25 de setembro de 2015

Retornar / Ágora / Novo Jornal/ Luanda edições de 19/9/2015 e 25/9/2015



Retornar…
Um brilhante e pouco conhecido texto de António Lobo Antunes, que nunca me canso de ler. Retirado das “Naus”, um dos seus livros menos divulgados! E escreve bem melhor que eu!
“Passara por Lisboa há dezoito ou vinte anos a caminho de Angola e o que recordava melhor eram as discussões dos pais na pensão do Conde Redondo onde ficaram entre tinir de baldes e resmungos exasperados de mulher. Lembrava-se da casa de banho coletiva, com um lavatório de torneiras barrocas imitando peixes que vomitavam soluços de água parda pelas goelas abertas e da altura em que topou com um senhor de idade, a sorrir na retrete de calças pelos joelhos urinava nos lençóis por medo de encontrar o cavalheiro do sorriso atrás dos peixes oxidados ou as cabeleiras que rebocavam notários corredor adiante, baloiçando a chave do quarto no mindinho. E acabava por adormecer a sonhar com as ruas intermináveis de Coruche, os limoeiros gémeos do quintal do prior e o avô cego, de olhos lisos de estátua, sentado num banquito à porta da taberna, ao mesmo tempo que uma manada de ambulâncias assobiava Gomes Freire fora na direção do Hospital de São José. No dia do embarque, a seguir a uma travessa de vivendas de condessas dementes, de lojas de passarinheiros alucinados e de bares de turistas onde os ingleses procediam à transfusão de gin matinal, o táxi deixou-nos junto ao Tejo numa orla de areia chamada Belém consoante se lia no apeadeiro de comboios próximo com uma balança de uma banda e um urinol da outra, e ele avistou centenas de pessoas e de parelhas de bois que transportavam blocos de pedra para uma construção enorme dirigidos por escudeiros de saia de escarlata indiferentes aos carros de praça, às camionetas de americanas divorciadas e de padres espanhóis, e aos japoneses míopes que fotografavam tudo, conversando numa língua bicuda de samurais. Então poisámos a bagagem no terreiro, por cima dos agapantos que as mangueiras mecânicas aspergiam em impulsos circulares, perto dos operários que trabalhavam nos esgotos da alameda que conduzia ao estádio de futebol e aos prédios altos do Restelo, de tal modo que os tratores dos cabo-verdianos se cruzavam com carroças de túmulos de infantas e de pilhas de arabescos de altares. Passando por uma placa que designava o edifício incompleto e que dizia Jerónimos esbarrámos com a Torre ao fundo, a meio do rio, cercada de petroleiros iraquianos, defendendo a pátria das invasões castelhanas, e mais próximo, nas ondas frisadas da margem, a aguardar os colonos, presa aos limos da água por raízes de ferro, com almirantes de punhos de renda apoiados na amurada do convés e grumetes encarrapitados nos mastros aparelhando as velas para o desamparo do mar que cheirava a pesadelo e a gardénia, achámos à espera, entre barcos a remos e uma agitação de canoas, a nau das descobertas. O pai morreu de escorbuto antes do Cabo Bojador ao darem pela proa com uma água tão tranquila como o pó das bibliotecas, e apodreceram um mês, comendo castanhas e carne salgada, até o vento estremecer o casco e empurrar uns contra os outros os pingentes de lustre dos marinheiros de uma revolta abortada enforcados nas enxárcias, depenados por gaivotas e milhafres atlânticos. Depois de sete amotinações sangrentas, onze assaltos de baleias extraviadas, missas incontáveis e um temporal idêntico aos suspiros de Deus na sua insónia pedregosa, um gajeiro berrou Terra, o mestre firmou o óculo no castelo da popa e lá estava a baía de Loanda invertida pela refração da distância, a fortaleza de São Paulo no cume, traineiras de pescadores, uma corveta da Armada, damas que tomavam chá sob as palmeiras e fazendeiros engraxando os sapatos enquanto liam os jornais nas pastelarias das arcadas. E agora que o avião se fazia à pista em Lisboa espantou-se com os edifícios da Encarnação, os baldios em que se ossificavam pianos despedaçados e carcaças rupestres de automóvel, e os cemitérios e quartéis cujo nome ignorava como se arribasse a uma cidade estrangeira a que faltavam, para a reconhecer como sua, os notários e as ambulâncias de dezoito anos antes. Tinha demorado uma semana com a mulata e o miúdo na sala de embarque do aeroporto de Loanda, estendidos no chão, enrolados em mantas, roídos de fome e de vontade de urinar, numa confusão de malas, sacos, crianças, soluços e odores, na esperança de vaga para fugir de Angola e das metralhadoras que todos os dias cantavam nas ruas brandidas por negros de camuflado, bêbedos de cálices de aftershave e autoridade. Um chanceler que consultava papéis e pulava sobre os corpos deitados pingava um nome de hora a hora, e por detrás dos vidros milícias da UNITA de pulseiras de crina e lanças emplumadas, orientados por conselheiros americanos e chineses, vigiavam-nos sob os tubos de flúor do teto. Em vez do labiríntico mercado da manhã da partida, a seguir aos palácios das condessas maníacas e aos bares de sombras lúgubres dos estrangeiros anémicos, em vez da praia do Tejo onde erguiam o mosteiro e dos pedreiros talhando o calcário a grandes golpes de maço, em vez dos bois e das mulas das carroças de carga e dos arquitetos a gritarem para os ajudantes endechas parecidas com a fala dos criados dos restaurantes galegos, em vez das vendedeiras de ovos e frangos e pargos doirados e miniaturas de chaminés do Algarve e quinquilharias de latão, em vez da claridade de lágrima das cebolas nos tabuleiros de madeira, dos ardentes poderes ocultos das ciganas que exaltavam as virgens outonais com promessas de amores de vice-reis, em vez das furgonetas de para-brisas azuis dos turistas e das caravelas e dos cargueiros turcos sob a ponte, enxotaram-me para um miserável edifício de cimento com painéis de voos nacionais e internacionais a pulsarem ampolas coloridas ao lado do free-shop dos uísques. Uma máquina de vender chocolates e cigarros estremecia de febre a um canto, vomitando caramelos após uma complicada digestão de moedas, e os passageiros do avião alinhavam-se em fila como nas mercearias, nas padarias e nos talhos pilhados de Loanda, em busca do arroz, do pão e da carne que não havia mais, somente poeira e côdeas e gordura e um empregado que a vassoura não levara a abanar a cabeça ao balcão apontando com o dedo as vitrinas vazias. E lembrou-se dos entardeceres espavoridos dos últimos tempos de Angola, dos moleques que assaltavam os escritórios e os apartamentos do centro, das fachadas rombas de balas e das beneméritas do Bairro Marçal sem clientes, oferecendo a ninguém as coxas de sereias órfãs nas vielas onde os faróis dos jipes se aparentavam às lanternas traseiras dos comboios. Os que regressavam consigo, clérigos, astrólogos genoveses, comerciantes judeus, aias, contrabandistas de escravos, brancos pobres do Bairro Prenda, do Bairro da Cuca, abraçados a volumes de serapilheira, a malas atadas com cordéis, a cestos de verga, a brinquedos quebrados, formavam uma serpente de lamentos e miséria aeroporto adiante, empurrando a bagagem com os pés (na faixa reservada aos passageiros em trânsito passavam islandeses altos e desgrenhados como pássaros de rio) na direção de uma secretária a que se sentava, em um escabelo, um escrivão da puridade que lhe perguntou o nome (Pedro Álvares quê?), o conferiu numa lista dactilografada cheia de emendas e de cruzes a lápis, tirou os óculos de ver ao perto para o examinar melhor, inclinado de banda no poleiro de fórmica, passeou o polegar errático no bigode e inquiriu de repente Tendes família em Portugal?, e eu disse Senhor não, muito depressa, sem pensar, porque a minha velha se finou de icterícia há seis anos e dos tios que aqui permaneceram quase não me recordo ou não me recordo nunca, ignoro se ficaram em Coruche e se ficaram onde moram, com quem moram, quantos filhos têm, se estão vivos sequer. Guardo o perfil vago de um primo a chegar de licença fardado de recruta, pisando as alfaces da horta com as botas cruéis, mas por exemplo a casa, que é que quer, sumiu-se-me, salvo o espelho do vestíbulo comprado na feira de Almeirim entre choro de leitões e tambores de saltimbancos, que deformava os rostos e torcia os gestos em ondulações embaciadas, devolvendo a cada um a sua face secreta e genuína, aquela que apenas a solidão do sono ou o abandono do amor finalmente revelam. Lembro-me dos invernos com uma sementeira de alguidares e panelas no soalho a fim de receberem a chuva que descia em ampulheta das fissuras do teto, e, mais recuada no tempo, da madrinha do meu pai a coser peúgas e ceroulas sob a cerejeira estéril das traseiras, que erguia uma das patas do tanque de lavar a roupa com a força de bíceps das raízes. E esta memória remota trouxe-lhe de súbito ao nariz o aroma de bosta de vaca dos derradeiros meses, desde que a telefonia anunciou a independência de Angola decretada por Sua Majestade, no rescaldo de um motim, durante as cortes de Lixboa, o odor do suor, da di arreia, do medo, quando colávamos em pânico os armários aos caixilhos porque daqui a nada uma coronha desventra o aparador, daqui a nada uma sapatilha esmaga o tapete a rir-se, daqui a nada o MPLA principia a disparar ao acaso e as nucas estoiram como figos numa pasta de carne branca e de grainhas vermelhas, o que julgaria o Infante, se vivo fora, lá na escola de Sagres, desdobrando mapas e consultando estrelas frente às janelas do mar, enquanto os seus capitães perseguiam dinamarquesas nas praias de Albufeira e Gil Eanes se apresentava em Lagos, pingando como um noivo exausto, com um ramo de florinhas murchas na mão. Disse Nem por sombras e pensou Claro que não, visto que em dezoito anos de África não recebi uma carta, um postal, um presunto, um retrato sequer. Quase que aposto que morreram todos há séculos, sepultados sob o lajedo das igrejas com o nome em latim apagado por solas de noviças, acomodados no tecido cor de pérola dos caixões, vestidos de casacos de xadrez, de xailes lilases, de blusas claras, de mãos postas e malares agudos como as estátuas jacentes nas criptas das capelas. A minha família de queixo amarrado e moedas de prata nas órbitas a fitar-me com reprovação, Este é o que foi para Loanda morar no meio dos pretos em lugar de explorar uma tabacaria na Venezuela ou um escritório de transportes na Alemanha, este é o que montou um comércio de talhante nos musseques, vendia costeletas aos cafres, fez um filho a uma mulata, habitava um prefabricado da Cuca, nem um coche, nem um batel possuía, aos domingos espojava-se na sala, de calções, a ouvir relatos de futebol e a comer merda de sanzala, o escrivão da puridade aplicou-se em apontamentos góticos adiante do meu nome, sacudindo as orelhas entendidas como se partilhasse o desprezo ou o desgosto dos meus tios, e o diácono que o acolitava, com uma coroa de cabelos e bochechas de Santo António de azulejo insistiu Nenhuns parentes, nenhum cunhado, nenhuma relação distante, à medida que preenchia formulários, multiplicava números numa calculadora de bolso, me estendia um papel para assinar, Aqui, entornava uma gota de lacre no termo da página e a oferecia ao outro para que apusesse o anel de armas na nódoa de sangue fumegante. A mulata, de sandálias de plástico e lenço amarrado na testa, que antes de morar comigo servia à mesa num restaurante da Ilha, abismava-se num cartaz de férias orientais que exibia um casal de grinaldas ao pescoço refastelando-se de caneca de cerveja num poente marinho. Ninguém, disse eu, só a mobília do quarto que há-de chegar no próximo galeão se a não desviaram no porto com esta história de roubalheira, democracia e socialismo, e orgulhei-me das mesinhas de cabeceira com maçanetas de loiça, da consola de três portas para garrafas, cristais e copos de água e de vinho, para além da cómoda da roupa de sumptuoso tampo de mármore no qual se gravavam as veias que se ramificam de leve nas pálpebras das crianças, ao mesmo tempo que o escrivão me entregava, com a pompa de um diploma de menção honrosa, uma notificação ilegível, Tem oito dias para comparecer nesta repartição, agora veja lá. Nas minhas costas um plebeu de muletas protestava contra as demoras da burocracia, Em saindo daqui apresento queixa aos jornais, e eu cessei de ouvi-lo porque me lembrei de novo de Coruche e da madrinha do meu pai a coxear para casa, com a cesta das molas da roupa na mão, desfocada na latada das videiras. Quanto ao comer e ao dormir, explicou o escrivão alheio ao das bengalas, sem olhar sequer ou se preocupar nunca com a mulata ou o miúdo que se me enrolava nas pernas, de boca aberta numa espiral de angústia, arranjámos-lhe lugar na Residencial Apóstolo das Índias, Largo de Santa Bárbara, meta-se num autocarro e pergunte pelo senhor Francisco Xavier, o que se segue. Um ruivo grosso e tímido, gaguejando empenhos, acotovelou-me para se aproximar da secretária e estávamos sozinhos e postos de banda numa cidade que conhecia sem conhecer e cheirava à carne doce dos javalis que os monteiros açulam no verão perseguindo-os pelas praças e travessas de Linda-a-Velha ou de Bucelas, enquanto homens de negócios holandeses e capitães dos mares de Malaca desapareciam nos táxis do aeroporto na direção do centro da cidade e do fedor de vazante dos seus becos, e nós os três cá fora, no passeio, à torreira, à espera das mesinhas vindas de Angola como se as caravelas atravessassem as avenidas para nos depositarem aos pés um caixote bolorento de limos de baixios, amolecido pelas gengivas das ondas, destruído por correntes contraditórias e gumes de recife, barbudo de mexilhões e ostras oceânicas, com um resto de colchão e uma maçaneta dentro. “

Fernando Pereira
8/09/2015
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