28 de maio de 2016

Remendo! / Àgora/ Novo Jornal /Luanda 26-5-2016



Remendo!
Num tempo em que 29, 622 kwanzas valiam um dólar, e outras mordomias como por exemplo partilharmos muito mais o pouco que se tinha, havia que se ter engenho e arte para conseguirmos matar o “tédio revolucionário”; bem mais tolerável que o “fastídio dos mercados”!
               Numa noite abafada de Fevereiro de há trinta e cinco anos fui com uns amigos ao Kussunguila, um dancing na Ilha de Luanda, construída no tempo colonial junto a um higienizado e apelativo mercado do artesanato. Formávamos dois casais e entrámos numa sala enorme que estava praticamente às moscas. Os decibéis roufenhos e alterados de uma música razoavelmente má, num espaço onde o ar condicionado emitia um estridente e pautado som metálico enviando golfadas de ar quente, para uma sala que já se tornara quase uma camara de tortura.
               As mesas eram para duas pessoas e apesar de as termos aproximado uma da outra só nos conseguíamos entender aos berros. Veio solícito o empregado e perguntou: Que desejam os camaradas? Pedimos cerveja, ao que ele adiantou que não havia rigorosamente nada fresco, e que já teria informado a Emprotel UEE, ou a Angotel UEE da avaria há uns tempos e ainda não se tinha diligenciado nada até ao momento. Perguntámos que é que havia para beber, e ele muito lesto disse: “Aguardente búlgara, Macieira e Havana Club”. Animados com a oferta disponível resolvemos arriscar a Macieira, e sinceramente ainda hoje guardo o travo daquele cognac de pacotilha que nos foi servido. Passou a ser urgente debandar e foi isso que fizemos deixando o funcionário na sordidez pouco iluminada de um dancing vazio. Saímos do Kussunguila e sinceramente jamais esqueci o bafo de calor que tão bem me soube!
               Mais ou menos na mesma altura fiz uma viagem ao Lubango e entrei na que outrora tinha sido uma pastelaria de eleição no tempo colonial, a Tirol, em pleno “Picadeiro” , rua central da única cidade em toda a África que tinha mais brancos que pretos. A pastelaria tinha três balcões envidraçados, num tinha alguns bolos de aspeto manhoso, noutra uma mistura esquisita de velas e bolachas e numa outra rebuçados, confeccionados numa fábrica local ainda em funcionamento ao tempo. Naturalmente que quis comprar uns pacotes para trazer para Luanda, e pedi às duas camaradas que estavam em cada um dos dois outros balcões envidraçadas para me darem os rebuçados, e uma delas prontamente disse que não mos podia vender porque o camarada responsável por aquele sector não estava. Perplexo, mas resignado pela organização deste espaço quase vazio, mas cheio de gente e regras.
               No dia seguinte, porque o voo para Luanda resolveu atrasar três dias, voltei e mais uma vez não consegui ter acesso aos rebuçados, porque o camarada responsável pelos “dropes, caramelos e correlativos” tinha-se ausentado nesse fim da tarde em que lá estive. Não consegui levar rebuçados nenhuns, mas fiquei sempre com a história para repetidamente contar.
               Num restaurante manhoso no Dondo sentei-me e pedi o prato do dia, a bem dizer não havia alternativa, e lá veio o arroz maçudinho a acompanhar um espinhadíssimo peixe frito do rio. A bebida era uma cerveja EKA morna, e quando chegou à mesa o empregado resolveu utilizar os dentes para abrir a garrafa. Naturalmente aborrecido disse que não iria tocar na garrafa o que o levou a abespinhar-se e perguntar-me: “ O camarada tem nojo de mim?”; Repliquei que “sim, não tenho nojo, mas acho que é pouco higiénico”. Ele indignado disse-me: “Sabe, eu devia era ter aberto a garrafa lá dentro e o camarada bebia-a toda”. Apesar de resignado e esperando que “desamparasse a loja”, o tipo resolveu encostar-se à minha mesa e fazer uma teorização da luta de classes, do fim do colonialismo e da implantação do socialismo científico, asseverando que eu enquanto angolano branco não tinha ainda compreendido as mudanças. Farto de ouvir palavras de ordem, agilizei a degustação do paupérrimo menu, paguei e saí para a rua onde me esperava o ar abafado do desmazelado Dondo ainda com resquícios de tempos áureos na sua decadente malha urbana.
               Desculpem a puerilidade do artigo, com histórias tão banais, mas na realidade no dia em que comemoro os sessenta anos do meu nascimento na então Casa de Saúde de Luanda, hoje maternidade Augusto Ngangula, muita coisa me ocorreu para escrever, mas nada saía com a fluidez desejada. Fica o remendo!
               Como dizia Gabriel Garcia Marquez “A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como recorda para conta-la”

Fernando Pereira

25/5/2016
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