7 de setembro de 2018

O RENDER DA GUARDA/ Novo Jornal/ Luanda 7/9/2018






O RENDER DA GUARDA
A modalidade mais praticada num presente passado do nosso País tem sido assacar tudo o que é mau para José Eduardo dos Santos e família.
                Nunca fui um prosélito de José Eduardo dos Santos, e jamais deixei de colocar as minhas críticas sobre algumas das suas decisões ou por causa da falta delas em determinados momentos, mas fico surpreendido com o exercício de bandeamento quase coletivo que se observa no quotidiano politico do País.
                Muitos alijam as responsabilidades do que há muito se via correr mal para cima do ex-inquilino do palácio da cidade alta e sua família, esquecendo os tempos em que subservientemente usavam das prerrogativas especiais de serem próximos, ou próximos de próximos.
                José Eduardo dos Santos foi Presidente da República do País durante trinta e oito anos e de facto teria saído pela “porta grande” se o tivesse feito em 2004!
                Uma das muitas críticas que fui fazendo a José Eduardo dos Santos tem a ver com a sua postura de rigidez, de distanciação e um absurdo secretismo da sua vida privada, não olvidando que era uma figura publica.
                À conta disso deixou que se criassem hiatos na sua vida de militante na clandestinidade, no seu passado de ministro e depois da sua exageradamente longa de mais alto magistrado da Nação.
                Não dar entrevistas a jornalistas angolanos, não partilhar os seus gostos musicais, literários, gastronómicos, o não exteriorizar emoções, o dar um formalismo exagerado às suas ausências por motivos privados fez com que a “mujimbuíce” reinasse e a especulação fosse corroendo a sua esfíngica figura.
                José Eduardo dos Santos recebe um legado complicado de Agostinho Neto. O País começava a confrontar-se com uma presença de uma guerrilha por parte da UNITA cada vez mais atuante, e sem que no quadro interno se resolvessem as questões politicas inerentes ao 27 de Maio de 1977, à OCA, Revolta Ativa e outros grupos que estavam com a liberdade cerceada. JES libertou todos, sem que, contudo, fizesse o que teria sido importante, que seria um movimento de catarse política, que poderia vir a servir de exemplo para o futuro político do País que se desejava mais coerente.
                A crise petrolífera no dealbar dos anos 80, aliada ao recrudescimento da guerrilha criou uma situação dramática para grande parte da população, e aí JES conseguiu ir esbatendo o embrião do marxismo-leninismo para a procura de um modelo económico e político mais adequado à realidade do País. A sua postura foi coerente e ia-se afirmando como estadista em termos internos e externos.
                É a figura visível da independência da Namíbia e um dos que terão contribuído decisivamente para o fim do apartheid na África do Sul, sem que internamente resolvesse a questão da eternizada luta contra a UNITA.  Aceita negociar um acordo de paz (Bicesse) e abre Angola ao multipartidarismo.
                Numas eleições precipitadas, por exigências de uma comunidade internacional a lamber feridas da guerra fria, deixa em suspenso uma segunda volta por falta de comparência de Jonas Savimbi. JES tem dificuldades acrescidas para resolver o conflito interno, fruto da exiguidade de recursos e a cada vez maior dificuldade em recorrer a antigos aliados, a braços com os problemas do desmembramento da URSS.
                Liberaliza a economia, e aqui terá surgido a fase primária do que se veio a transformar o seu tempo de governação no futuro, com a utilização indevida por parte de seus próximos da coisa publica, e alguma da sua guarda-pretoriana a ficar com apetecíveis recursos do estado.
                Em 2004 com a Paz finalmente encontrada, JES comete o início do seu hara-kiri político ao continuar na chefia do Estado e do MPLA. Mal aconselhado, mal rodeado e com um circulo de usurários a cercarem-no, alguns deles do seu clã familiar, deixou-se enlear numa teia de compromissos, que fazem empalidecer de vez todo um passado de relevo patriótico.
                JES passou a ser refém do conjunto de interesses que se transferiram do Futungo para a Cidade Alta, e em certos casos era vexatória a impunidade com que os seus próximos iam fazendo negócios e negociatas, enquanto o País deixava perder mais uma oportunidade num tempo em que o petróleo atingiu valores impensáveis no mercado internacional.
                Não deixo de separar o José Eduardo dos Santos que entusiasticamente apoiei em 1992, e que defendi com algum enlevo no início do século, do outro que hoje vai assistindo, provavelmente taciturno, a um tempo novo em que se vai ter que reconstruir o que ele ajudou a destruir para proteger família e alguns homens de mão.
                Confesso que sinto alguma tristeza em ver o JES transformado numa figura shakesperiana do tipo do “Imperador” de Ryszard Kapuściński , livro que relata a fase final do Haile Selassie, mas simultaneamente continuo a dizer que tive muito orgulho em tê-lo como Presidente da Republica do meu País, o que não deixa de ser paradoxal.
                Porque vai abandonar a liderança do MPLA é bom que se diga o que se pensa hoje, porque o futuro próximo será de lhe atirar todas as culpas de quase tudo, mas que num futuro mais longínquo talvez venha “alguém que de mim bom fará”!

Fernando Pereira
4/9/2018


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