28 de agosto de 2015

FECHOU A LELLO / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda 28-8-2015




Fiquei perplexo, quando li a notícia do recente encerramento definitivo da livraria Lello de Luanda. Era uma situação expectável porque os “mujimbos” eram mais que muitos, sobre o encerramento de uma das mais emblemáticas lojas da nossa cidade capital.
Por causa do capital na cidade, é que há muito o “Palácio da Palmeira” estava na mira dos que se vão encarregando de aumentar a bolha imobiliária, e quando rebentar serão os angolanos a pagar por estes desmandos de grande calibre!
Um dos edifícios mais nobres da baixa luandense, o seu nome refere-se à característica palmeira estilizada na grade que protege as escadas, do edifício na praça Rainha N’ZINGA, em frente, à outrora mais majestática Sonangol. Há muito que se sabia que era um espaço cobiçado, como é qualquer canteiro em determinada zona da cidade, mas os anos foram passando e lá se ia mantendo com o ar vetusto, a lembrar tempos do antanho em que o popular e Angola se confundiam num quotidiano político, que deixa saudades a muitos de nós.
Foi adquirido por uma daquelas sociedades que compram coisas, que não se sabem a quem pertence e quando aparece alguém a colocar nomes dos societários é uma inquietação a todo o tamanho para muita gente. Compraram o edifício para o deitar abaixo, é um dado mais que adquirido, e já estou a ver os olhos raiados de cifrões de alguns, a verem surgir mais um megatério, de uma sordidez visual e conceptual que nada tem a ver com uma urbe, com cada vez menos pessoas e com cada vez um maior número de habitantes.
Não vou voltar ao estafado tema da degradação continuada que estão a fazer ao coração da cidade, o que me deixa muito triste, mas neste momento o que interessa é mesmo é o encerramento da Lello.
A Lello já lá estava há umas décadas quando eu vim ao mundo há sessenta anos, na Casa de Saúde de Luanda (Augusto Ngangula). Curiosamente o primeiro livro que recebi foi lá comprado, conforme a minha mãe anotou num “livro do bebé”, algo habitual nos nascimentos desse tempo no seio da burguesia colonial!
Na Lello foram-me comprando livros infantis, de colorir, de pano, escolares e tantos outros que me aborreciam um pouco no desafio continuado por parte dos meus vizinhos para as brincadeiras de rua.
Apesar de muitas vezes desejar que não optassem por livros nas datas em que era habitual dar prendas, a verdade é que gostava muito de os ir lendo, e lembro-me de ter lido toda a coleção do Tintin em francês, o Ben-Hur, o Marco Polo, o Simbad, os irmãos Grimm, Charles Perrot, Hans Cristian Anderson, a Enid Blyon com os famosos “Cinco”, o Nodi e os “Sete”, enfim “varri” tudo e a Lello era um dos maiores “filões” na pachorrenta e algo provinciana Luanda colonial, de um tempo em que o ar condicionado era para uns poucos e que o calor se mantinha dia e noite.
Durante os anos 50 e 60 Luanda tinha para além da Lello, a “Lusitana”, acima do hotel Globo, a “Minerva”, hoje em ruinas, a ABC, quase em frente ao “esqueleto” do que foi em tempos o garboso edifício da Biker, e a Mondego, mais conhecida pela “Argente Santos”, que hoje encolheu o mais possível para passar a ser um bar, em frente ao Chá de Caxinde. É da mais elementar justiça falar da “Livraria Popular” de José Marques da Cunha, numa loja pequenina na ex-“Av. dos Restauradores de Angola”, e que foi durante muito tempo o único alfarrabista de Angola. No meio de um amontoado de livros saia sempre qualquer coisa que o Senhor Cunha convencia o meu pai a comprar, por “dez reis de mel coado” , como diria o mestre Aquilino Ribeiro. O Senhor Cunha desapareceu e a sua livraria fechou há muitas décadas, mas cada vez que por ali passo olho para aquele lugar com a saudade de” um homem muito bom, mas que tinha tido pouca sorte na vida”, como ouvia dizer em Luanda nos meus tempos de descuidada meninice.
Mas a Lello era o sítio! Era lá que me compravam os meus livros da escola primária e no “Salvador Correia”. Foi da papelaria que os meus pais levaram os estojos de desenho Kern e a Pelikan, que era uma caneta de tinta permanente, um pouco uma Montblanc de remediados. Comprava-se a tinta-da-china, os godés, as aguarelas e o papel cavalinho; Tudo material que invariavelmente ia parar aos calções, pernas e camisa porque fui um verdadeiro desastre em desenho.
Continuava a comprar na Lello, os dicionários, as enciclopédias juvenis e livros de todo o tipo, pois fui-me tornando um leitor compulsivo, chegando a alternar entre o David Copperfield do Dickens e as fotonovelas interiores da “Crónica Feminina”!
A partir de determinada altura, começo a partilhar na Lello a amizade com o pai de um colega de Liceu, que era uma pessoa notável, e que muitos em Angola maltrataram, o mais velho Felisberto Lemos.
Quando fui estudar para Coimbra no dealbar dos anos 70 despedi-me do Felisberto oferece-me um livro do Dr. Videira, “Angola”, com desenhos de Neves e Sousa, editado pela Lello, que também era editora e reproduzia excelentes postais de artistas angolanos.
O Felisberto Lemos, o “Livreiro da Esperança” como lhe chamou Manuel Alegre, foi uma referência importante no combate à ditadura e ao colonialismo português, já que foi “desterrado” para Angola, e tantos lhe agradeceram o muito que fez por todos os muitos que chegavam a Luanda, e iam ter com o Felisberto para terem acesso a livros e a prepararem conspirações. Melo Antunes, Fernando Assis Pacheco, José Carlos de Vasconcelos, Bessa Murias, e tantos outros deixaram o seu testemunho reconhecido a um homem de quem nunca ouvi um queixume pela forma “cobarde” como foi tratado, tendo regressado a Portugal pobre, e valendo-se da ajuda de amigos que não o esqueceram, mas que nunca lhe conseguiram mitigar a tristeza. Morreu amargurado e com muitas dificuldades económicas, esquecido por muitos, a quem deu guarida e matou a fome, e que em determinada altura foi acusado de deslealdade e “traição” porque entre vários livros na montra da Lello tinha o livro do Nito Alves em exposição e para venda.
Outra figura da Lello foi o poeta Ricardo Manuel, autor de vários livros de poesia, e que nos anos 80 foi galardoado com um prémio literário na Coreia do Norte, num concurso onde foi o mais encomiasta relativo a Kim-Il Sung e à doutrina Juche. Foi receber o prémio a Pyongyang, e durante meses a fio o “Grande Líder” teve direito a uma foto gigante, numa montra toda decorada com cetim e cheia de livros coreanos traduzidos para português e espanhol, sobre as ideias centrais de uma deriva marxista-leninista algo bizarra.
Na Lello, ao fim da tarde, reuniam-se no fim dos anos 70 e durante a década de 80 um conjunto de pessoas de gerações diferentes, que constituiu uma das tertúlias mais interessantes da Luanda solidária que se vivia. Os irmãos Guerra Marques, Osvaldo Pinto, Galeano, Chaves, o velho Lello, Antero de Abreu, Dionísio Rocha e outros onde me incluía, juntavam-se ali o fim de tarde numa amena e salutar cavaqueira, em que quase todos tínhamos uma visão diferente das coisas e pasme-se soluções para elas, o que não deixava de ser algo pueril entre pessoas, a maioria ao tempo ao tempo já com 50 anos ou mais.
Foi na Lello que comprei Jorge de Sena, Garcia Marques, Hemingway, Camilo José Cela, Maria Teresa Horta, Carlos Malheiro Dias, Castro Soromenho, Albert Camus, Alvin Toffler, Frantz Fannon, Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto e tantos que me enriqueceram para a minha afirmação de cidadão solidário e politicamente interventivo.
Quando vejo fechar a Lello, vejo encerrar algo que fazia parte do coletivo da cultura de um País, que tem cada vez menos livrarias e se conformou com os esforços de bem-sucedidas campanhas de alfabetização, de um tempo em que o homem não era mercadoria, nem número de mercado.
A iliteracia prevalecente vai aumentando e o resultado terá consequências perniciosas na vida quotidiana dos angolanos. A cidade empobreceu e de que maneira com o encerramento da Lello.
Limito-me a agradecer os sessenta anos em que fui convivendo com ela.
“Sic transit gloria mundi”



Fernando Pereira 26/8/2015



22 de agosto de 2015

Liberdade, do seu uso e do seu abuso! / Ágora / Novo Jornal / Luanda 21-8-2015



Comunicar começa por ser um imperativo de todo o animal. Ele não poderia manter a comunicação da espécie sem comunicar. A comunicação é pois uma necessidade inilidível das espécies.
Tal conceito, porém, aponta-nos (se me é permitido dizer assim desta maneira) para uma comunicação não livre. O animal comunica na estrita obediência de funções irrecusáveis, próprias da sua natureza. O animal neste sentido não é livre.
Mas contrário é aquilo que acontece com o Homem, um ser ao qual já definiram muitas vezes, desde o sisudo ponto de vista filosófico, até ao mais simples ramo humorístico.
Beau Marchais, por exemplo, teve esta expressão feliz:” o Homem difere dos animais porque bebe sem ter sede e ama em todas as estações do ano”. Menos prosaico, menos material, para Anatole France, “aquilo que distingue o Homem dos outros seres vivos é a mentira. O que tudo quer dizer é que os homens fazem mais coisas do que só as necessárias para a conservação da sua espécie”.
Entre elas, como veículo de mentir, de ficcionar, e numa de otimismo, também de dizer a verdade, o Homem tem capacidade para comunicar, com outros através de mensagens para lá do seu gesto transitório e da sua voz extinguível.
Se é que ele realiza Imprensa, ou como é habitual dizer-se comummente hoje: Comunicação Social. Importa relembrar que durante anos o termo “meios de difusão massiva” entravam num léxico que em certos aspetos era portador de tempos de maior esperança e menos conformismo!
Tudo se reduz ao estafado clichê do B A BA do aprendiz de filósofo: “O Homem é um animal social”. A verdade é que tal reconhecimento implica outro: o da necessidade de uma intercomunicação coletiva humana, consequentemente uma comunicação social.
Hegel foi o primeiro que logrou expor de modo exato as relações entre liberdade e a necessidade, salientado por Engels num determinado passo do “Anti-Düring”!
A liberdade não representa outra coisa senão o reconhecimento da necessidade. Desde o cavernícola temeroso da trovoada (Uma ira dos Deuses), até ao cientista do nosso tempo, o homem foi sendo tanto e tanto mais livre quanto progressivamente foi conhecendo e dominando a realidade objetiva.
A liberdade é, pois, uma tomada de consciência por parte do homem. È uma conquista progressiva, constante. È um rasgar no sentido de um cada vez maior horizonte.
A liberdade constrói-a o próprio homem; A liberdade não é um direito que a lei, mesmo a Constituição, conceda ou atribua ao cidadão.
Quando nos é proposto refletir acerca da liberdade de imprensa, logo nos ocorre que a noção mais evidente, aquela que afinal, mais se nos impõe é, no âmbito dos factos a da não liberdade de imprensa.
Na realidade, quando enfrentamos o problema da comunicação social segundo um prisma geográfico e utilizando noções não muito rigorosas como sejam as de liberdade ou censura, tão sujeitas a gradações, facilmente somos obrigadas a reconhecer que as áreas de não - liberdade constituem a mancha maior.
Temos um cada vez maior pouco por todo o lado em todo o mundo, regimes de censura oficial, externa aos órgãos de comunicação social.
Um dos primados da liberdade de imprensa está enunciado na Declaração de 1789,”Declaração dos direitos do Homem e do cidadão” no seu artigo 11ª diz: “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei.”
Liebling em 1961, referindo-se à situação da imprensa nos Estados Unidos dizia:” Temos hoje uma imprensa livre. Quem quer que disponha de dez milhões de dólares tem a liberdade de comprar ou fundar um jornal numa grande cidade como Nova Iorque ou Chicago”.
Há evidentemente, formas grosseiras de censura, outras que o são menos, outras que variam no grau de subtileza com que se exercem. Se nos países de regimes políticos concentracionários existe declarada censura, também nas democracias que erigem a liberdade de imprensa como um dogma, a liberdade está cada vez mais longe de ser total.
Nos primeiros o sistema, como entidade coletiva, rígida, burocrática, invoca como lídimo direito de se defender e cria os mecanismos que lhe asseguram o domínio direto ou indireto dos meios de comunicação, os segundos criam do mesmo modo mecanismos de autodefesa, embora não burocrática e difusa.
Num e noutro caso a liberdade é, desde logo e grosso modo, condicionada pelo estatuto de propriedade dos meios de comunicação, geralmente restrita aos poderosos, sejam eles o Estado ou o capital. Em qualquer dos casos, o jornalista se está no essencial, consciente ou inconscientemente, de acordo com o sistema que o integra e condiciona pode ir e não há verdadeiramente motivo para que não se sinta livre. Pode sentir-se livre, mas é-o realmente?
Num e noutro caso, numa ou noutra modalidade, o jornalista coim veleidades de independente(???) que se interrogue acerca da sua inserção na profissão ou mesmo numa sistema vai refletindo criticamente como se posiciona e como se colocam os seus colegas.
Os riscos que um jornalista desacomodado enfrenta são mais que muitos, em todo o lado, mas o caminho é aliciante, evitando sempre que nos atirem para a marginalidade. A rejeição centrífuga dos marginais é da natureza dos sistemas.
O que importa muitas vezes ao jornalista importa riscos. Há quem pense, mesmo na incomodidade, que vale a pena correr riscos, a fim de poder transmitir aos vindouros a imprescritível ideia de liberdade.
Desculparão este ensaio, mas como se aproxima o Congresso dos Jornalistos Angolanos (Julgo que em Setembro) estas reflexões talvez possam não cair de todo em saco roto!

Fernando Pereira
15/8/2015

14 de agosto de 2015

“O SENHOR LUBITO”/ o Chá / Luanda / Maio Junho de 2015




Já há muito que acho que era indispensável fazer-se um inventário do que vulgarmente se chamou “a geração africana” , denominação dada a arquitetos portugueses que por perseguição política ou por divergências conceptuais em relação ao status quo instalado na arquitetura portuguesa estadonovista tiveram que procurar trabalho nas então províncias ultramarinas africanas.
O falecimento de Francisco Castro Rodrigues (1920-2015) ocorrido recentemente é uma oportunidade de se falar de um grupo de arquitetos que trabalharam e inovaram o conceito de cidade em Angola, entre os anos 30 e a primeira metade da década de 70.
Fala-se porque esta plêiade de gente valorosa recusa participar na intervenção gradual da definição ideológica de uma estética nacionalista que sirva o salazarismo. A partir de 1945 a oposição do movimento moderno de arquitetos, consegue combater o “português suave” e alcandora-se para novos e arrojados conceitos, que merecem a crítica dos poderes instalados ao nível central e local. Nota: Em Angola, os mais emblemáticos edifícios do estilo “Português Suave” é o Liceu Salvador Correia (Mutu-ya-Kewela), o edifício sede do Banco Nacional de Angola, delegações do banco espalhadas pelo território e alguns palácios de governo provinciais.
Realiza-se em Lisboa “Congresso Nacional de Arquitetura” em 1948, reunião magna onde se sente emergir uma nova geração e em paralelo uma vontade coletiva de mudança, de recusa consciente e teoricamente alicerçada da arquitetura do Estado Novo. É um “momento de viragem na reconquista da liberdade de expressão dos arquitetos” como refere Nuno Teotónio Pereira, oposicionista e preso político do Salazarismo.
A arquitetura que se propunha a partir de então, seguia de perto os ideais expressos na Carta de Atenas, documento internacional que, escrito ainda nos anos 30 com o apoio de Le Corbusier, tinha conceptualizado e enumerado o programa de renovação mundial da linguagem arquitetónica: os grandes blocos em altura, de habitação coletiva, assentes em pilotis, com sistemas mecânicos de transportes e infraestruturas orientadas corretamente em relação ao Sol (e controlando a sua incidência através de brise-soleils móveis), arejados, alternando com espaços verdes servidos por circuitos pedonais. Importa referir como nota que foi Francisco Castro Rodrigues e sua mulher Lurdes Rodrigues que traduziram integralmente para português a Carta de Atenas, documento de trabalho para o “Congresso Nacional de Arquitetura”.
Este “estilo internacional” tinha influencia direta das obras sul- americanas (onde os pioneiros como Le Corbusier tinham deixado sementes), cheias de vitalidade que faltava ao emperrado contexto europeu do pós-guerra.
O que objetivamente interessa é discutir a influência desta gente numa dinâmica inovadora de transformação das cidades e simultaneamente propostas que entravam em choque com as dos arquitetos do regime a quem eram encomendados a esmagadora maioria dos projetos.
Francisco Castro Rodrigues, vive continuadamente no Lobito (Lubito, como sempre escreveu) entre 1953 e 1988, será sempre o “Senhor Lubito”,como carinhosamente lhe chamava nas conversas que íamos mantendo nestes últimos anos.
A cidade tem o seu “ferrete” nas Portas do Mar, no edifício Universal, na Colina da Saudade, na Casa do Sol, no Liceu Saydi Mingas, no Cine Flamingo, nas atuais instalações do Instituto Lusíada adaptadas no silo-auto da Casa Americana, na reconversão do Tamariz, no Mercado Municipal, na urbanização do Alto Liro, na Bela Vista, no obelisco, no edifício da aerogare e num conjunto muito variado de vivendas e prédios um pouco por toda a cidade. Fora do Lobito projetou os Paços do Concelho do Sumbe, um edifício que foi depois adulterado, bem como os de Luena e Ganda. São seus trabalhos no Sumbe o liceu , o palácio da justiça e a magnífica catedral (um pouco a recordar Frank Lloyd Wright), de onde terá sido plagiada a catedral de Benguela.
Criou o Museu do Lobito na casa que foi da madame Berman (uma alemã com poderosos interesses no minério e na agricultura de Angola), onde os soviéticos queriam a todo o custo instalar o consulado recuando perante um obstinado FCR com o apoio do Comissário Ramos da Cruz.
Francisco Castro Rodrigues pela participação, decisiva e simultânea, nos planos municipais, urbanístico, infraestrutural e arquitetónico tornou-se num verdadeiro “fazedor da cidade moderna” em relação ao Lobito.
Logo no início em 1953 entendeu de modo dinâmico a velha aspiração do Lobito, a de passar da “cidade do mangal”, insalubre e litorânea para a mais ampla e expansiva “cidade do morro”, com uma dimensão moderna.
Percebeu que a cidade era mais que um espaço de casas, atividade económica ou local de recreio. Era sobretudo um espaço de crescimento dinâmico onde se iam absorvendo realidades importadas de sociedades diferentes e com contornos de estigmatização rácica visível em cada um dos seus movimentos sociais e laborais.
Castro Rodrigues entendeu globalmente o sistema urbano em presença, com toda a complexidade das suas novas e crescentes funções. Foi o autor único que evoluiu na feitura de uma cidade luso-africana, com a visão e a possibilidade prática “ de controlar (pelo menos em parte) a sua dimensão e qualidade-em termos de planeamento/expansão, de sistema de zonamento funcional, de desenho urbano e de mobiliário, de espaços verdes e da sua arquitetura- e esta em projetos e obras para equipamentos, para publicação de classe média e de tipo «social» ”.
Conseguiu modificar o primeiro plano diretor de 1944 e essa alteração profunda serviu como guião à expansão de determinadas áreas da cidade. Não conseguiu, nas suas múltiplas batalhas ultrapassar os “direitos adquiridos” pelo poderoso Caminho de Ferro de Benguela que continua a dividir a cidade ao meio. Uma das suas batalhas perdidas, que faria infletir as linhas do CFB para os arredores da urbe, praticamente na saída do porto mineiro.
Numa das últimas conversas que tivemos mostrou-se muito triste por terem autorizado a refinaria no Lobito, uma das guerras que as gentes do Lobito tinham ganho às autoridades portuguesas quando tentaram instalá-la nos anos sessenta!
Para além da sua faceta de arquiteto, Francisco Castro Rodrigues casado com a atriz Lurdes Rodrigues, foi militante do PCP até 1949, preso no Aljube em 1941, participante no MUD, mandatário no Lobito das candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado (o general ganhou com 83,5% dos votos expressos) manteve sempre uma empenhada atividade politica progressista e depois da independência de Angola um promotor cultural com muito trabalho feito.
Foi fundador e dinamizador do Cine Clube do Lobito, de Oficinas de teatro, a que não será alheio o facto de sua mulher ter sido atriz profissional em Portugal e também o representante da Sociedade Cultural de Angola na cidade do Lobito.
Produziu alguma imprensa e apesar de lhe ter perguntado diretamente se fez parte da maçonaria, respondeu-me sempre com o evasivo: “eram bons rapazes”!
Sugiro que leiam, se conseguirem encontrar, o livro “Um cesto de cerejas”, um livro editado pela Fundação Mário Dionísio - Casa da Achada que é afinal uma descrição bem-humorada e muito catalogada do que foram os seus trinta e quatro anos de ligação a um “Lubito” que terá levado consigo.
O livro é uma conversa escorreita com a Drª Eduarda Dionísio, filha do meu professor Mário Dionísio, um dos grandes do neorrealismo, corrente que marcou a literatura portuguesa do fim dos anos trinta a meados dos anos sessenta. FCR foi um grande dinamizador da instalação do Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira, tendo sido um dos coautores do projeto do edifício e a quem doou uma parte significativa do seu formidável espólio.
Perguntei-lhe se o título “um cesto de cerejas” tinha alguma coisa a ver com a canção emblemática da Comuna de Paris (1871)“O tempo das cerejas”, respondendo que havia esse conceito politico subjacente embora a escolha primordial foi porque a conversa no livro fluía como as cerejas.
Penso que era capaz de ser interessante que no Comissariado Municipal do Lobito se instalasse um pequeno “museu” com o acervo de FCR ,que por lá andará perdido e provavelmente mal conservado! Francisco Castro Rodrigues já foi homenageado pelo Município do Lobito aquando do centenário da cidade, e as autoridades locais não o esqueceram tributando-o com inúmeras provas de carinho que muito o sensibilizaram. Acho que inseri-lo na toponímia da cidade era da mais elementar justiça, pois foi um homem que “colocou pedras nos alicerces do mundo”, neste caso no seu “Lubito”!
Obrigado Francisco Castro Rodrigues, o “Senhor Lubito”.

Fernando Pereira
5/5/2015

FOFOCAGRAFIA POLITICA / Ágora /Novo Jornal / Luanda 14-8-2015



“Onde o Santo punha o pé
nasciam rosas
e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas"
(Joaquim Namorado)
Fui companheiro de café, partilhámos cumplicidades políticas, foi meu explicador de matemática, com pouco sucesso diga-se de passagem, deu-me a conhecer José Mário Branco e Luis Cília, quando os que mandavam não queriam que as pessoas os conhecessem, foi um militante de causas na defesa da liberdade e da sociedade solidária, figura de relevo do neo-realismo, portador de palavras que eram de sonho, afecto e luta simultaneamente. Joaquim Namorado, um homem que só no ocaso da vida teve direito ao lugar de catedrático na vetusta Universidade de Coimbra, que o “Estado Novo” do “velho” usurpou de forma soez, obrigando-o a recorrer durante décadas ao expediente das explicações, intervalando com umas estadias pelos calabouços da PIDE.
Todos os estudantes das colónias portugueses que passaram por Coimbra nesses “sombrios tempos” tiveram em Joaquim Namorado um amigo, e alguém com quem podiam partilhar as desventuras do tempo vivido. Como um dos fundadores do neorrealismo, influenciou alguns escritores de uma geração mais nova, onde incluo Manuel Rui Monteiro, então um jovem cheio de sonhos que vem do Lubango para uma Coimbra de mentalidade sórdida e “rigorosamente vigiada”!
Alentejano de gema, resistiu sem vacilar e sem alterar o seu compromisso político que pela relevância do seu percurso cultural na revista Vértice, e em associações de carácter cultural na Figueira da Foz, promoveu o seu município nos anos oitenta um concurso literário com o seu nome, atribuindo um prémio pecuniário irrisório perante a dimensão do homenageado e até muitos dos premiados.
Foi meu médico da “garganta”, o Dr. Adolfo Rocha, pessoa de imagem austera e muito parco em palavras, mas que construiu uma obra de uma dimensão literária notável, Miguel Torga, pseudónimo surgido numa homenagem a dois vultos das letras espanholas que muito admirava, Miguel Unamuno e Miguel Cervantes, associando torga, uma pequena erva perene do seu Traz os Montes natal.
Cumprimentávamo-nos quando nos encontrávamos, de forma distante, e quando uma vez lhe disse que tinha comprado “Os bichos”, e que gostaria de ler outros livros seus, na esperança de ser presenteado com algum, ele no seu jeito curto e grosso diz-me: ”Tenho muitos e bons, pode comprá-los na Bertrand, estão lá todos”.
Miguel Torga era conhecido por cultivar muito pouco a sua aparência e víamo-lo demasiadas vezes descuidado, tendo em consideração o seu estatuto enquanto escritor lido em muitos países e traduzido nalgumas línguas. São curiosas as histórias de que Miguel Torga era forreta, que não dava autógrafos e que editava os seus livros para poder controlar todo o processo de edição.
Um dia, Miguel Torga foi surpreendido pelo chefe da estação Velha (em Coimbra há duas estações) subindo para uma carruagem de terceira classe. Julgando que se tratava de um equívoco, aproximou-se do escritor e observou:- V. Exª. vai em terceira classe? Torga, num sorriso:- Porquê? Há quarta?
Uma de muitas histórias de um homem que foi perseguido pela PIDE, que assinou manifestos para a libertação de presos políticos e nos seus diários deixa bem clara a sua posição anticolonial, e a sua oposição à guerra nas colónias.
Nunca foi muito pródigo em elogios para com os políticos que emergiram no fim dos anos 70, apesar de ter sido um antissalazarista assumido, sentindo na carne o ostracismo do Estado Novo, e foi-se distanciando cada vez mais das pessoas, até à sua morte ocorrida em Coimbra em 1995.
Somerseth Maugham gostava de dizer que um dos aborrecimentos da vida é ser mais fácil abandonar os bons hábitos que os maus. A grande qualidade contemporânea da maioria da classe política que vai polvilhando a máquina do Estado é a falta total e absoluta de sinceridade. Maus hábitos começam a transformar-se cada vez mais em farsantes e o que acaba por ser ainda mais deprimente, é que a maioria das pessoas também acaba farsante porque acredita no que dizem e nunca fazem, argumentando e jurando a pés juntos que não acreditam neles. Como dizia outro farsante Oscar Wilde, “um pouco de sinceridade é uma coisa perigosa, e muita sinceridade é absolutamente fatal” . É isso!
Contudo não se deve confundir classe política com a política, ou com a discussão política e as ideologias, por mais pueris ou idealistas que pareçam. Voltou a ouvir-se insistentemente os velhos clichés de outros tempos em “que a minha política é o trabalho”, “os políticos são todos uma merda” ou “a política não dá pão a ninguém”, etc. A realidade é que há politiqueiros que se fazem na politiquice, ganham o pão e querem que as pessoas achem que sem eles a terra não gira e o sol nunca aparece! Foi essa retórica, ou parecida que fez florescer as ditaduras e democracias travestidas de conceitos neoliberais, por isso olho sempre com reserva esse léxico. A desilusão acumula-se quando vou vendo o que acontece em sessões de cariz partidário e ouço a maior parte dos intervenientes, onde faltam ideias e sobra cada vez mais intriga pessoal sobre o desmando de certos mandos.
Jorge de Sena, na sua angústia perpétua, disse: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".
Fernando Pereira
10/8/2015

Vamos brincar à liberdadezinha! / O Interior / Guarda 13-8-2015


Vamos brincar à liberdadezinha!
“O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista”- Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.
Gajo Petrovic em “Humanismo Socialista” afirma: “A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O ‘medo à liberdade’(escape from freedom) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser.”
A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra” liberdade”.
Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.
Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o “homem contemporâneo se aliena da sua essência humana” -afirmação que implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.
Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo, é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou “a mentalidade fascista”.
Nós talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal “desejo intenso de liberdade”. E se o nosso “medo de responsabilidade” está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.
“A liberdade é olhar em volta”, dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filne o “Acossado”) acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.
“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é , de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre”.
È com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.
No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.
Uma das lutas que se desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que a coberto de uma prudente tranquilidade vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.
A cobardagem nunca estás de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.
Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.

Fernando Pereira
8/08/2015

Judeus em Angola / Ágora / Novo Jornal / Luanda 7-8-2015



Amiúde, ouve-se falar da vontade de António Salazar em instalar em Angola uma colónia de judeus, expulsos da Europa, na sequência da onda de antissemitismo que precedeu a segunda-guerra mundial.
Uma perfeita estultice esta afirmação repisada ao longo dos tempos. Eu ouvia-a frequentemente nos serões de minha casa, onde os meus pais e alguns amigos discutiam estes assuntos, e durante anos eu próprio ia defendendo esta inverdade.
A primeira ideia “consistente” de colonização judaica em Angola surgiu em 1915 pelo judeu russo Walter Terlo, apresentada no Almanaque Israelita, estabelecia a fixação no “Planalto de Angola”, mais propriamente em Benguela. Esta proposta teria surgido do republicano José Relvas no dealbar da Republica em Portugal em 1910, por proposta de emissários da Jewish Territorial Organization (JTO).
Este projeto era concebido pela JTO, que sondou parlamentares portugueses no sentido de instalar uma colónia judaica em Angola. Esta ideia já vinha de 1903, na sequência do pogrom contra os judeus ocorrido em Kishinev, na Rússia, em que se colocava como alternativa de refúgio o Uganda ou Angola.
Houve propostas concretas no parlamento português e só a instabilidade política dos anos da 1ª republica em Portugal impediram a aprovação dessa instalação pelas duas camaras, que concedia a naturalização e punha à disposição de cada judeu , que se apresentasse, 250 hectares de terreno cultivado.
Em 1917 o processo é abandonado e retomado em 1930, já no período de vigência da ditadura em Portugal. A 7 de Janeiro de 1934 o jornal britânico Daily Herald faz referência a uma pretensa autorização dada pelo governo português, à emigração de um número limitado de judeus para a colónia. O artigo, reproduzido no “Século”, que acabou por ser censurado pelo regime, noticiava ainda que Portugal não tinha “capacidade para colonizar a região” e que, por outro lado, não se adequando “os seus meios agrícolas obsoletos” às “necessidades de uma economia agrícola mecanizada”, esta deveria ser “instalada na colónia”.
O putativo artigo do “Século”, acrescentava que o governo estava disposto a assistir-lhes com empréstimos a fim de lhes permitir que se dedicassem a trabalhos agrícolas e outras indústrias, na condição de se naturalizarem portugueses e cumprirem serviço militar nas Forças Armadas Portuguesas.
Em Londres, o embaixador português recebia insistentes pedidos de judeus alemães para a instalação de uma colónia de judeus em Angola, lembrando que em 1912 o Parlamento Português tinha aprovado essa fixação, ao que o MNE português lembrava que para aprovar essa legislação ao tempo era necessária a aprovação das duas camaras, algo que não sucedeu, não passando pois de um projeto lei.
O então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal Macelo Mathias, ia colocando alguma contenção no entusiasmo do embaixador em Londres relativamente ao assunto, pois Salazar e o seu regime viam com muitas reservas a presença de grupos de estrangeiros organizados nas colónias, mesmo com as promessas de avultados fundos por parte de Fritz Seidler e Ernest Meyer, representantes da JTO.
Como era hábito na diplomacia portuguesa ao tempo, prolongava-se o “nim” até onde fosse possível, e só já no fim de 1934 é que saiu uma circular para os consulados de Portugal a impedir que fossem “visados passaportes de cidadãos estrangeiros que quisessem exercer atividades económicas em Angola”. Objectivamente era para impedir qualquer veleidade por parte de grupos de judeus.
O argumento usado pelo governo da ditadura para recusar a criação de um colonato judeu em Angola, foi um argumento do medo de abrir um “problema semita”, com a entrada em Portugal de judeus, “cuja tendência nómada e diferenciação rácica e religiosa os tornam praticamente inassimiláveis”. Marcelo Mathias, MNE ao tempo, atribuía aos judeus “certo caracter comunista” que os tornara “suspeitos à maioria dos estados capitalistas”.
Era necessário ter em consideração a matriz ideológica da Constituição de 1933 e simultaneamente a componente religiosa subjacente à Concordata assinada entre Portugal e a Santa Sé, que incluía o Estatuto Missionário, para justificar as reservas mantidas por Salazar em relação a qualquer hipotética instalação de colonatos de judeus em Angola. Nunca terá visto com bons olhos esta remota hipótese, e só a sua diplomacia de contemporizar terá permitido alimentar ilusões a alguns, que nunca terão passado disso mesmo.
A presença da figura discreta, mas de uma influência impar na diplomacia portuguesa nas décadas de 30 e 40 de Luis Teixeira de Sampaio, um germanófilo assumido, que contribuiu decisivamente para cortar cerce algumas tentativas deste tipo por parte de Armindo Monteiro, por exemplo, ministro das colónias (1931-1935), ministro dos Negócios Estrangeiros (1935-1936) e embaixador de Portugal em Londres (1937-1943), ao tempo figura de primeiro plano na constelação salazarista.
Julgo ter contribuído para repor alguma verdade sobre um tema que tem trazido múltiplas discussões e afirmações perentoriamente erradas ao longo de décadas, mas que face aos documentos que entretanto estão disponíveis, tudo que coloquei está muito próximo dos factos ocorridos. Perante a teimosia dos factos nada a fazer!
Em breve tentarei fazer um artigo sobre a espionagem alemã na segunda guerra mundial em Angola, para se acabar também com algumas suposições!

Fernando Pereira
3/8/2015

1 de agosto de 2015

O Fantasma da Liberdade / Ágora -Novo Jornal - Luanda 31/ 7/2015



O Fantasma da Liberdade.
“O desejo intenso de liberdade, aliado ao medo da responsabilidade, tem como resultado a mentalidade fascista”- Escreveu Wilhelm Reich em “A Função do Orgasmo”.
Gajo Petrovic em “Humanismo Socialista” afirma: “A liberdade é a essência do homem, mas isto não quer dizer que o homem seja sempre e em toda a parte livre. O ‘medo à liberdade’(escape from freedom) encontra-se difundido no mundo contemporâneo. No entanto, tal facto não refuta a tese de que o homem é o ser da liberdade; confirma apenas que o homem contemporâneo se aliena da sua essência humana, do que ele como homem pode e deve ser.”
A afirmação de W. Reich tem a apreciável virtude de conjugar a liberdade com a responsabilidade. Reich, tão incompreendido quanto perseguido, teve de expiar a repulsa pelas ideologias. Como pensador absolutamente antitotalitário, desprescindia da ligação intrínseca entre liberdade e responsabilidade, o que dificulta a mistificação paranoica dos que pretendem restringir, a todo o custo, a extensão significativa da palavra” liberdade”.
Partilhamos sólidas razões para reconhecer que a liberdade, constituindo a essência humana, tem estado sujeita a uma trama de restrições. Bem o sabemos. E será difícil rebatermos a afirmação universalizante segundo a qual o medo da liberdade constitui uma das características do “mundo contemporâneo”.
Já nos parece muito mais metafísica, quiçá desvirtuada e logicamente inexata, a afirmação de que o “homem contemporâneo se aliena da sua essência humana” -afirmação que implicando um inexistente conhecimento dessa “essência”, terá de ser devidamente arquivada na arqueologia do saber.
Retenhamos do confronto o seguinte: 1) que o medo da liberdade, enquanto complexo subjacente às atitudes de cidadão e comunidade, é reconhecido como um obstáculo à emancipação do homem; 2) que desse medo enraizado no inconsciente individual e coletivo, é uma esquiva à responsabilidade e só favorece aquilo que Reich chamou “a mentalidade fascista”.
Nós, angolanos, talvez tenhamos vivido durante excessivo tempo no tal “desejo intenso de liberdade”. E se o nosso “medo de responsabilidade” está na proporção direta desse desejo, facilmente se explica a grande cobardia que aos mais diversos níveis (mas todos mais ou menos privilegiados) tem atuado sobre a nossa vida.
“A liberdade é olhar em volta”, dizia o jovem Jean Luc Godard (1959 sobre o filne o “Acossado”) acaba por encerrar uma visão aristotélica de um novo caminho de liberdade do cinema francês do dealbar dos anos 60.
“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: Uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade elas nos agradam por si mesmas, e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa nenhuma, preferimos, por assim dizer, a vista ao demais. A razão é que ela é , de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre”.
È com este belo parágrafo que Aristóteles começa a sua “Metafísica” e com ela inaugura, de certa maneira, os vícios do logocentrismo idealista que virão a marcar, praticamente toda a evolução da cultura e da filosofia ocidentais até à rutura instaurada pela teoria das formações sociais e da sua história.
No esquema mental dominante, ou prevalecente, como é mais gostoso dizer-se, determinado por um sistema de linguagem em que a noção de “ver” é obviamente assimilada à de compreender.
Uma das lutas que se desenvolvem os que amam a liberdade é contra a cobardagem. Há os que a coberto de uma prudente tranquilidade vão pontualmente delineando quotidianamente o apocalipse, cientes que em pouco tempo qualquer alteração do status quo se resolveria com um qualquer autoritarismo.
A cobardagem nunca estás de facto do lado da indecisão e conhece de que lado está a força das armas, a única força capaz de “libertar” os medrosos da responsabilidade. Trata-se de obter a segurança mediante o usufruto de algo monocromático.
Estamos a raiar a fase em que o inconformismo não se pode exprimir e o açaime que nos vão impondo aumenta em todas as frentes.
Fico-me nas divagações com o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen no seu “Livro Sexto”:
Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo



Ou como diria José Gomes Ferreira: Liberdade, muro transparente de cada um!

Fernando Pereira
27/7/2015
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