REQUIEM
Já começo a estar num patamar da
vida em que há cada vez menos coisas que me surpreendam!
A semana passada “perplexei-me” com
a leitura do livro de Rita Garcia, “Luanda como ela era 1960-1975”. Desde os
tempos da Agencia Geral do Ultramar, ou da componente local CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola), que
não conseguia ver um trabalho com tantos encómios a uma cidade pintada de
branco. Foi o retorno ao “lava mais branco” onde a cidade branca era o paraíso
e onde os não-brancos eram apenas criados, músicos ou meros figurantes.
O livro
em termos gráficos é interessante, as fotografias estão bem enquadradas, tudo o
resto é um cantar loas a um modelo de sociedade em fim de festa, e que
curiosamente poucos se davam conta disso! Se tivesse que fazer um comentário ao
livro nos meus tempos do Liceu Salvador Correia, diria que era um “livro da
sanguitada”. Hoje estou mais brando na verve, e não teria feito este artigo se
hoje não tivesse lido uma entrevista da Rita Garcia à “Notícias Magazine” cheias
de lugares comuns, como no livro, mas referindo-se aos anos da guerra, em
Luanda, como "os doces anos em que o espaço não tinha fim e os dias
morriam devagar num paraíso tropical".
A
convicção com que fiquei, e note-se que li outros dois trabalhos da autora, foi
que a jornalista Rita Garcia não terá feito uma avaliação cuidada quando
resolveu fazer este livro, e provavelmente limitou-se a ouvir quem viveu Luanda
a olhar sempre só para o mar.
“ Luanda
como ela era 1960-1975” é o livro que o saudosista puro e duro poderá oferecer
aos seus filhos e netos no Natal, depois de pouco mais de quarenta anos a
reduzir Luanda à cidade do asfalto, e a esquecer as prisões arbitrárias nos
musseques, a segregação nos espaços públicos e o limitado acesso dos negros ao ensino,
entre outras coisas que aviltavam a maioria dos naturais da Luanda pintada de
cor-de-rosa esbranquiçado.
As
excelentes fotos que vão correndo ao longo do livro não deixam dúvidas sobre a
Luanda até 1975: Uma cidade construída para brancos viverem, divertirem-se,
trabalharem e esquecerem o dramatismo do que foram tempos coloniais, onde o
estatuto do indigenato e o cartão de residência iam segurando um grupo de gente
que “merecia o seu bocado de pão”, como dizia o poema do angolano Agostinho Neto.
As
comunidades brancas e negras viviam de costas voltadas. No Liceu Salvador
Correia, o mais emblemático do território, a percentagem de negros e mestiços
era ridícula comparada com os estudantes brancos. Posso dizer, eu que o
frequentei durante cinco anos, que nunca fui a casa de nenhum colega negro,
apesar de termos uma relação normalíssima nos bancos da escola. E esta era
apenas um dos exemplos do distanciamento na sociedade luandense, que não se
cingia ao Clube Naval, Nun’Álvares, Clube dos Caçadores, Barracuda, Mussulo,
Dongo, S. Jorge, Restinga, Tamar, Contencioso e outros lugares onde nos
esquecíamos de tudo o que se passava nos “bairros da terra vermelha”.
Carlos
Matos Gomes, militar reformado, autor de um conjunto de obras obrigatórias para
o estudo da guerra colonial diz: “Luanda pode ter sido inesquecível para muitos
e por muitos motivos, mas era caótica, ofensivamente desigual em todos os
aspetos, do social à urbanização esse é um facto e a prova de que, tal como Rio
de Janeiro, os seus autores tinham conseguido estragar o lhe era natural.”
Infelizmente em Luanda todos os trabalhos duros e mal pagos eram para os
colonizados e isso fica registado para a história e os seus combates no futuro.
Simultaneamente
ao lançamento deste livro, de que prefiro não perder muito mais tempo, estreou
em Lisboa o filme “Cartas da Guerra” de Ivo Ferreira baseado nos “aerogramas”
de António Lobo Antunes para a sua mulher durante os dois anos e meio em que
fez a guerra colonial em Angola. Ainda não vi o filme, mas li o livro e aqui no
NJ fiz ao tempo (25-3-2011) a crónica onde acompanhei as observações escritas
pelo então alferes Lobo Antunes sobre a “cidade inesquecível”.
Cá vai:
“Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da
baía...Que cidade horrível. É como passar um domingo em Benfica na esplanada
Estrela Brilhante, com o chão cheio de tremoços e de detritos. Uns negros
aleijados, arrastam-se a pedir esmolas, outros oferecem-me cinzeiros de
madeira, objectos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei vir
encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. Uns sujeitos sebentos, de
pasta, trocam escudos por angolares, com 12% a mais. Mas é tudo caro, tórrido e
feio.
...Ontem um amigo daquele outro médico afinal conhecido, levou-nos
a visitar a ilha, uma espécie de promontório com praias de um e outro lado,
casas, um clube de golfe. Uma espécie de Rodésia vista por um mestre-de-obras
de Tomar.
...Luanda está longe de ser uma cidade vivível: toda ela é
uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano, e
os brancos daqui têm todo o mesmo indefinível aspecto dos vendedores de
automóveis daí, de patilhas sem classificação social, camisas transparentes, e
mulheres tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem
inteiramente honestas. Os musseques são uma espécie de bairro da Boavista
ampliado, em que os moradores fossem todos jogadores do Benfica. Só a terra é
que é vermelha, como a areia dos estádios, e as noites cheias de murmúrios de
insectos e de folhas, mergulhadas num mormanço de suor.
O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias
de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que
nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo,
estamos aqui a pôr os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto
porque, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de
novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível
de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia pretensiosa, sem
categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado,
principalmente nos automóveis americanos, porque a maneira de vestir destes
tipos é absolutamente execrável. Não merecem a terra extraordinária em que
vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. Não há em Luanda absolutamente
nada que preste: as poucas estátuas que tem, ultrapassam em mau gosto tudo o
que se possa suportar, os edifícios são todos no género daquele em que mora o
Souto, e que para mim representa o paradigma da fealdade. É uma excrecência
absurda e estúpida. E estes tipos aqui acham Luanda um paraíso, uma espécie de
Rodésia em melhor. Não nos agradecem o nosso sacrifício por eles, e, no fundo,
tratam-nos com uma condescendência desdenhosa de brasileiros ricos. Que
diferença de Lisboa. Não se pode viver numa cidade sem passado. Estes tipos são
bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
Duas
visões, e eu que nasci e cresci em Luanda não me revejo em nada com a da Rita
Garcia, e pontualmente estou de acordo com a azia que impregna as cartas de
Lobo Antunes.
Fernando Pereira
3/10/2016
Recebi este comentário do Leonel Cosme, e por ser extenso não o posso colocar no local dos comentários.Coloco-o aqui pela relevância que tem! Publicado no Artes e Letras!
ANGOLA nas memórias das guerras modernas
Há anos que deixei de ler livros
sobre a chamada Guerra Colonial – que, conforme os tempos e as circunstâncias,
também foi chamada Guerra do Ultramar e Guerra de Libertação. O último que
ainda me mereceu um relance de olhos foi um trabalho da jornalista Rita Garcia,
S.O.S.Angola
– Os dias da ponte aérea, editado em 2011, do qual guardei uma
impressão positiva, não obstante o facto de a autora, nascida em 1979 e em
Lisboa, não ter feito parte directa da saga dos retornados. Baseando-se
naturalmente em memórias alheias e escritos sobre aquele evento ocorrido em
1974-1975, considero que, literariamente, produziu um trabalho respeitável.
Depois, escreveu mais dois livros, cuja publicação só vi noticiada, sobre “os
que vieram de África” e “Luanda como ela era-1960-1975”, este sendo
recentemente objecto de reparos num conceituado semanário de Luanda, Novo
Jornal, em recensão de um seu reputado colunista, nascido e criado em
Angola, Fernando Pereira.
Pese embora alguma reserva, logo
pensei: terá a autora, desta vez, seguido a tentação do sapateiro que foi além
da chinela? Se assim foi, terá navegado naquela nau aventureira do mau
jornalismo que, pela irresistível tentação do sensacionalismo, não acrescenta
nada de novo, repetindo o que está visto e sabido.
Concedo que é comum acreditar nas
palavras e memórias de quem não temos razão para duvidar. E que se aceite como
válida – como teorizou um comentador do último livro de António Lobo Antunes –
(…) “a palavra que se deseja longeva, ou seja, a sobrevivência da literatura à
passagem do tempo, às brancas que a memória possa ter no espetáculo da vida.”
Só que, tratando-se de literatura escrita em papel (digitalizada é outra coisa,
como sabemos), toda a prudência será pouca se pensarmos que com documentos,
bons ou maus, se faz história. Donde, em princípio, a prudência aconselha que o
testemunho de quem passou por Angola (por África, melhor dizendo), nela viveu
e, pressionado pelas vicissitudes da dita Guerra Colonial, teve de fugir
deixando tudo quanto exprimia o seu sentido de pátria (original ou adquirida) – ubi
bene, ibi pátria diziam os latinos – seja tomado como a “sua” memória e
não como a memória de “todos”.
Neste pressuposto, decidi avocar o
testemunho do consagrado escritor António Lobo Antunes, transcrito naquele
citado artigo de Fernando Pereira – significativamente intitulado “Requiem” –
que nas Cartas da Guerra dirigidas à esposa verte a sua diatribe por
Luanda (e Angola por envolvência) de oficial–médico do exército português
compelido para a Guerra do Ultramar. Respigo:
“O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de
fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que
nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo,
estamos aqui a pôr os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto,
mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de
novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível
de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia, pretensiosa, sem
categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado,
principalmente nos automóveis americanos, porque a maneira de vestir destes
tipos é execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo,
não a sabem, sequer, apreciar. (…) Não nos agradecem o nosso sacrifício e, no
fundo, tratam-nos com uma condescendência de brasileiros ricos. Que diferença
de Lisboa. Não se pode viver sem passado. Estes tipos são bem os descendentes
dos degredados e está tudo dito.”
Em minha opinião, nada desculpa tão errónea visão da
capital angolana e seus moradores obviamente brancos e da classe economicamente
privilegiada, manifestada logo na maneira de vestir e na posse de automóveis
americanos... Enfim, ”gente que vive sem passado, quais descendentes dos
degredados”.
Tolere-se que o militar compelido, por alegado
dever patriótico, a fazer e sofrer, no mato, durante dois anos, uma guerra com
que não concorda, acumule tensões psicológicas que distorcem até a visão da
realidade e o sentido das coisas. Mas não menos sofrido será o colono
culturalmente impreparado para compreender e aceitar os ventos de mudança que
lhe arrasaram uma vida conseguida à custa de muito trabalho, renúncias,
sacrifícios e, não raro, lágrimas. Para este, a Guerra é só uma, a despeito dos
rótulos, quer seja o de Ultramar,
Colonial ou de Libertação,
conforme respeite ao regime de Portugal, ao critério da ONU e à luta dos povos
colonizados.
Pois essa vida de “portugueses-outros”, que não poderá ter começado sequer
com a última geração dos “lançados” ou “degredados” em África (já o tinham sido
no Brasil, igualmente ao que acontecera, ainda no século XIX, com os ingleses,
franceses, holandeses, espanhóis e outros, expatriados para as colónias da
América, África e Oceania), não se confundem sequer com os “portugueses-novos”
que arribaram a Luanda, de fato e
gravata, vindos directamente da Metrópole, ostentando a sua classe montados em automóveis
americanos… O comum dos brancos naturais ou há muito residentes era uma vida frugal, casa alugada ou, se própria,
geralmente paga em prestações através de
cooperativas de habitação ou de crédito bancário. Não conheciam a
palavra aforro… Com o que lhes “sobrava” de um salário geralmente mediano
podiam, quando muito, comprar um carro utilitário também a prestações.
A meio da década de 50 começara o
“boom” do café e das explorações mineiras (os diamantes, o marfim, a cera e o
couro já vinham de trás) e, geridos em Lisboa, os primeiros negócios da
exploração do petróleo, logo a seguir impulsionados pela “abertura” do Regime
aos Planos de Fomento e à implantação da Banca privada. A última Guerra do
Ultramar tinha começado em 1961 e os novos descobridores de oportunidades
aproveitaram as marés para lançarem as suas naus… Então a população de Luanda
explodiu em número, qualidades e defeitos, originando os ricos-novos de várias
cores, fazendo jus ao provérbio quimbundo: Mu Luuanda, mu uauaba: mu izê mukûku, ubiluka ndua. (Luanda é boa: não
vem cuco que não se transforme em andua).
Vale registar, para quem não saiba ou
se esqueceu, que na capital angolana – segundo o investigador Francisco Lopes
Roseira -, em 1832, dos seus 5.059 habitantes
966 eram elementos das instituições religiosas, militares do
Destacamento de Portugal e funcionários públicos em comissão de serviço. Os
desterrados por delito comum estavam distribuídos por presídios criados em
várias regiões, de Norte a Sul, devendo-se a eles, em muitos casos, as
primeiras pedras do edifício colonial.
Mas não se confunda com
generalizações. A colonização de Moçâmedes foi iniciada, em 1849-50, por
portugueses sem mácula criminal fugidos de Pernambuco às pressões da Revolta Praieira, e a colonização da
Huíla, em 1884-85, por gente simples da Madeira. A “pior canalha do Reino”,
como lhe chamou o Governador Paiva Couceiro em 1910, estava fixada sobretudo
nos principais centros populacionais, como Luanda e Benguela, em Depósitos
Penais, criados em 1883. E não se confunda também quem foram os desterrados do
Brasil, implicados na Inconfidência
Mineira, em 1789, como o naturalista José Álvares Maciel, o poeta Inácio
José de Alvarenga Peixoto, o coronel Domingos de Abreu Vieira, o
tenente-coronel Luís Vaz de Toledo e o sargento-mor Francisco António de
Oliveira Lopes.
Ainda mais inconfundível: já no começo do
século XX, foram desterrados, em 1927, os dissidentes do 3 de Fevereiro no
Porto e do 7 de Fevereiro em Lisboa:
Henrique Galvão, Camilo de Oliveira, Luciano Augusto Dias, Gervásio Campos de
Carvalho, Agatão Lança e Manuel Marques Teixeira – alguns revertidos, mais
tarde, em governadores.
Sendo também jornalista, não falo de
outiva: cheguei a Angola em 1950, onde vivi até finais de Outubro de 1975,
quando a invasão do Sul de Angola pelas tropas sul-africanas e o conluio com a
UNITA, a FNLA e o ELP me obrigaram e à minha famíliia, in limine, a regressar a Portugal, com recurso à ponte aérea.
Voltei a Angola para cumprir um contrato de trabalho entre 1982-87. Em 2005,
fiz a última visita a Luanda. Foi neste período que vi as velhas casas de
sobrado substituídas por inimagináveis arranha-céus; muitos moradores que
tinham trocado o calção de caqui e a camisa sem mangas por fatos de casaco e
gravata; outros moradores que chegavam, nos períodos de descanso, outrora a pé
ou saídos do machimbombo, à livraria Lello para comprar ou conhecer as últimas
novidades literárias (permitidas ou proibidas) ou ao vizinho café Biker para cavaquear (já conspirando…)
em torno de um copo de cerveja, agora impedidos pelo trânsito infernal dominado
por vistosos carros, importados de todo o mundo, rumo ninguém imaginava a quê. O
tempora! o mores!
Enfim, seja por
resgate, catarse ou moenda que se continuam a escrever livros dizendo o mesmo
(às vezes deliberadas mentiras ou falsidades) sem acrescentar nada de novo ao
que se conhece, manterei o propósito de não ler mais livros com estórias de
vida de regressados, civis ou militares, ao único país onde não serão
estrangeiros.
LEONEL COSME
P.S. Em consideração do espaço, faltou dizer que, só com a segunda chegada
de Diogo Cão, em 1484, a Angola, foi estabelecido um curto período de
verdadeira “colonização missionária”, usando a expressão de Adriano Moreira.