos do MPLA, já não se efectuam na Av. do 1º Congresso, o que é um claro distanciamento, onde pela primeira vez se fez um Congresso do MPLA de 4 a 10 de Dezembro de 1977.
Admito que há aspectos hitchkokianos neste congresso, pois o 47º elemento do Bureau Político do MPLA, permanece em suspenso e muito a propósito levante-se o véu, porque é um elemento feminino.
Para além do Congresso, começa a debandada dos expatriados para a Europa, não querendo partilhar a panóplia de cabazes disponibilizados pelo comércio a retalho e grossista do País.
Sou suspeito, porque realmente sempre gostei mais de “Dia da Família” do que do “ Natal”, e quando vejo os eventos que emolduram a festa que se aproxima, só me vou lembrando que também vai sobrar para mim, num primado para o fígado de “que resistir é vencer”!O escritor Baptista Bastos, quando vê alguém permanentemente ruborescido, tem uma tirada com imensa piada: “O meu amigo não engana ninguém, tem o seu fígado no nariz”!
Já que se fala em cabazes, longe vão os tempos em que as latas de sardinha em conserva, não eram especialidades de lojas “gourmet”, nem havia tanto “especialista” em vinhos, fumados e destilados, e em que os rebuçados se colavam invariavelmente ao celofane. Podíamos dizer que, um dos símbolos do colonialismo português era o bacalhau, que mantém a tradição nas novas gerações de angolanos, como a herança saborosa de um período cada vez mais esquecido da história. Aqui cabe referir que o bacalhau português é inigualável pois há povos, como os britânicos que o comem fresco, frito e sem azeite!
Mas o verdadeiro ex-libris do sistema colonial português, era o “capacete”, que era um garrafão de cinco ou dez litros, com o gargalo envolto numa camada de gesso, que era um certificado duvidoso de inviolabilidade, de vinho do Dão ou do Cartaxo, pois nesses tempos nem Douro nem Alentejo, e as mixórdias de vinho verde Lagosta, Casal Garcia e Gatão o máximo que conseguiam era dar uma enxaqueca terrível!
Macieira 5 Estrelas, vinhos doces abafados, aguardente “Paraíso”,a “D´uvas Portuguesas da casa” da casa Abel Pereira da Fonseca. Essa casa vinícola, já desaparecida, depois de um efémero reinado do vinho “Mosteiro”, proveniente do Brasil no fim dos anos 70, apareceu com um “Sanguinhal”, que convenhamos era para efeitos de uma cirrose, bem mais brando, do que o temível “Morteiro”,como era conhecido no léxico dos que a ele tinham direito e que tanta história deixou na cidade durante um determinado período entre o 1º Congresso do MPLA, e o 1ªCongresso Extraordinário do MPLA em 1980.
Recuando à década de 50, lembro-me de ouvir falar de um tal Porfírio Martins, um mágico perfeccionista na arte de baptizar o vinho.
Em altas horas da noite, o Porfírio escolhia dez barris mais cheios, perceptível com o chocalhar, depois de os deitar. Com uma chave de fenda, retirava o selo metálico que protegia o batoque, ou seja, a rolha que tapava o orifício por onde era introduzido o vinho, batendo em círculo com um martelo e um pano, até o batoque saltar e não ficar nenhuma réstia de que houvera violação prévia; Dois litros de álcool puro e oito litros de água trocava-se por igual “litrada” de vinho, já de si de discutível qualidade. Era o melhor de todos, e se houvesse seriedade na atribuição de licença profissional, ele seria um mixordeiro de 1ª classe. Não passou de um mediano “fubeiro”!
Um caso bem demonstrativo, em que a escassez de oportunidades impedem grandes voos!

Fernando Pereira
13/12/09

4 de dezembro de 2009

“E o canto do não, dobrou!”/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda 4-12-09




Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário./ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável. / Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho o meu emprego/ Também não me importei. / Agora estão-me levando / Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)

Comecei esta crónica com um poema de uma das poucas referências que trouxe da “idade da razão” e que vou mantendo, quase como espólio, nestes anos que preenchem a “razão da idade”.
Guardei sempre de Brecht alguns versos para ilustrar situações e esta “Do rio que tudo arrasta/ Se diz que é violento. / Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.” tem sido a recorrentemente utilizada nas mais variadas ocasiões e, pelos vistos, tem que ser mais lembrada que o cartão de débito ou crédito.
Não vou falar de Brecht, porque, de certa forma, sou demasiado “possessivo” para o partilhar, mas vou dar um pouco de ruído a gente aparentemente silenciada.
Daniel Filipe (1925-1964) foi um dos poetas cabo-verdianos de pouca obra mas profícua e importante para muitos da minha geração. A sua “Invenção do amor” era para muitos de nós “um cartão/ que o amigo maninho tipografou/ por ti sofre o meu coração/ num canto ‘sim’/ noutro canto 'não'/, como estava no “Namoro” de Viriato da Cruz. Era o livro que dávamos a alguém, esperando receber o seu amor em troca ou, não sendo possível, pelo menos uma atençãozinha de “sua parte”. Ainda hoje tenho um que me devolveram e ainda bem porque já não se encontra à venda em lado nenhum. Há um disco de Mário Viegas, reeditado recentemente em CD, notável pela força do poema, reforçado pela declamação virtuosa e talentosa do actor. Combatente da ditadura salazarista, anti-colonialista, Daniel Filipe foi cedo para Portugal onde estudou. Preso e torturado pela PIDE, regressa a Cabo Verde onde dirige jornais, morre precocemente, ignorado e esquecido por todos. “Pátria, Lugar de Exílio” é outra das suas obras poéticas de tomo que, de certa forma, me faz lembrar muito dos poemas de outro “espoliado de pátria”, Jorge de Sena.
Houve um homem em Luanda que, entre muita coisa, me falava e que me fez falta ouvir mais, e que me deu a conhecer Daniel Filipe: Felisberto Lemos.
Esse infatigável lutador anti-fascista, divulgador cultural na sociedade colonial, a quem Manuel Alegre chamou o “Livreiro da esperança” foi, durante décadas, até à sua saída em 1977, o homem a quem todos recorriam para terem o livro que a censura e o poder colonial proibiam, num verdadeiro opróbrio à seriedade e à discussão liberta e tolerante das ideias.
Foi para Angola depois de ter sido expulso da Coimbra Editora por motivos políticos e é na Lello, em Luanda, que é acolhido, onde mantém viva uma tertúlia e permanece fiel aos seus princípios, com uma coluna vertebral direita, não se sujeitando à mediocridade, resistindo à quietude moral e desafiando a mentalidade medíocre e passiva.
Regressa a Coimbra, depois de expulso de Angola, em circunstâncias nunca esclarecidas, acolhido inicialmente na Atlântida, transferindo-se para a livraria do “Jornal” apoiado por Beça Murias, José Carlos Vasconcelos e o malogrado Fernando Assis Pacheco e, já no fim da sua vida, pela amizade de Joaquim Machado na Novalmedina. O Felisberto da Lello nunca se queixou de nada, nem de ninguém, assumindo sempre Angola com o respeito que não vejo em muitos angolanos com responsabilidades. Foi confrangedora a forma como Felisberto viveu os seus últimos anos, com a saúde a deteriorar-se e sem recursos que lhe valessem. Quando morreu, foi a consternação generalizada porque foi um homem de grande carácter que desapareceu e que ajudou muitos a formarem as suas convicções e a lutar por elas, dentro do primado da liberdade, da democracia e de uma sociedade mais igualitária.
Brecht, Daniel Filipe e Felisberto Lemos eram diferentes em muitas coisas, a poesia e a vida coerente junta-os!
Há homens que são capazes/ de uma flor onde/ as flores não nascem/
Outros abrem velhas portas/ acendem nas praças uma rosa de fogo./
Tu vendes livros quer dizer/ entregas a cada homem/ teu coração dentro de cada livro.
Manuel Alegre, Livreiro da Esperança - a Felisberto Lemos


Fernando Pereira
25/11/09

27 de novembro de 2009

Volfrâmio/ Ágora / Novo Jornal / Luanda / 27-11-09



Volfrâmio
Fui recentemente a Londres, e enquanto aguardava em Heathrow pelo avião de regresso, deambulando entre as lojas do aeroporto, vejo uma portuguesa radicada em Angola, que apenas conheço pela sua contínua participação em eventos e presença em revistas “cor-de-rosa” ,tão em voga no mercado emergente angolano.
Na loja da “Shwarovski”, insistia que queria uma coleira para a sua cadelinha, pois já tinha vários modelos da referida marca. Não sei se a chegou a comprar porque entretanto saí da loja, já que a conversa entre a “colunável”, e a sua intérprete era no mínimo soez.
Mais uma ilustração do trabalho que o jornal “Expresso” e a SIC fizeram recentemente sobre os “gostos apurados dos angolanos”, e que terá provocado alguns engulhos. Ouvimos, vemos e lemos muito sobre o assunto, e basta ver a pagina de anúncios do Jornal de Angola, para esclarecer, quando: “Vende-se vivenda, com gerador, blá, blá, e com garagem e quintal para cinco carros”!!!
Todas estas manifestações ostensivas de novo-riquismo, que naturalmente acompanha estes períodos de rápido crescimento económico, aliada à muita facilidade em possuir dinheiro, acabam por propiciar a aquisição de bens tangíveis e luxuosos, e transformar a sociedade numa verdadeira ficção, durante um limitado período de tempo.
Sei talvez, porque é que hoje me voltei a lembrar, do grande mestre das letras portuguesas, Aquilino Ribeiro (1885-1963) homem indómito no combate à injustiça, que lhe valeu várias vezes a prisão e o exílio. Em 1943 saiu o “Volfrâmio”, que é a imagem do Portugal rural, iletrado e atrasado, que de um momento para o outro com a II guerra mundial, vê o volfrâmio das terras de paupérrimos recursos, valorizado, permitindo que o dinheiro começasse a jorrar a ritmos nunca previstos nas aldeias do interior do território.
A obra, escrita por um homem com uma verve inigualável nas letras lusófonas, faz a descrição minuciosa, do ridículo desse período fugaz de abastança no “Portugal dos tamancos” , e os gastos em festas, verdadeiras loas ao bacoquismo, em carros que as pessoas nem faziam ideia sequer como trabalhavam, mas que punham na loja, a par do burro ou da junta de bois, não longe do porco para a matança, no jogo, artefactos de joalharia, nalguns casos pagos como tal, e mais não eram que pechisbeque, roupas caras e meretrizes, mandadas vir de Espanha para volúpias, pouco coincidentes com os códigos sexuais restritos da moral católica.
Aquilino Ribeiro foi um escritor com enorme capacidade ao colocar o seu virtuosismo, na “denuncia do que pensa e sente a gente certa”(Ary dos Santos 1937-1984), pelo que “O Volframio” fosse uma obra a ler e talvez fazer exercício de “estudo-comparado” com a situação que se vai vivendo, e que também pode ser mesmo uma situação passageira num percurso evolutivo de uma sociedade, que ainda busca valores que irão reger a sua vivencia colectiva.
Mudando de assunto, li o livro de José Milhazes, “Angola, o princípio do fim da União Soviética”, um título demasiado pretensioso para quem constantemente nos diz ao longo do livro, que os documentos importantes ainda estão arquivados e mantidos secretos. Ficamos a aguardar que os abram, para saber se os poucos depoimentos no livro coincidem.
Milhazes como eu, e muitos outros acreditámos num projecto de sociedade, que ainda se afigura cedo para se retirarem conclusões definitivas, embora nunca tenha acreditado que “o Muro de Berlim servisse para evitar que as pessoas de Berlim Ocidental fossem a Berlim Oriental (ou a Republica de Pankow, como dizia a direita europeia) roubar o que elas lá tinham”, conforme cheguei a ouvir a um ortodoxo comunista. Sobre isto, talvez fosse bom ver o “Good Bye Lenine”, esse magnífico filme de Wolfang Becker de 2003!
Em jeito de lembrete final, não deixem de ir à apresentação do livro “Tibete em África”, da minha amiga Margarida Paredes, no Chá de Caxinde às 18, 30h do dia 3 de Dezembro!

Fernando Pereira
22/11/09

20 de novembro de 2009

Esgravatar II/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 20-11-09



Esgravatar (II)
Tentava tanto quanto possível não usar, mas por vezes, invocando superiores interesses de alguma coisa, lá tinha que participar no uso da gravata, que posso dize-lo, nem o nó sei fazer, pedindo sempre ajuda a alguém.
O hábito é tão limitado que certa vez num jantar no Panorama, na circunstância da assinatura de um acordo de cooperação com a então URSS, no domínio da Educação Física e Desportos, eu apareci de fato e gravata, sapatos a brilhar, e quando me vou preparar para sentar nos momentos que antecedem o jantar, reparei que me esquecera de colocar as meias, pois não era hábito usá-las; Quedei-me de pé até irmos para a mesa, onde a toalha poderia ocultar os meus tornozelos desnudados, e sempre a puxar as calças para tentar tapar os sapatos. Inventei uma desculpa, para não ir à discoteca, e lá me pirei do repasto, que não estava a correr bem.
Num desses jantares de fim de trabalhos de assinaturas de tratados, houve um que por muito que viva nunca esquecerei. Era a assinatura do acordo bianual de cooperação com a RDA, e o jantar final foi no Costa do Sol. Levei gravata, fato, meias, enfim ia “formatado” para a ocasião. O Rui Mingas ia cumprindo cabalmente as suas obrigações de bom anfitrião, e em determinada altura eu fiz uma coisa que raras vezes faço, porque sinceramente não tenho jeito rigorosamente nenhum: contei uma anedota!
A intérprete ia traduzindo o meu português para o alemão, e o Presidente do INDER da RDA ia ouvindo. A anedota era típica das do Reader’s Digest, empresa que me dá uma certa alegria saber estar à beira da falência, por antipatias ideológicas já antigas.
” No Muro de Berlim estavam duas crianças, uma de cada lado; A do lado ocidental todos os dias dizia: Não tens carros bons, não tens brinquedos, não tens casas aquecidas, etc. ao que a do lado oriental replicava que não tinha desemprego, tinha saúde e ensino gratuito, etc.. Isto repetia-se até que um dia a criança do ocidente trouxe laranjas, e começou a dizer: Não tens laranjas, não tens laranjas, ao que o outro meio embatucado replicou: Tenho Socialismo. A criança do ocidente chega a casa e conta ao pai, e o pai diz-lhe: Diz-lhe que hás-de ter socialismo. No dia seguinte ei-los no muro e voltou a ladainha da véspera com o ocidental a dizer que não tinha laranjas, o outro a dizer que não tinha socialismo, o de Berlim ocidental a lembrar-se o que o pai disse: Hei-de ter socialismo, ao que o de Berlim oriental com um ar triunfante replicou: Quando tiveres socialismo não tens laranjas!!”
Escusado será dizer qual foi a reacção da intérprete, porque ela nem sabia se havia de reproduzir o que eu havia contado, perante o olhar malandreco do Sardinha de Castro, Paulo Murias, Espírito Santo e o riso diplomaticamente contido do Rui Mingas. A verdade é que o convidado aceitou com disfarçada fleuma, mas não deixou de me explicar as virtudes do socialismo na RDA, o que foi muito incomodativo diga-se em abono da verdade. Vinte anos depois da queda do muro, gostava de perguntar aos visitantes se vem laranjas todos os dias!
Já que se fala de indumentárias e acordos, fui por vezes advertido, ainda que com a sua proverbial bonomia, de que deveria ser mais formal no vestir quando havia visitas ao ministério, por parte do Rui Mingas, e tudo girava em volta da” torturável” gravata.
A minha convicção é que se banalizou o uso do fato, e as características do clima africano desaconselham o seu uso quotidiano. Obviamente que não gostamos de ver um locutor na TV em mangas de camisa, mas já não me escandaliza que um repórter de rua vá fazer o seu trabalho de forma mais informal, sem que para isso seja negligenciada a sua apresentação.
Dizia um amigo, quadro dirigente de um ministério, que saiu uma circular a recomendar o uso generalizado do fato e gravata, e o paradoxal é que havia esgotos a céu aberto à entrada e as casas de banho exalavam um fedor, que nem o ar condicionado dos gabinetes conseguia dissipar. Uma questão de prioridades julgo eu!
Desculpem a esgaravata dela, mas o comentário do leitor não me deixou indiferente, e aproveitei a boleia.

Fernando Pereira
5/11/09

13 de novembro de 2009

Esgravatar/Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 13-11-09



Esgravatar (I)

Numa das últimas edições deste jornal, vi um comentário de um leitor, sobre a indumentária, e a parafernália de adereços, que as pessoas se habituaram a usar, para tentarem mostrar estatuto, obrigando-me a concordar totalmente o comentário do leitor.
Nunca gostei de usar gravata, e nos lugares quentes, este adereço torna-se num perfeito instrumento de tortura, e um acumular continuado de odores que perturbam qualquer pituitária empedernida. A gravata foi utilizada pela primeira vez, por mercenários croatas, contratados pelo exército francês de Luis XIII e Luis XIV na guerra contra a Alemanha, em 1636.Segundo reza a história, esse regimento de cavalaria foi chamado de Royal-Cravate, pois croata escrevia-se, numa das suas formas, Krawat.
Confesso que poucas vezes a tenho usado, e quando o faço sinto-me perfeitamente constrangido, por muito informal e descontraído que seja o ambiente.
Quando hoje vejo nas ruas de Luanda, saltitando entre buracos e água esverdeada onde voam varejeiras de dorso azul, os engravatados a suar em bica, com os reluzentes ouros, desconsigo evitar uma ainda que comedida gargalhada, pois são autenticas árvores de Natal em movimento urbano, tal a quantidade de penduricalhos.
Confesso que gostava do “safari”, um fato que ainda por cima tinha muitos bolsos, o que dava um jeito enorme, onde conseguíamos escolher tecidos leves e de cores claras, o que nos dava alguma comodidade, para além de ser um fato que me traz alguma nostalgia, desses tempos de tanta certeza e propósitos simples e sinceros.
Fui desde pequeno, um mártir com a gravata, e desde muito novo a minha relação com o fato e a gravata nunca foi muito boa. Tinha para aí os meus sete anos, quando foi inaugurada a Igreja da Sagrada Família, e como em minha casa havia por parte da minha mãe devoção a esmo, lá fui vestido num fato feito a preceito por um alfaiate, que havia ali para os lados do Município, e que hoje aparece recorrentemente como “estilista” de renome. Fui lá três vezes provar o fato, o que de certa forma me aumentou o sofrimento, e a má vontade foi sendo adquirida.
A missa era demoradamente cantada e eu com os meus níveis de glicemia a baixar, com uma gravata de elástico a sufocar-me, um calor tenebroso, “numa camisa de doze varas”, a meio do evento desmaiei aos pés do governador colonial Silvino Silvério Marques, e terei alterado o protocolo, já que mesmo a veneranda figura do Tomás, presidente da república ficou muito preocupado. Ainda hoje estou para saber, se foram estes os meus quinze minutos de fama como diria Andy Warhol!
Em 1969, depois de viver um ano em Lisboa, vinha para Luanda no paquete “Infante D. Henrique”, e na primeira noite ao jantar, em que iria conhecer os meus parceiros de mesa, sou impedido de entrar na sala de 1ª classe porque não ia de fato e gravata. Já estava tudo na sala, e acabei por voltar para o camarote e pedir que a refeição me fosse lá servida, tendo que comprar esses adereços no Funchal onde o barco aportou no dia seguinte. Depois de me fazerem o nó passei a jantar com fato e gravata até ao fim da viagem, com umas nódoas de permeio, pela inabilidade que tenho com o uso da indumentária.
No Liceu Salvador Correia faziam festas de finalistas e saraus, e lá se obrigava a farpela, mas aí era pôr para passar a porta, e o decente pólo dava para a noite toda.
(CONTINUA)

6 de novembro de 2009

5º Ano de Praia/ Ágora/ Novo Jornal /6-11-09



Numa viagem recente ao Lobito, vi no início da Restinga, provavelmente a melhor denominação de uma casa de import-export no País. A casa localizada na Av. de Moçambique nº 4, tem o pomposo nome de “5º ano de praia”, que de facto é de uma originalidade enorme, e mesmo que não venha a ser uma sociedade com grande futuro comercial, ficará indelevelmente ligada ao léxico comercial da cidade.
Já que falamos em nomes de estabelecimentos comerciais, e recuando no tempo, o que vemos é que dos anos 40 ao fim dos anos 60, o nome mais apetecido para qualquer estabelecimento comercial era Império, e caso não fosse possível algum correlativo, tipo Imperial. No dealbar dos anos 70, já não dava grande emoção o nome, pois o estertor presumia-se próximo.
Houve o Salão Império, cabeleireiro afamado (antes da concorrência das cabeleiras postiças, do ainda não BANIF Roque), ao pé do actual MIREX, a foto Império, perto da Mutamba, o cine-Império, hoje Atlantico, a sapataria Império na baixa, o Hotel Império por cima do Centro Aníbal de Melo, que já foi o CITA e as primeiras instalações do Banco Comercial de Angola, em suma um conjunto de Impérios que se espalhavam de Cabinda ao Cunene, na esteira do Império do Minho a Timor.
Havia, onde hoje está o canibalizado Hotel Turismo, perto da Senhora dos Remédios, uma casa muito bonita que foi em tempos o restaurante Império, orgulho da família Oliveira, e que não tinha nada a ver com a cervejaria Imperial, situada até meados dos anos 60 na marginal, no local onde esteve a companhia russa de aviação Aeroflot.
O Zé Oliveira, um colono que depois de vários e bem sucedidos empregos, o ultimo dos quais no desaparecido Atlantic Palace Hotel, que teria merecido ser conservado para memória futura, já que era um dos poucos exemplares de arte nova na cidade de Luanda, tomou de trespasse o Império. Para ilustrar quais eram as dificuldades de um industrial de hotelaria nos anos 50 em Luanda socorro-me do depoimento de seu filho, José Carlos Oliveira: “Os artigos finos para a confecção de refeições vinham especialmente de três conceituados importadores: O Joaquim Valente, que tinha os enchidos e presuntos Mata, o leite em pó Klim, vindo dos EUA; a Casa Africana, com a sua afamada manteiga Zarco, recebida com frequência da Ilha da Madeira, o belo bacalhau e o fino azeite…; o Pinho e Arvela primava pelo melhor arroz, o melhor feijão manteiga, a marmelada e o excelente queijo da serra e flamengo, além de óptima mortadela; e a Royal conhecida pelo excelente fiambre e pasteis de nata; Todos estes estabelecimentos distavam escassas dezenas de metros uns dos outros, em plena baixa de Luanda”
Para abreviar o peixe era comprado aos pescadores da ilha do Cabo, ou aos “amadores de pesca” que usavam armadilhas de bordão, as “muzuas”, que eram assinaladas com bóias de mafumeira, num local onde hoje é o porto de Luanda, e que era uma língua de areia que ia até à casa de reclusão. Pargos, garoupas, linguados, cherne, carapaus eram as espécies que iam enriquecer a cozinha do Império.
Esta é uma parte da descrição que o José Carlos Oliveira, antropólogo, mestre em Estudos Africanos, faz desses anos 50, num livro interessante e muito pouco divulgado chamado “Comerciante do Mato”, prefaciado pelo Dr. José Carlos Venancio, ilustre catedrático da Universidade da Beira Interior, mas que talvez mereça uma leitura.
Este artigo sugere-me que um dia destes conte neste espaço, o que foram os grandes mixordeiros de vinhos e bebidas importadas numa determinada fase de Luanda, não esquecendo os peritos na contrafacção de rótulos, onde havia o maior mestre de seu nome Porfírio Martins.
Fernando Pereira
3/11/09

30 de outubro de 2009

Viva a Malta do Liceu/ Ágora / Novo Jornal / Luanda/ 30-10-09



Na sexta-feira passada fui à apresentação do livro “Viva a Malta do Liceu”, num anfiteatro a” rebentar pelas costuras”, no Campo Grande em Lisboa.
Graficamente apelativo, profusamente ilustrado, com depoimentos muito interessantes, este livro que marca os 90 anos da criação do Liceu Salvador Correia, é um trabalho profícuo e de enorme qualidade.
Dentro da sociedade colonial, o Liceu Salvador Correia, de forma ainda que timorata, conseguiu dentro dos seus muros, manter um espírito de solidariedade, de sã convivência e de tolerância, contrastante com a realidade no contexto da cidade, muito bem ilustrado no livro, pelos depoimentos de antigos alunos: Adolfo Maria, a socióloga Ana Saint-Maurice e o economista Ennes Ferreira.
O arquitecto José de Melo Carvalheira faz um artigo notável, sobre a evolução do projecto do Liceu, da autoria do arquitecto António Costa e Silva, que é quase uma “lição de sapiência”, sobre o que foram os tempos que antecederam o ar condicionado e a “espelhiocracia” que tem tomado conta da cidade nestes tempos de desenvolvimento, no caso, insustentado!
Guilherme Espírito Santo, Onofre dos Santos, Paula Pena, Paulette Lopes, Nicolau Santos, Justino Pinto de Andrade, Fernando Nobre, Fernando Vaz da Conceição, Carlos Cruz, Carlos Pacheco, Daniel Leite, Artur Queiroz, Adélia Cohen, José Eduardo dos Santos, Rui Clington, José Carlos Venâncio, Reginaldo Silva, Aníbal Russo, Joffre Justino, Margarida Mercês de Melo, José Carlos Machado Rodrigues, Marta Cochat-Osório, Susana Neto e tantos outros que seria fastidioso enumerá-los todos, escreveram depoimentos que mostram que pessoas de gerações diferentes, com percursos de vida pessoal, profissional e política divergente, conseguem juntar-se em torno de um espírito materializado em realizações de relevo, onde toda a gente diz presente, num espírito completamente descomprometido, solidário e assumidamente de convívio salutar.
O “Novo Jornal” está muito bem representado no livro, pelo Fernando Pacheco, Carlos Ferreira (Cassé), Jerónimo Belo e já agora por mim próprio.
A equipa deste livro, que saiu de uma colaboração entre a Associação dos Antigos Alunos do Salvador Correia e um conjunto de pessoas e entidades, é constituída por Miguel Anacoreta Correia, Anabela Simão, Eurico Simeão Neto, Jerónimo Belo, João Eloy, José Lobo do Amaral, José Maria Pimentel, Manuel Ennes Ferreira e Rogério Pacheco, que num curto espaço de dez meses, com uma colaboração entusiasta de muita gente, conseguiram pôr nas livrarias um trabalho de excelência.
Soube que muita gente em Luanda foi convidada a participar, mas a adesão foi mais contida que em Portugal, e gostaria muito que o meu amigo Pedro Guerra Marques, presidente da AAALSC-MYK, tivesse participado, já que representa uma geração do Liceu da Angola independente. O Pedro, para além de presidente da direcção da Associação, é simultaneamente filho e sobrinho de duas figuras de referencia do Liceu Salvador Correia, infelizmente já falecidos: O José Luís e Valério Guerra Marques, pessoas que a memória dos angolanos nunca devia olvidar, pela dignidade profissional, disponibilidade política e probidade sem mácula, que caracterizaram as suas vidas, vividas com grande entusiasmo.
Já que se fala em pessoas de enorme carácter, ex-alunos do Liceu Salvador Correia, é imperioso não esquecer o malogrado Marcolino Meireles, que foi pioneiro de todo este movimento em torno da ideia do associativismo do “Liceu”. Foi ele que deu o primeiro toque para reunir toda a gente em volta de uma mesa, as pessoas reencontraram-se, e desde aí os encontros multiplicaram-se, os eventos sucederam-se e retomou-se o espírito do “Liceu”. Marcolino Meireles foi uma pessoa que dedicou toda a sua vida ao mais difícil: Juntar as pessoas e galvanizá-las para causas! Fê-lo enquanto dirigente da Federação de Xadrez, enquanto fundador e primeiro presidente AAALSC-MYK, e mesmo limitado pela a doença que o vitimaria, ainda lhe sobrou força bastante para criar uma associação que conseguisse meios ao diagnóstico precoce do cancro.
Por tudo isto Marcolino Meireles, a eterna gratidão de todos!
Fernando Pereira
27/10/09

25 de outubro de 2009

A emenda vem do ouvido, o juízo da multidão/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 23-10-09




“O que faz uma nação grande não é tanto os seus grandes homens, mas a estrutura dos seus inumeráveis medíocres”
Ortega Y Gasset (Madrid 1883-1955)
A propósito de um vídeo de uma multifacetada actriz brasileira, Maitê Proença, com talentos sublimados há tantos anos, levantou-se um coro de indignação que há muito se não via por terras de “além ar”(Portugal).
Vi o vídeo, que é uma parte de um programa “Saia Justa” do canal de cabo, GNT, e sinceramente a única coisa que consegui, foi mesmo encontrar alguma similitude na forma como Angola e os angolanos são tratados na blogosfera por alguns expatriados que falam o português, e que trabalham em Angola, de forma recorrente.
Só me apetece citar Eça de Queiroz, que no fim do século XIX, e ainda o número dos países que falavam português no mundo se limitava ao Brasil, dizia:” O brasileiro tem o defeito dos portugueses só que dilatados pelo calor”.
Desapetece-me ter que vir aqui, usar os estafados argumentos de um e outro lado, sobre a forma algo ignara como por vezes se embeiçam as partes envolvidas, mas a realidade é que o angolano pode ter muito defeito, pode dizer muito mal de tudo o que é seu, mas detesta que escarneçam das suas idiossincrasias colectivas.
Tudo isto me fez recuar no tempo, e resolvi reler um dos poucos exemplares que existem de literatura colonial, “ O Velo de Oiro” do escritor Henrique Galvão. Quando se diz literatura colonial, procura distinguir-se do que depois se apelidou de “literatura ultramarina”, que teve um serviçal permanente, Amândio César; acolitado por uns quantos apaniguados ideológicos, como Forjaz Trigueiros, Joaquim Paço de Arcos e outros.
Henrique Galvão (1895-1970) era um integralista indefectível, foi governador da Huíla, inspector superior do Ministério das Colónias, Secretário da Exposição Colonial do Porto, Director da Emissora Nacional e depois disso tudo intransigente opositor de Salazar, o primeiro homem no mundo a desviar um avião por motivos políticos, assim como a figura central do desvio do paquete português “Santa Maria”, que para além da denúncia do regime salazarista (Salazar, que tem como seu maior panegírico, com visibilidade, Jaime Nogueira Pinto), terá tido uma enorme importância, senão determinante, no levantamento de 4 de Fevereiro de 1961.
“O Velo de Oiro” (1931) é uma obra que deveria ser reeditada em Portugal, e devia ser lida pelos portugueses que demandam Angola na busca do dinheiro fácil, ou na procura de resolver os problemas que deixaram noutros lados, e que nalgumas circunstâncias só os agravam! É curioso como é que um livro escrito há 73 anos, tem tanta actualidade, pois “ o sonho que comanda a vida”, nem sempre tem um final razoável, e raras vezes um final feliz. “ O Velo de Oiro”, é basicamente a história de Rodrigo que embarca para África atraído pelo enriquecimento fácil, buscando muito dinheiro e pouco trabalho, e toda a narrativa é construído nas ilusões e desilusões numa África, que nada tinha a ver com o que ouviu e imaginava na sua aldeia distante.
Henrique Galvão ainda tem outro dentro da mesma sequencia, “O Sol dos Trópicos” (1936), mas já contextualizado de outra forma, talvez mais parecido com uma intervenção de Lobo Antunes na fase do “Esplendor de Portugal” ou o seu quase ignorado livro “As Naus”, uma critica muito conseguida ao colonialismo, socorrendo-se das figuras históricas, tão ao gosto da ideologia corporativista.
Há um provérbio popular umbundo que diz: “Ndao lia esila ku ka pohgolole. Ci kasi oko, haiko ci kasi oko”, que quer dizer mais ou menos “não devemos esperar escapar às dificuldades, indo para outra aldeia!
Gostava de poder integrar aqui, porque julgo pertinente no enquadramento do que se tem escrito, a obra de Gilberto Freyre, adaptada às circunstâncias de hoje, e a todo este movimento de gente que faz do “aeroporto 4 de Fevereiro”, primeiro local de peregrinação da lusofonia.
Por razões de enquadramento gráfico, e como pode ser um tema servido de forma “requentada”, sem que perca actualidade, a ele havemos de vir mais cedo que tarde!
Fernando Pereira 14/10/09

16 de outubro de 2009

“ O futuro caminha para o passado”/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda /16-10-09



“ O futuro caminha para o passado”
Edgar Morin (Paris-1921)
Há muitas coisas perturbadoras na Angola de hoje, que devem até ter sido sempre perturbantes, só que a nossa idade, o empenho nas tarefas de construir alguma coisa que assumíamos nossa, ou mesmo exercícios de expiação continuados, dava-nos uma couraça de alguma complacência que hoje destoleramos.
Uma das coisas que me confunde seriamente nas viagens pelo interior, ou mesmo uma passagem por mercados e esquinas de comércio informal em Luanda, é a quantidade de carvão à venda.
Numa Angola onde os atentados ambientais são quotidianos, a desarborização em série para o fabrico do carvão, pode trazer consequências de alguma gravidade num futuro próximo, com o abate indiscriminado das árvores, sem que haja uma reposição que permita que zonas que conheci frondosas, sejam hoje paisagens de erva rasteira, e nalguns casos já um pouco tipo solo lunar, algo que não é alheia a rápida degradação do solo africano.
Podia falar da actividade despudorada de alguns madeireiros também, mas a realidade é que é matéria que não conheço o suficiente, para poder sustentar uma discussão, pelo que tudo que aqui escrevo fica em jeito de “bitaite”!
Ao longo das décadas de 60 e 70 o Caminho de Ferro de Benguela, plantou entre o Cubal e o Luau , 95.000.000 de eucaliptos, o que transformou Angola no segundo território do mundo com maior numero de eucaliptos plantados, só ultrapassado pela Austrália, de onde a espécie é originária. O CFB fez esta plantação com o objectivo de utilizar a madeira como lenha, já que era substancialmente mais barata que o gasóleo.
A verdade é que esta enormidade de eucaliptos, que nunca foi avaliada em termos ambientais, levantou logo outro tipo de perspectivas de negócio, que passaria pela substituição da obsoleta fábrica de papel do Alto-Catumbela, através do seu reequipamento por maquinaria de última geração. A fábrica, com tecnologia sueca estava encaixotada para embarcar para o Lobito em 1974, mas com a degradação da situação militar, acabou por ser instalada na Figueira da Foz no dealbar dos anos 80, a Soporcel, ao tempo o maior fabricante de pasta de papel da Europa meridional.
Já que se falou em Caminho de Ferro de Benguela, que hoje está a ser reabilitado por empresas chinesas denegrido por certa mujimbice estulta de Luanda, com o argumento que” os chineses nada percebem de comboios (!!!)”,podemos dar um olhar rápido sobre estes1348Km de linha, para além de 301 Km de ramais (Cuima por exemplo).
O CFB surge objectivamente como uma necessidade de embaratecer, em termos de transporte os minérios do Shaba no Congo. Para o porto da Beira a distancia era de 2735km, bem menos que a distância a Capetown (3965km), a outra alternativa.
Não vou entrar em pormenores sobre a história do CFB, que em 2001 passou na totalidade para a posse do Estado Angolano, conforme ficara previsto na sua adjudicação em 28 de Novembro de 1902, mas sim lembrar que o Lobito de hoje deve a sua existência ao CFB, à população de Benguela que queria um lugar menos insalubre e ao comércio da borracha no fim do século XIX.
Benguela era uma sonolenta vilória, onde o tempo passava para passar o tempo, e os construtores ingleses do CFB quando ali chegaram deparam-se com “quase nada”, e como tiveram que trazer tudo, decidiram fazê-lo no referenciado Lobito, onde as águas da sua baía iriam acolher um dos melhores portos da África ocidental. O Lobito era uma língua de areia com choupanas de pescadores, local de alguma “pirataria”, conhecido pela Catumbela das ostras, ou a Catumbela da água salgada.
Começaram a construir armazéns, cais acostáveis, instalações administrativas, casas dos encarregados e empregados, hospital, serviços sociais e locais de lazer e desporto; O Lobito Spots Club, de instalações modelares, era um lugar de eleição no Lobito, mas também um dos locais que não procurava esconder a segregação racial e social da sociedade do Lobito ao longo de décadas, muito diferente da Benguela crioula.
O Hotel Terminus, com construção iniciada nos anos 20 é o único hotel angolano que tem características que o podem colocar como um hotel de charme em África, pois a sua construção obedeceu a características muito peculiares, e no seu interior respira-se uma atmosfera de histórias múltiplas de viajantes, andarilhos, aventureiros, gente normal, num enquadramento arquitectónico único no País.
È sempre muito bom ir ao Términus, e apesar de terem desaparecido alguns murais do Neves de Sousa e algum mobiliário que me habituei a ver desde miúdo, tudo faz voar a minha imaginação.
Se passarem por lá vejam as fotos das paredes e recuperem um pouco o “reviver o passado no Lobito”!

Fernando Pereira
9/10/09

10 de outubro de 2009

Anatomia a som de caixa/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 9-10-09


Aleixo de Abreu, médico alentejano licenciado em Coimbra, vem para Angola em 1594, como médico pessoal de Furtado de Mendonça, nomeado por Filipe I, governador de Angola.
Durante os quinze anos em que esteve em Angola, o licenciado tentou estudar dois flagelos horríveis, o mal de Luanda e o bicho. Para o primeiro os barbeiros e curandeiros, tentavam encontrar a cura, já o segundo a mezinha era beber todas as madrugadas um cálice de aguardente.
O mal de Luanda era o escorbuto, como provou Aleixo de Abreu no seu livro sobre enfermidades tropicais, e o bicho era uma doença intestinal originada por vermes, uma “rectite epidémica gangrenosa” como hoje pode ser dito.
O livro escrito em latim e traduzido para castelhano tem o título completo: Tratado de las siete enfermedades, de la inflammacion universal del hígado, zirbo, piloron e riñones, y la obstrucion, de la satiriasi, y fievre maligna y pasion hypocondríaca. Llena otros três tratados, del mal de Loanda, del guzano, y las fuentes e sedades, e é publicado em Lisboa em 1623, tornando-se o primeiro tratado de medicina tropical publicado no mundo.
Já que se fala em medicina, é bom que se saiba que a 11 de Setembro de 1791, na folha 2, verso, do livro V do registo de bandos, Anos 1790-1793, o coronel de cavalaria Manuel de Almeida e Vasconcelos, a propósito da chegada a Loanda do “ilustre médico formado nas melhores academias europeias”, Doutor José Pinto de Azevedo, decidiu abrir uma “escola com aula de medicina prática, com instruções anatómicas, em benefício de todos aqueles que quiserem seguir a profissão”.
Terá sido provavelmente a primeira tentativa de criar uma “faculdade de medicina” em Luanda, pois pouco se soube da sua duração para além da oficialização. Em 1845 é criada em Luanda uma escola médica, à semelhança de Goa, mas para além do decreto nada andou, e Angola teve de esperar pelo dealbar dos anos sessenta do século XX para finalmente ver instalada uma faculdade de medicina, nuns Estudos Gerais Universitários, que se transformaram em Universidade de Luanda.
Há uma história interessante sobre a criação dos Estudos Gerais Universitários, em que são intérpretes Salazar, Adriano Moreira ao tempo ministro do Ultramar, Galvão Teles, ministro da Educação, Veiga Simão, pela comissão instaladora da universidade de Lourenço Marques e André Navarro, da mesma comissão mas de Luanda. Veiga Simão, contou-me que entraram todos para uma sala escuríssima e gelada do palacete de S. Bento em Lisboa, instados a sentarem-se por Salazar, que ofereceu mantas a todos os presentes, num dia de fim de Inverno. Era um quadro surrealista com várias pessoas de mantas partilhadas sobre as pernas!
Começaram a conversar sobre o assunto que os levava ali, e tinha a ver com a instalação do ensino universitário nas colónias, em que Salazar enfatizava o discurso com “ a demasiada instrução que os terroristas poderiam vir a usufruir, e a criarem-se focos de tensão semelhantes às que se viviam em Portugal” (Recorde-se que ainda estavam frescas as grandes movimentações estudantis de 1962, que paralisaram as academias portuguesas durante um lapso grande de tempo). Todos contrariavam esta opinião de Salazar, com os cuidados habituais de não entrar em choque, com as opiniões do chefe supremo. A conversa ia fluindo, e entretanto Salazar levanta-se, e diz a todos: “Se querem dar cursos superiores aos pretos é lá convosco, mas também já não acho que seja tempo de insistir muito, pelo que podem sair daqui com a certeza que assinarei o decreto da criação dos Estudos Universitários em Luanda e Lourenço Marques”, como aliás acabou por ser assinado a 21 de Abril de 1962.
O contentamento era enorme, não partilhado pelo sisudo Salazar, e Veiga Simão era de todos o mais efusivo, pedindo a Salazar para telefonar para Lourenço Marques onde estava muita gente ansiosa por saber o desenvolvimento da conversa. Salazar, com aquela figura mista de seráfico e sardónico aconselha Veiga Simão: “ Senhor Professor, era bom começar a reduzir gastos de instalação, o telefone é caro e o telegrama faz o mesmo efeito”
Parte deste artigo foi feito com recurso ao livro de Ilídio Rocha. Portugueses em África, editado pelo Círculo dos Leitores em 1993.

Fernando Pereira
5/10/09

3 de outubro de 2009

Há cada latitude.../Ágora/ Novo Jornal / Luanda/ 3-10-09



No dealbar dos anos 70, era habitual na Europa os universitários fazerem o Inter-Rail, uma viagem pelos países que quisessem, com um bilhete que dava para um mês.
O bilhete era barato, mochila às costas, tenda partilhada com companheiros, um fogão camping gás, uma frigideira, uma leiteira, um prato e uma caneca de alumínio, um par de calças de ganga, várias t-shirts, um camisolão de lã, uma toalha, muita papa Cerelac, Nestum e leite condensado Moça, muito pouco dinheiro distribuído por tudo o que era buraco e uma bolsa de cabedal ao pescoço onde colocávamos o Passaporte e o cartão internacional de estudante.
As viagens de comboio são fascinantes, e quando são longas permitem toda uma série de sentimentos cruzados, aliados à contemplação, que o balançar sereno das carruagens nos traz num estado de completo desprendimento. Recordar Agatha Christie nos seus incontornáveis ‘4.50 from Paddington”, ou “Murder on Orient Express”, Zola em “La Bête Humaine”, “Desert Rails” de L.P. Holmes, Sepulveda no seu brilhante “ Patagónia Express”,Tolstoi, Remo Ceserani, Machado de Assis, Eça de Queirós entre tantos outros, é fazer o mundo com bonitas palavras escritas sobre carris.
Nessa viagem dormíamos nas viagens durante as noites nos comboios, nos lugares mais incríveis das carruagens, nas salas das gares, nos jardins públicos, às vezes nos parques de campismo e muito ocasionalmente nas pousadas da juventude. Não vou descrever minuciosamente essa viagem, mas que de facto deu para fazer coisas que nunca mais na vida tivemos oportunidade de fazer, durante vinte e poucos dias, num ambiente de grande companheirismo, de enorme solidariedade, e num querer conhecer o mais possível uma Europa, que para nós angolanos, era ao tempo de igual fascínio o que o Dubai é hoje para certos angolanos!
Nos canais de Amesterdão, estávamos sentados num cais a ver o movimento dos barcos e a comermos a nossa frugal refeição diária, e naturalmente falávamos alto sem cuidados com a linguagem. A determinada altura uma senhora que nos estava a observar, pergunta-nos num português quase perfeito, de onde éramos; Respondemos que éramos de Angola, e muito surpreendidos ficámos quando ela disse que conhecia muito bem Angola, e pelo que descreveu conhecia-a bem melhor que alguns de nós. A sua ligação a Angola, justificava-se pelo facto do irmão ser padre no Chinguar, tendo-nos contado algumas peripécias das suas visitas em Angola, acompanhamento adequado e sempre lembrado opíparo lanche, que nós já não tínhamos desde que arrancámos de Coimbra.
Rapidamente esquecemos este lanche, porque a viagem teve peripécias mais interessantes para recordar, mas a verdade é que este lanche provou ser providencial uns anos mais tarde, noutras circunstâncias e noutras latitudes.
Fiz pelo País, múltiplas viagens na discussão da carta do desporto angolano, e no estatuto das associações desportivas angolanas, acompanhado com o meu amigo, António Sousa Santos, insigne mestre do desporto que Rui Mingas em boa hora recrutou para a SEEFD. Uma dessas viagens foi ao Huambo e ao Kuito. No Huambo estávamos no hotel Almirante, um verdadeiro exemplo kitsch e a tresandar a Lifebuoy em todos os objectos, andares, ancoras, bombordos e estribordos, numa decoração delirante e a provocar uma hilaridade impossível de conter. Saímos de manhã cedo, “depois da camioneta de carreira”, porque assim se saberia se haveria impedimentos na estrada, e eis-nos num Fiat 128 a caminho do Kuito, tendo-nos limitado a beber um café e umas bolachas de qualidade duvidosa; Passámos Tcikala-Tchiloango, a pedra do Alemão, onde reza a história que se terá suicidado um alemão aí residente quando soube da derrota da Alemanha na 2ª guerra, Katchiungo, e numa curva apertada, por baixo de uma ponte do CFB, eis que aparece o nome da terra: Chinguar. Conheço algumas pessoas ilustres dessa terra como o meu amigo Orlando Ferreira Rodrigues e o Carlos Correia, físico, catedrático da Universidade de Coimbra, e acompanhante de viola do Zeca Afonso, mais conhecido por Bóris, pelas semelhanças com o actor britânico Boris Karloff ( 1887-1969).
Nesse dia lembrei-me do lanche de Amesterdão uns anos antes, e fiz questão de visitar o padre, que perante uma reserva inicial, ficou encantado ao saber em que circunstancias tinha conhecido a sua irmã. O padre Arnaldo convidou-nos para um lauto pequeno-almoço, que destoava do quotidiano daquele tempo, em que ele dizia que só não podia ser melhor, porque na semana anterior as “gloriosas Faplas tinham surripiado umas galinhas do galinheiro da paróquia (sic)”. Encheu-nos o carro de iguarias, como cestos de morangos que carregámos no regresso ao Huambo, e ainda tive o prazer de ouvir os agradecimentos do motorista ao padre, de forma reconhecida e repetida: “Muito obrigado camarada padre”! Passei por lá algumas vezes e sempre partilhámos o que havia para comer, e trocarmos conversas interessantes, o que não é fácil em mim dado alguma formação assumidamente anti-clerical.
Sei que o padre Arnaldo já morreu há muito, mas o Chinguar deve-lhe muito e deixou muitos amigos entre toda aquela gente, como posso testemunhar pelo conjunto de pessoas que sempre o relembram com palavras de saudade e embevecimento.
Amesterdam, foi uma das músicas míticas de Jacques Brel, que se fosse vivo teria feito em Abril deste ano oitenta anos! Também não o esquecemos!

Fernando Pereira
28/09/09

26 de setembro de 2009

Algumas Malhas que o Império Teceu/ Ágora / Novo Jornal / Luanda/ 25-09-09


Numa das recentes edições deste jornal, vieram um conjunto de artigos sobre a falência do projecto de Aldeia Nova, no município de Waku-Kungo.
Não me surpreende esta situação, pois em Waku-Kungo aproveitaram-se recursos físicos de um projecto que foi um sorvedouro de dinheiro no tempo colonial, sem contrapartidas, aliado ao conceito de kibutz, que em Israel se revelaram um fracasso económico e social, só mantido por questões de natureza política.
Na fase de arremedo socialista de Angola, e no ano da agricultura, resolveram fazer-se experiencias que não lembravam a ninguém, e também o fracasso económico foi uma evidência ao fim de pouco tempo, com experiencias búlgaras de discutível natureza até do ponto de vista do equilíbrio ambiental.
A Cela, tal como a Matala, foram uma “exposição do Portugal rural dos tamancos” nos trópicos, patrocinado pela propaganda do Império Colonial. Santa Comba, em homenagem ao sinistro Salazar, era o centro de um conjunto de aldeias, que começaram por sorver e talvez em premonição assim se há-de manter. No tempo colonial, não sei se por caturrice, por onirismo, por onanismo patriótico ou por laivos de nescialidade, insistiu-se nos colonatos do tipo do sec. XIX. Uma colónia Amish na África Austral, até que não devia ficar mal nos conceitos bafientos do centro decisório do Império! Sobram exemplos maus para não se bater na tecla errada de novo!
Já que começámos a falar de heranças más, lembro que uma que se perpetuou ao longo do tempo, e tem a ver com a entrava massiva de familiares em determinados lugares quando alguém da família ascende a uma estrutura de direcção. Contava-se nos anos 50, que no Porto do Lobito, entrou um funcionário superior de apelido Rato, e nos meses seguintes entraram quatro Ratos para esse serviço, tendo o director do Porto, perguntado “se com tanto Rato não seria melhor admitir um gato para dar conta desta rataria”!
Ainda no mesmo contexto, houve um governador-geral que polvilhou a administração pública de muitos afilhados, até que quando vagou o cargo de arcebispo, a piada que constava em Luanda era: “Bem, aguentem a vaga, tenho um primo seminarista lá na santa terrinha que está quase padre…”
Nos anos 40 circulava pouca moeda em Angola, e os comerciantes utilizavam o chamado “vale”, ou a caderneta de débito (ou “aponte”).
Um vale era um pequeno papel, situação aparentemente privilegiada para o devedor, pois podia perder-se com facilidade, onde escrevia: Vale 12 angolares, punha assinatura, a data e podia levar a mercadoria. O pagamento era para as “calendas gregas” , ou dia de S. Nunca.
Contava-se uma piada de que um comerciante não conseguia acabar com os ratos que lhe dizimavam a mercadoria no armazém. Eram segundo a terminologia oficial, colonos ratos. Eram espertos, vorazes e começaram a “explorar as riquezas do País”. Alguém o aconselhou a colocar um pedaço de queijo na ratoeira, mas como na década de 40 não se fabricavam queijos industriais, ele seguindo o processo mercantil em curso, colocou na ratoeira um vale onde escreveu: 1 queijo; No dia seguinte foi lá e estava no local, um vale que tinha escrito 1 rato.
Agradeço algumas destas histórias ao Luis do Chinguar, mas há uma que aconteceu comigo em N’Dalatando, quando lá fui a um casamento. Numa sala cheia de gente, chamou-me à atenção, um idoso, branco, vestido com um fato algo antiquado, e que destoava de todo da generalidade dos convidados.
Disseram-me que era Santos Diniz, um colono que terá sido dos maiores do norte de Angola no tempo colonial, e que resolveu ficar “porque já tinha saído da terra há quase 60 anos”. Depois de uma conversa interessante, já que tínhamos conhecidos comuns, ele pergunta-me: “Sabe, camarada Fernando Pereira, qual a diferença entre uma cobra e um cantineiro?”; Disse que não, e nem esbocei pensar nalguma resposta! SD disse-me então “A cobra não tem orelha para colocar o lápis”!
Sei que morreu passado pouco tempo, mas nunca mais esqueci esta conversa, com o dono dos “DINIZES” , onde conheci o Barrigana, grande guarda redes do FC Porto recentemente falecido, então treinador da equipa “que mais cerveja bebia em Angola”, pois deslocava-se num autocarro Mercedes ao Moxico, a Tombwa, enfim a todo o lado, já que só Luanda, o Negage e o Uige eram mais perto.
As malhas que o Império foi tecendo!

Fernando Pereira
20/9/09

17 de setembro de 2009

Lobito, Angola





Estas fotos foram tiradas por mim numa rua central do Lobito.
Uma das fotos, com a árvore pequenina na caleira foi tirada em Novembro de 1999. A outra foi tirada no mesmo local em Maio de 2009.
Parece que ao fotografar da primeira vez fui premonitório no que iria a acontecer!
A primeira foto ainda foi com máquina de rolo, a segunda já digital...


Fernando Pereira

O que interessa é a Associação! / Ágora / Novo Jornal/ Luanda/ 17-09-09



Quando titubeantemente, a então Republica Popular de Angola, dava os seus primeiros passos de uma independência sofrida, um grupo de portugueses cooperantes fundou no fim dos anos setenta, em Luanda a Associação 25 de Abril.
Eram portugueses progressistas, solidários e que partilhavam com os angolanos as dificuldades de um quotidiano de uma Luanda onde nada era fácil, e a frugalidade e a escassez andavam de braço dado.
Cadete Leite, Vasco Grandão Ramos, António Sousa Santos, Augusto Nelson Batista, Campos da Lito-Tipo e tantos outros, constituíram as bases de um projecto de intervenção cívica na comunidade luandense, e reconstruíram um espaço em ruínas, que se tem perpetuado, em frente ao portão da polícia nas traseiras da vetusta Lello.
Num bonito edifício de traça colonial do século XIX, com um pátio interior, entre paredes de pedra grossas, colunatas e madeiras exóticas, surgiu um local de encontro, um lugar de partilha e sobretudo um espaço de entusiasmo colectivo, pelos avanços de um País que teimosamente queria ser novo.
Era um local de boas tertúlias, em frente ao bilhar ou numa mesa com uma chávena de um descolorado café à frente, nas noites quentinhas de uma Luanda, que esperava calmamente o pôr do recolher obrigatório, que envolvia a cidade num manto de silencio.
Festas, folias, exposições, apresentações de livros ou só mesmo uma conversa, tudo se “apretextava” para nos deslocarmos à associação, onde os angolanos se sentiam em casa.
Eram tempos interessantes, e ainda hoje gosto de por lá passar, ver gente, comer e beber, e sentir que ali foi tudo construído com enorme voluntariado, quiçá mesmo militância em torno de valores de solidariedade e respeito entre comunidades que se estimavam.
Era para falar nesses tempos em que se importava pouco e importávamo-nos muito já que hoje, curiosamente importamos muito e importamo-nos pouco! Quando olhamos para uma blogosfera, para alguns locais em Luanda, em aviões, ou para os comentários quotidianamente feitos em praias e festas sobre Angola por parte de alguns portugueses e brasileiros, ficamos atónitos, tal a forma despudorada e soes como alguns escrevem, falam e publicitam Angola.
Tem total liberdade para o fazer, algo que se esquecem de referenciar, mas realmente acaba até por ser execrável ler e ouvir certa gente a falar do País que lhes mitiga a fome (desculpem o excessivo da expressão mas estou exasperado!).
Aos portugueses em Angola, não se lhes pede o que muitos portugueses fizeram pelo País, porque provavelmente tem uma formatação em que valores como a solidariedade e a militância, já não fazem parte sequer de um léxico quanto mais de uma prática quotidiana, mas pede-se-lhes algum comedimento, pois não é bonito insultar-se a casa de acolhimento, ainda que temporária.
Estão em Angola porque são precisos, e necessitam também de estar, por isso limitem-se a trabalhar já que são pagos para isso! Os cubanos, os chineses, os franceses, os russos e outras comunidades, trabalham tanto ou mais que os estrangeiros de língua veicular portuguesa, e não andam a inundar a blogosfera de que tudo que em Angola se passa é corrupção, miséria, nepotismo ou fartar vilanagem.
Este artigo é direccionado a um pequeno grupo de cidadãos lusófonos, não devendo tomar-se a nuvem por Juno, pois a crescente comunidade que fala português que escolheu Angola como País de trabalho, nada tem a ver com desvarios de alguns dos seus membros.
Vão até à Associação 25 de Abril, ali na baixa de Luanda e vejam que há coisas interessantes em Luanda, e esta sim, muito dignifica a lusofonia.

Fernando Pereira
14/09/09
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