16 de novembro de 2013

Até hoje foi sempre futuro / O INTERIOR / 14-11/2013 /




Longe vai o ano de 1845, em que o jovem Karl Marx, escrevia as 11 teses de Feuerbach, e que a décima primeira dizia: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
Foi o preambulo teórico de todo um processo de lutas, e mudanças sociais, económicas e políticas, ao longo de todo século XX.
Estes primeiros treze anos foram a acrimónia dos últimos anos do século transacto. Tem sido feito, com algum sucesso aliás, um esforço continuado em obliterar ideologias que prevaleceram dominantes no mundo no século passado, e que por razões ainda não suficientemente estudadas cientificamente, tem sido guilhotinas, para se saber as devidas causas. O seu lugar foi ocupado pelo liberalismo que se esperava, pois a realidade é que este primeiro tempo de um milénio que se augurava promissor transformou-se num mundo onde a globalização (antes chamada de imperialismo), a selvajaria de novos métodos de velhos sistemas económicas, levaram à descrença a maior parte da população mundial, que entusiasmadamente aplaudiu a mudança.
No campo da tecnologia, houve avanços significativos e as pessoas passaram a estar mais próximas para saberem mais dos outros, com cada uma cada vez maior desigualdade na distribuição da riqueza. Este século, e esta crescente sociedade da informação, dá a possibilidade das pessoas saberem que trabalham arduamente, mas o seu magro salário, ou a dignidade da sua vida é concebida pelos ditames de uns números que giram a grande velocidade numa Wall Street (uma rua em Nova York do tamanho da R. dos Mercadores), de um Nikei em Tókio ou um Dax em Frankfurt, onde muitos milhares de pessoas, enxameiam espaços a vender e a comprar papéis de coisas, que outros realmente produzem em circunstâncias social e materialmente degradantes.
Numa década em que os conflitos étnicos, tribais, fronteiriços e religiosos se multiplicaram e desenvolveram com uma violência inimaginável há uns anos, o que assistimos é a derrota dos que apregoavam, que os países do leste europeu eram a cabeça da hidra do “Eixo do Mal”. A realidade é que a desagregação da ex-URSS mostrou as fragilidades da sua economia, e a sua inépcia em preservar o ambiente, mas também mostrou um sistema que deu quadros mais capacitados e desenvoltos, mesmo para competirem nos mercados tecnologicamente exigentes do centro da Europa, para dar um pequeno exemplo.
A Liberdade é um valor sagrado em qualquer modelo de sociedade, mas a realidade é que com a falta de discussão ideológica, em torno da posse dos meios de produção, do lucro e do seu uso, e dos direitos dos cidadãos, permite que as religiões monoteístas, e as poderosas instituições que as regulam hierárquica e economicamente, tentem ocupar esse lugar, não olhando a meios, e nalguns casos usando torpes razões para fazer valer a sua implantação no terreno.
Iniciámos o milénio com o aparecimento de potências emergentes, mas simultaneamente, os dados dos organismos das Nações Unidas dão 900.000.000 de pessoas a sobreviverem na indigência e na pobreza extrema.
Conceitos de solidariedade, de desenvolvimento sustentado, de remuneração justa, de trabalho digno, de combate continuado à doença e um acesso à educação, são “retóricas”, que já nem no domínio do léxico político se consegue vislumbrar.
Tudo hoje é mais rápido, porque há redes sociais, computadores, meios de transporte mais velozes e cómodos, antenas parabólicas, radares, telemóveis, uma miríade de coisas que apareceram neste milénio, e que vão transformando quem ainda “valoriza outras coisas” em verdadeiros “botas-de-elástico”.
Esta deve ser a minha crónica de despedida do ano de 2013, e infelizmente acho que se mudar alguma coisa vai ser para ficar tudo na mesma. Para muitos só desejo que o ano que aí vem seja melhor que o que está prestes a findar. Para poucos que seja muito pior o que só poderá ser um bom sinal. Sou um pessimista, mas salvaguardo que um pessimista é um optimista com experiencia!

Fernando Pereira
11/11/13

9 de agosto de 2013

«É mais difícil ser livre do que puxar uma carroça.» Vergílio Ferreira / O Interior/ Guarda 8/08/2013




Na lassidão de um Verão eleiçoeiro vamos assistindo ao prometimento adequado às circunstâncias.
O léxico promesseiro pouco varia de outras campanhas recentes, o que indicia que o cumprimento das promessas anteriores ficou-se pelas más intenções de quem as terá feito e descumpriu-as.
Em todas as cidades da região, outrora importantes limitam-se hoje a dar uma imagem serôdia de estatuto passadista, com as propostas mais bizarras por parte de candidatos, esquecendo ou fingindo deslembrar que a fuga de gente se deve à falta de expectativas, fruto do malbaratar dos anos todos da gestão da causa pública. As vilas lá fazem o seu caminho no sentido de serem desclassificadas, e tornarem-se aldeias grandes no seu percurso irreversível na degradação do seu património e para desesperança dos seus habitantes. As aldeias imergem num lodaçal de ideias ao ponto da promessa que maior acolhimento produz reduz-se à reabilitação ou redimensionamento do lar ou a construção de uma sala funerária com alguma dignidade. Demasiado cruel para ser verdade, mas é esta a realidade pungente que assistimos no quotidiano.
Este interior está hoje condenado porque não há emprego. Podem vir as estultices do tipo património da humanidade, teatro nacional ou algo do género que no grande problema ninguém ousa tocar: Não se inova nas propostas para o desenvolvimento económico para que os recursos se potenciem, sejam geradores de receitas e concomitantemente que se criem expectativas de empregos dignos e mobilizadores de novas dinâmicas e expectativas.
Não quero sonhar acordado por isso vou-me entretendo com as frases descabeladas de uma megera da família Espírito Santo, do BES, que já nem se coíbe de dizer em público o que deve ser motivo de chalaça e gáudio nas reuniões familiares deste tipo de gente: “Aqui brincamos aos pobrezinhos”. Esclareça-se que o bisavô desta fulana chamou-se Espírito Santo, porque foi deixado embrulhado num xaile numa roda de um convento, pois a mãe provavelmente nem pobrezinha conseguia ser. Como diria Jorge de Sena: "Eu sou a favor da prostituição. Há pessoas, aliás, que não têm vocação para outra coisa."
Estou numa encruzilhada complicada. Não sei se me tornei mais exigente comigo, se estou menos tolerante perante a estultícia, ou se baixou claramente o nível da discussão e do comentário no conjunto dos fazedores de opinião deste País! Banalizou-se tudo de uma forma tão rápida, que ideologicamente se esbateram as diferenças e cada vez mais é tudo igual com palavras diferentes. Às exceções não lhe é dada importância nem tampouco tempo de publicação.
Hoje é tudo demasiado igual e ideologicamente passámos a constatar que as diferenças estão entre as convicções Zara, Pull & Bear, Primark ou na contrafação da Lacoste ou Thimberland entre outras. Qual Marx, qual Max Weber, qual Lenine, qual Trotsky, ou até mesmo o Maurras de má memória. Isso “faz parte da diarreia mental do seculo XIX” como diria o “Manholas” do Salazar, tão idolatrado por gente que se esqueceu rapidamente desses tempos, ou nunca os viveu, felizmente!
Numa entrevista de 1977, a Manuel Poppe, Sena cita Unamuno numa frase nunca impressa por cá - Portugal, numa das suas múltiplas visitas, deu-lhe a impressão de" um país de anões todos na ponta dos pés para parecerem muito altos"
Fico-me, e já agora aproveitem o Sol!
Fernando Pereira
3/07/2013

19 de junho de 2013

Até Já / O Interior / 13-6-2013



«As pessoas não vendem a terra onde vivem» - frase Sioux
Conta uma velha anedota que o reitor de uma universidade americana, de visita a Inglaterra, via com sorriso superior e condescendente as instalações de uma famosa universidade britânica: na América tudo era maior, tudo era melhor, o equipamento superior; só uma coisa invejava, e essa coisa era a maravilhosa e impecável frescura dos relvados que se estendiam entre os edifícios vetustos da universidade. Como obtinham os ingleses relva tão magnífica? Nos Estados Unidos não se conseguia coisa que se comparasse. Qual era o segredo?
O reitor britânico que acompanhava na sua visita o ilustre colega yankee, até aí visivelmente agastado, não pôde esconder um sorriso de malícia e esclareceu com falsa candura: “O segredo? Muito simples. Basta regar e cortar a relva, voltar a regar e a cortar periodicamente; ao fim de trezentos anos fica assim…”
Gosto desta anedota: não é aquilo a que costuma chamar-se cultura qualquer coisa como o relvado britânico? Apenas a persistência do esforço, a rega e a poda regulares, a continuidade do empreendimento, a paciência e a perseverança do exercício, alcançam, no âmbito do saber e da criação, produzir esses frutos de polpa rica, densa, nutritiva, saborosa que são o tesouro das nações. E não basta que uns quantos se apliquem à tarefa por desfastio; é preciso que as gerações se sucedam, acumulando a experiência, suscitando a tradição do trabalho bem feito, renovando o viço.
"O Povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só vos falta as qualidades.". Esta frase de Almada Negreiros, poeta português do grupo Orpheu, cúmplice e contemporâneo de Pessoa, nascido em S. Tomé e Príncipe no fim do século XIX, continua adequado já que nunca temos tempo para nada, fazemos tudo a correr, e enleamo-nos em projetos múltiplos para no fim nos habituarmos a atamancar qualquer coisa, preocupando-nos mais com os “exteriores” do que propriamente com a solidez e eficácia dos “interiores”.
Como estamos em tempo de pré-campanha eleitoral nada melhor que recordar Antero Quental (1842-1891), que escreveu: "A república é, no Estado, liberdade; nas consciências, moralidade; no trabalho, segurança; na nação, força e independência. Para todos, riqueza; para todos, igualdade; para todos, luz”. Pois era esta a Republica sonhada, mas nunca passou de desejada por culpa de todos nós.
Às autárquicas vou voltar quando conseguir compreender um conjunto de coisas que me escapam, mas gostava muito que Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e o seu “Contrato Social “ estivessem presentes: ”Uma sociedade só é democrática quando ninguém for tão rico que possa comprar alguém e ninguém seja tão pobre que tenha de se vender a alguém”.
Fernando Pereira
10/6/2013

11 de maio de 2013

BULLSHIT- O Interior 9 de Maio de 2013




Talvez por isso seja oportuno recordar as palavras de Ramalho Ortigão em 1873, nas “Farpas”.
«A Imprensa de Lisboa não tem opinião. Aqueles que dos seus membros que por exceção pressentem as ideias próprias, vivas, originais zumbindo-lhes importunamente no cérebro, enxotam-nas como vespas venenosas. É que a missão do jornalismo português não é ter ideias suas, é transmitir a ideia dos outros. Por tal razão em Lisboa o homem que pensa não é o homem que escreve. O jornalista nunca se concentra, nunca se recolhe com o seu problema para o meditar, para o estudar, para o resolver. Nunca procura a verdade. Procura apenas a solução achada pelo público dele, pelo seu partido político, pelos consócios do seu clube, pelos seus amigos, pelos seus protetores (...). O jornal não é uma fonte de crítica, de análise, de investigação (...) O jornalista é o aguadeiro submisso e fiel da opinião. Não dirige, não a corrige, não a modifica, não a têmpera (...). A Imprensa periódica é simplesmente o cano.»
Tenho mesmo que agradecer ao Ramalho Ortigão estas palavras, porque conseguem descrever de uma forma minuciosa e assertiva tudo o que pretendia dizer, e certamente embrulhar-me-ia em tretas (Bullshit) que acabavam por deixar os leitores perplexos, baralhados e a reafirmar que o jornal perde tempo a dar-me uns caracteres.
Porque hoje estou claramente em contramão, e porque faz sessenta anos que Vergílio Ferreira escreveu a “Manhã Submersa”, uma obra imorredoira do romance contemporâneo português, lembrei-me dele enquanto meu professor no Liceu Camões, em Lisboa, no distante 1968.
Como é habitual nestas circunstâncias, podia vir para aqui tecer loas ao homem de Melo, mas, na realidade, fiquei com uma péssima impressão do professor Virgílio enquanto meu professor de português, que tinha uma má relação com muitos colegas, um dos quais o neorrealista Mário Dionísio. Ao tempo um imberbe e um aluno sofrível, dessabia que aquele tipo seco, que eu não entendia, era um razoável brilhante escritor, de que só acabei por dar conta anos mais tarde. Recordo certa vez, na Guarda, termos conversado longamente, quando da sua presença no primeiro dez de Junho de 1977 em que foi instituído o “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades”, onde a sua intervenção foi ofuscada por um arrebatador “Jorge de Sena”.
A realidade é que, quando se reformou do ensino, deu uma entrevista em que afirmou que nunca gostou de lecionar, fazia-o para sobreviver, e “sentiu sempre que nunca foi um bom professor”. Senti-me ressarcido das péssimas notas que me deu e só o desculpei porque me ajudou a ver com outros olhos algumas situações que tão bem descreveu.
Para que conste, falei do Vergílio Ferreira e não de qualquer outro Vergílio, nem tampouco o das “Éclogas” ou “Bucólicas”, que era de Roma e nada tinha a ver com Gouveia.

Fernando Pereira

14 de março de 2013

“E Depois do Adeus” / O Interior/ 14-3-2012




“E Depois do Adeus”
Na RTP, o tal canal de “serviço publico”, aos domingos roda uma série sobre a vida dos muitos, que em 1975 abandonaram as colónias portuguesas e regressaram de forma intempestiva a Portugal.
A série, “E depois do Adeus” excluindo os tiques normais de qualquer historieta, que precise de clichés que agarrem audiências tenta de uma forma canhestra dar a imagem caótica de um PREC, em que os maus são as gentes do MFA, os militares do 25 de Abril de 1974 e os trabalhadores que à tentativa de boicote económico por parte de patrões resolveram tomar nas suas mãos o destino de fábricas, bancos, empresas e campos que se perpetuavam no abandono.
Eu comecei a ver a série, na expectativa de poder assistir a um conjunto de episódios romanceados que evidenciassem uma realidade que alguns de nós viveram muito de perto, de forma voluntariosa e militante e que não tem nada a ver com este “pastelão”, uma mistura de “Noivo das Caldas” com o “Grande Elias” e um pouco de “Revolução de Maio” para condimentar ideologicamente a novela.
Naturalmente com a plêiade de “guionistas” que arranjaram era pouco expectável que fosse melhor que isto, mas realmente fico estupefacto quando vejo na série que quem conduziu o processo revolucionário foi o MRPP, onde ao tempo andava o Franquelim, o Barroso, Lamego e outra gente que hoje se passeia nos antípodas das convicções (ou eram as mesmas, ainda que travestidas?). As imagens são de um país a ferro e fogo, o que efetivamente só sucedeu quando Carlucci e Soares resolveram congeminar a estratégia para que Portugal chegasse ao século XXI com uma significativa percentagem de pessoas a aspirar ter um Salazar que os ponha na ordem. Não recomendável opção por muito má que alguns tornem a democracia!
A RTP poderia ter “agarrado” no excelente livro de Dulce Maria Cardoso “ O retorno”, que apesar de algumas reservas ideológicas acho um livro muito bem escrito e contextualizado num tempo em que se desejava que cada dia fosse diferentemente melhor que o anterior. Não o fez, e num horário nobre faz-nos entrar pela casa dentro uma “cabotinice” que não consegue alinhar com a história, de um tempo que passou e que se viveu com todo o entusiasmo e empenho que tínhamos para dar.
Na Guarda a chegada dos “retornados” das ex-colónias foi talvez o facto mais marcante da região nos últimos cinquenta anos e assistimos às alterações do quotidiano desde a cidade capital à mais recôndita aldeia do distrito. Para além do inevitável choque de mentalidades revitalizou-se a economia local e desenvolveram-se novos hábitos que em determinada altura se miscigenaram, com uma realidade muito próxima da hegemonia do púlpito e na esfera dos poderosos de cada terra, sustentáculos ideológicos e económicos do bafio salazarento.
Inicialmente vistos com desconfiança foram sendo integrados e durante alguns anos foram-se paulatinamente atenuando as divergências e as desconfianças entre os que por cá penaram e os que cá aterraram e aos seus lugares se devolveram.
Politicamente foram aproveitados pelas forças políticas de direita, e o ódio permanente aos partidos de esquerda nomeadamente ao PCP foram por demais evidentes. Naturalmente que uma força de quatrocentos mil votantes novos no País inclinou claramente a tendência do poder que se tem mantido desde o “Noutembro” de 1975.
Quando assistimos ao progressivo definhar do interior, ao cada vez maior distanciamento das pessoas à prática política obrigamo-nos a refletir se merecemos que certa gente nos governe, sem que haja uma clara objeção de consciência para que muitas das suas desacertadas decisões não sejam acatadas, porque não é a democracia que está a mais são pessoas que não merecem a democracia onde se insinuam e aninham perante a nossa indiferença e silencio.
Fernando Pereira
11/3/2013

22 de fevereiro de 2013

A Barrica do Americano/ Ágora/ Novo Jornal 266/ Luanda 23-2-2012






Nos primeiros dias de Outubro de 1856 aporta a Luanda o brigue americano “Charlotte” que trazia uma carga no mínimo bizarra: o comandante do barco que falecera durante a viagem.
A tripulação, no intuito de levar o seu corpo para a América, resolveu colocar o cadáver numa barrica cheia de aguardente para retardar a inevitável decomposição.
Como entretanto o processo não resultou, e os despojos deixavam no barco fétidas exalações, houve a necessidade de procurar um porto onde o marinheiro pudesse ser enterrado com todas as honras inerentes.
Chegados, e desconhecendo os hábitos locais dos enterros em Luanda, limitaram-se os tripulantes a transportar, com cuidado, a barrica para o local que lhes indicaram como sendo cemitério público, e dispuseram-se a fazer baixar à terra o seu defunto capitão.
Sem que o esperassem, os marinheiros confrontaram-se com uma série de problemas, o primeiro dos quais o facto de o cadáver não trazer consigo o bilhete de sepultura, comprovativo de que a taxa municipal fora paga. Para que conste, era administrador do cemitério João José da Costa Fêo, um burocrata de mérito.
A barrica ficou a exalar um cheiro nauseabundo no cemitério do Alto das Cruzes aguardando o resultado dos desenvolvimentos burocráticos.
Passados dois dias, um calor abrasador e a avidez de episódios picantes numa Luanda pacata, levou a que o assunto da barrica com o capitão assumisse foros de escândalo e motivo de conversa em todos os locais da cidade onde se multiplicavam tertúlias e reuniões próprias para desfastio das longas horas de monotonia e canícula.
Naturalmente, o caso chegou aos ouvidos do Governador – Geral, José Rodrigues Coelho do Amaral, que exigiu ao então presidente da Câmara, Francisco d’Assis Rocha Caldeira, que “passasse sem demora o bilhete de sepultura a fim de ser enterrado o capitão americano, na parte do cemitério reservado aos não católicos”.
Despoletou-se aqui uma guerra entre o Governador, que detestava ser contrariado, e o Presidente da Câmara quanto ao local do cemitério onde se deveria enterrar o que provavelmente já só restava do capitão em “barrica de aguardente sem alhos”. O Governador insistia no enterro no campo dos protestantes. O Presidente da Câmara dizia ser este administrado pelos ingleses, e que o enterro no campo de pagãos e não católicos iria abrir um precedente de consequências imprevisíveis no futuro sobre quem deveria ser enterrado nesse local, que fora inaugurado em 1837. A criação deste cemitério levou à proibição de enterrar os mortos nas igrejas, a partir de 1841, apesar de, em 1853, ter sido excecionalmente enterrado o Chantre da Sé, José Manuel Gonçalves da Cunha, na Igreja de Santo António, o que motivou enormes manifestações de desagrado por parte da sociedade luandense de então.
Voltando à pipa, ou melhor, à barrica, aconteceu a abertura de uma cova por ordem de mister Edmond Gabriel (representante de S. Majestade Britânica na comissão mista que observava o cumprimento do fim da escravatura, e simultaneamente administrador do cemitério dos ingleses) que, por qualquer motivo, recuou e impediu que o corpo fosse enterrado naquele campo no cemitério, talvez porque o defunto fosse americano e não um súbdito de Sua Majestade.
Novos desenvolvimentos se dão quando o governador, do alto da sua autoridade, acaba com a situação de impasse que se tinha gerado, agravada pelo facto de, simultaneamente, ir aumentando a fétida mistura de decomposição do corpo com a aguardente. obrigando a que a 5 de Outubro de 1856, pelas duas da tarde, o adjunto das obras públicas e o grupo de sapadores enterrassem a barrica com o corpo do infausto marinheiro, “trabalho concluído a preceito às 4 da tarde.”
Apesar do calor tórrido e do cheiro nauseabundo que se fazia sentir, o enterro foi acompanhado por muita gente curiosa de ver o resultado final do funeral de alguém que ajudara a manter um braço de ferro entre várias estruturas do poder colonial na cidade de Luanda.
O nome “Alto das Cruzes” deriva do cemitério dos Ingleses, pois eram os únicos que colocavam cruzes altas nos seus túmulos, e visíveis de quase todo o perímetro urbano de então.
Desde 1837 até 18 de Setembro de 1861, o cemitério não tinha muros nem gradeamento, ficando os defuntos à mercê de ataques de animais e roubos por parte de alguns feiticeiros que os usavam nas suas práticas. A data de 1859, que se vê à entrada tem a ver com a colocação do portão e não com o fecho total do muro circundante.
Todos os documentos podem pode ser consultados no Arquivo Municipal de Luanda, e no brilhante trabalho de José de Almeida Santos, no seu conjunto de livros “ na Luanda de há cem anos” , dedicados à cidade, numa edição da Câmara Municipal de Luanda, no dealbar dos anos setenta.

Fernando Pereira
19/2/2013

15 de fevereiro de 2013

Talvez o céu me queira! / Ágora / Novo Jornal 265/ Luanda 15-2-2012




Começo com Santo Agostinho: “Para se exercerem as virtudes do espírito é necessário um mínimo de conforto material.”
Millôr Fernandes (1923-2012), humorista, desenhador, escritor, dramaturgo, artista plástico e jornalista brasileiro recentemente desaparecido deixou uma obra prenhe de escritos adoráveis, reveladores de uma sagacidade e acutilância muito raros no comum dos mortais.
O Pif-Paf foi editado um mês após a instauração da ditadura brasileira na sequência do golpe de estado de 1964. Pretendia-se uma revista de humor e liberdade, onde terão colaborado, na sua efémera existência de oito números, alguns dos grandes humoristas e desenhadores de BD do Brasil. Evidentemente que a censura obrigou ao encerramento da revista, o que levou Millôr a ter que procurar outras formas de expressão, tendo colaborado com alguns jornais e revistas, incluindo o português “Diário Popular” e a brasileira “Veja”.
Num dos números do Pif-Paf e com a censura a “picar-lhe os miolos” conta esta deliciosa história:
“DESCOBERTA
Estavam dois caçadores bem no centro de África quando, por trás de uma colina, de dentro de uma gruta, da escuridão de uma mata, do seio de uma grota, surgiu um tigre de dentes de sabre. Disse um dos caçadores: «Um animal pré-histórico! O mais terrível e o mais precioso dos animais pré-históricos! Que vamos fazer?» «Vamos fazer o seguinte-sugeriu o outro, preparando-se para correr.- Você fica aqui e aguenta o bicho, que eu vou espalhar a notícia pela Africa inteira».
Moral: Divulgar certas notícias também requer muita coragem.
Para que conste, não tenho notícia nenhuma para dar a não ser a resignação do Ratzinger, que era só mais um dos muitos papas de quem eu não gostava, mas também acho que nenhum deles teve conhecimento disso. Como nunca há bela sem senão: pela primeira vez, o Vaticano vai ter dois papas. Os beatos, habituados a chorar cada Papa que morre, arriscam-se a perder um espetáculo. Ninguém chora um papa reformado.
Como há leitores que não gostam destas confabulações, vou abordar aqui um tema que há muito me traz preocupado: desde os anos 80, num tempo em que o ICOMOS tinha alguma atividade, julgo não haver nenhuma intervenção posterior ao arremedo de arranjo que ao tempo foi feito. Refiro-me à “Real Fabrica de Ferro de Nova Oeiras”, situada na confluência dos rios Luinha e Lucala, perto da povoação de Cassoalala, a alguns quilómetros de Zenza do Itombe. A fábrica e a povoação de Nova Oeiras foram construídas por incumbência do Governador Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-1772), veiculando a política pombalina de fomento industrial e de incremento da colonização. O governador tomou conhecimento por pombeiros da existência de “ricos minérios de ferro”, na região do rio Luinha, e “mandou fazer o seu aproveitamento em 1756, utilizando nessa fase experimental os processos de fundição e forja usados pelos ferreiros autóctones”.
Do que foi essa “antecipação demasiado ambiciosa para a sua época” ainda há cerca de pouco mais de vinte anos se podia observar dois troços do dique que represava o rio, o aqueduto condutor da água (de 22 arcos e 118 metros de comprimento), um grande compartimento para as rodas hidráulicas, um forno de fundição, uma ferraria com três armazéns e um canal para escoar a água.
Paralelamente, foi edificada uma povoação que Sousa Coutinho denominou de Nova Oeiras (Pombal era Conde de Oeiras) e que para além de numerosas habitações contava com edifícios públicos diversos e a inevitável igreja.
Quando o governador deixou o cargo, a Real Fábrica de Ferro de Nova Oeiras, (“feita com todo o desvelo e com algumas comodidades”),ficou deserta e caiu no esquecimento. A floresta foi ocupando o lugar que só foi reencontrado em 1925 e só conheceu alguma reabilitação em 1972, fruto da obstinação do arquiteto Fernando Batalha.
Há umas décadas que não visito o que foi Nova Oeiras, mas da última vez que lá fui o que vi foi o remanescente (alicerces e escombros das construções) de um dos mais importantes conjuntos dignos de figurar no património reconstruído do futuro mapa da arqueologia industrial angolana.
Citando Millôr Fermandes “Já tenho idade quanto baste para não saber muitas coisas”.
Fernando Pereira
13/2/2013

12 de fevereiro de 2013

Nada se passa enquanto nada se passar / O Interior / 13-2-2013 / Guarda




Num destes dias, no decurso de umas imagens do Portugal a seguir ao 25 de Abril de 1974, dei comigo a refletir no que se alterou nestes quase quarenta anos de democracia cada vez menos plena e cada vez mais desparticipada.
O poder foi partilhado invariavelmente pelos três partidos do chamado “arco da governação”, que ideologicamente pouco diferem uns dos outros, permitindo-me até afirmar perentoriamente que, no essencial, são iguais e as ténues diferenças acabam por aparecer no que é residual, e onde efetivamente fazem o espetáculo da polítiquice para gáudio das TVs e da extensa comunidade de achólogos, tudólogos que inundam painéis de comentadeirice.
Não vou entrar em pormenores ou fulanizar o que quer que seja, que é um hábito adquirido para criar cortinas de fumo para que não haja a veleidade de se discutir o essencial, que tem a ver sobretudo com o modelo económico, a degradação do sistema produtivo do País e, acima de tudo, as sucessivas crises do capitalismo que cada vez tem os seus ciclos de recessão com mais frequência e por períodos mais longos. As consequências são bem visíveis num País que mergulhou num perigoso estado de ansiedade política e descrença, permeável a que, neste constante nevoeiro, emerja um Sebastião qualquer providencial a quem teremos que agradecer por nos dar pancada e pôr na ordem.
Para avaliar as diferenças entre as manifestações de há trinta anos e as de hoje, o que podemos comparar é que, nas do PREC e anos seguintes, quem aparecia com evidência eram os operários da Lisnave, Sorefame, Siderurgia, Setenave, Quimigal, do sector dos têxteis, do sector mineiro, acompanhados por camponeses e rendeiros, gente do comércio e de alguns serviços, estudantes, etc. que não era mais um conjunto de centenas de milhares de pessoas enquadradas em diferentes sectores e com ideias bem definidas de solidariedade, justiça e desenvolvimento económico. Estes representantes dos sectores de atividade eram o que se chamava a estrutura produtiva do País, e este conjunto de pessoas trabalhava numa economia com debilidades estruturais, mas que representava muito no tecido social e económico português.
Passados trinta e muitos anos, as manifestações passaram a ter funcionários públicos, reformados e desempregados de longa duração e as reivindicações deixaram de ser pela estabilidade das empresas, pela participação dos trabalhadores nos sectores determinantes da sociedade portuguesa, e assistimos, impávidos e serenos, ao estertor final do magro tecido empresarial português porque a Europa assim o quis e sempre teve por cá quem se prestasse a esse papel sem abjurar o que quer que fosse. Revelado está aqui nas manifestações que há cada vez menos produção nacional e cada vez mais gente dependente de um Estado insuportávelmente obeso.
Portugal tem mais recursos que a maioria dos países europeus, mas também tem a subserviência, para não ousar dizer venalidade, em aceitar sempre tudo que é imposto de forma a manter as pessoas quietinhas e submissas, a olhar para um PSI que em tempos se utilizava para chamar um táxi no meio de uma rua, e que hoje regula uma coisa que se chama pomposamente de “mercado”, onde apenas se vêem empresas prestadoras de serviços ou os sacrossantos bancos .
«A moeda única é um projeto ao serviço de um diretório de grandes potências e de consolidação do poder das grandes transnacionais, na guerra com as transnacionais e as economias americanas e asiáticas, por uma nova divisão internacional do trabalho e pela partilha dos mercados mundiais.
A moeda única é um projeto político que conduzirá a choques e a pressões a favor da construção de uma Europa federal, ao congelamento de salários, à liquidação de direitos, ao desmantelamento da segurança social e à desresponsabilização crescente das funções sociais do Estado.»
Resolvi, propositadamente, colocar primeiro a citação com que grande maioria das pessoas concorda, mas quem a fez em 1997 foi chamado de radical por dizer o que hoje é racional, e sectário por dizer o que hoje é consensual.
O enorme respeito que lhe tenho pela sua probidade intelectual e seriedade política, obriga-me a citar Carlos Carvalhas, ao tempo SG do PCP, numa “interpelação do PCP na Assembleia da República sobre a moeda única”.
Fernando Pereira
7/2/2012

8 de fevereiro de 2013

Re(flexões)/ Ágora/ Novo Jornal 264 /Luanda 8/2/2012




Há mais de vinte anos que sou visitante da FITUR, Feira Internacional do Turismo, no parque de feiras de Madrid.
É uma das maiores feiras de turismo do mundo e serve sobretudo para aquilatar o que vai ser o ano do turismo numa economia mundial em recessão económica, em que os mais importantes fluxos de turistas são precisamente de países onde há mais problemas no quotidiano das suas economias.
A FITUR foi, este ano, uma deceção que não me surpreendeu pois via-se muito pouca agitação nos stands onde em anos anteriores fervilhava o movimento de compra e venda de produtos turísticos.
A INFOTUR lá colocou o seu habitual stand, com alguns cuidados supletivos em relação a outras mostras, principalmente com maior ênfase no grafismo das suas propostas e na simpatia do seu pessoal. Este facto acaba por representar uma aposta afirmativa dum País que quer ombrear com outros, numa indústria onde temos potencialidades, mas ainda muito longe de proporcionar ao visitante uma estadia com qualidade, agravada por preços bem diferentes do que se pratica noutros países limítrofes.
Para além da excelência das propostas da maioria dos Países, através dos seus organismos reitores de turismo ao nível central e regional, redes de hotéis, companhias de aviação e agentes de viagens, há nestes eventos um crescente interesse em áreas que passaram a assumir uma importância não despicienda. Refiro-me ao crescendo na tentativa de mobilizar os turistas na defesa de alguns valores que foram esquecidos anos a fio pela indústria do turismo.
A aposta no turismo em ambiente saudável é já hoje uma obrigação trivial na oferta dos agentes de todo o mundo. Acrescente-se que, em muitos stands, a preocupação atual é demonstrar que, nos países onde se quer cativar o turista, tem que haver respeito pelos trabalhadores, esforço pela erradicação da miséria, respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos e uma reprovação bem firme à exploração sexual de crianças e menores.
Mais que dispor de praias de areias finas e águas azuis transparentes, cada vez mais as pessoas olham para o ambiente que as rodeia no lugar onde passam férias ou momentos de lazer porque se tornaram sensíveis aos problemas sociais e não querem pactuar com situações que possam violentar as suas convicções ideológicas, religiosas, culturais ou outras.
Angola tem que se preocupar em arrumar a casa primeiro, pois esta é a tarefa mais difícil para construir a sua indústria de turismo sustentável e com uma contribuição razoável para o PIB do País.
Construir hotéis, resorts, marinas ou outras estruturas físicas para albergar visitantes acaba por ser o mais fácil, já que há capacidade de investimento por parte de empresários locais ou estrangeiros. A formação profissional terá que ser acelerada, e os profissionais deverão começar a ser pagos de forma digna, no contexto duma a atividade económica exigente.
Desburocratizar as entradas no País, acabar com o mercado paralelo nos aeroportos, desde o tipo que se oferece para nos carregar a mala, até ao que nos facilita a entrada a troco de uns cobres, depois de um desagradável leilão, e outras realidades que são evidentes a quem nos visita pela primeira vez.
Acabar de vez com a discricionária e idiota proibição de tirar fotos a certos edifícios, por razões de segurança, é uma medida urgente porque na realidade com “googles earth” e sucedâneos só conseguimos envergonhar-nos quando alguém é detido porque “se presumiu que se tirou uma foto a qualquer lugar”.
Como se pode ver por alguns poucos detalhes, há um esforço tremendo para que o País venha a ter um turismo diferente do que vamos tendo, que se resume ao de “negócios” e ao de “saudade” de todos os que saíram na leva de 1975, agora romanceada de uma forma discutível no recente “Depois do Adeus”, série portuguesa da RTP sobre a ponte aérea que precedeu a independência da então República Popular de Angola e a reinserção em Portugal dos então chamados “retornados”.
Hei-de voltar ao tema que julgo merecer um conjunto de propostas que possam contribuir para que o País passe a ter uma montra que espelhe uma realidade acolhedora e de acordo com valores que queremos implantados no quadro político e cívico de Angola.

Fernando Pereira
4-2-2013

7 de fevereiro de 2013

A Batalha do Adesivo / O Chá nº4 / Novembro-Dezembro 2012 / Luanda





Raul Brandão (1867-1930),jornalista mediano, militar por obrigação e um talentoso e esquecido escritor português, conta que, durante o derradeiro ministério da monarquia portuguesa, João Chagas, um dos proeminentes da revolução que então se urdia lhe falara assim: « (…) . – Que me importa a província! Que me importa mesmo o Porto! A república fazemo-la depois pelo telégrafo»
O caudilho tinha toda a razão: triunfando a revolução em Lisboa, a República seria telegrafada para a província, para as ilhas e para as colónias.
Em Angola, quando se deu o 5 de Outubro de 1910, que marca o fim do regime de monarquia constitucional, é governador geral o tenente-coronel Alves Roçadas, militar português chamado a ocupar as terras dos mulondos que viviam entre os rios Calculevar e Cunene, tendo instalado um forte, o forte Roçadas, que depois da independência da RPA passou a ser Xangongo.
Alves Roçadas foi conhecido como mais um dos “adesivos”, denominação adaptada a todos os que adormeceram convictamente monárquicos e católicos, e nalguns casos com cargos de chefia, e acordaram com redobrada fé republicana e rotundamente anticlericais. A adesão de Alves Roçadas ao novo regime teve ainda o aspeto um tanto caricato de ter vestido de República uma filha sua, hábito que, aliás, na então Metrópole (Meloia na corruptela popular actual), se fizera corrente, a ponto de Raul Brandão referir como um dos “topos” do tempo essas meninas de quarto-andar vestidas à Mariana.
Alves Roçadas seria substituído depois, no governo angolano, por um herói do 31 de Janeiro de 1891, na primeira tentativa de instaurar a República na cidade do Porto, Manuel Maria Coelho, deportado pelo governo ditatorial de João Franco.
O jornal neo-franquista “Correio da Manhã” não perdoa a Alves Roçadas a confissão de que “tinha tido dois dias gloriosos na sua vida, aquele que recebeu a espada pelo feitos no Cuamato e aquele que lhe tinham confiado a bandeira verde e vermelha para ser arvorada na Camara de Luanda.” Para um servidor da bandeira azul e branca da monarquia, convém salientar que foi um “adesivo” bem apressado!
Alves Roçadas voltaria a combater em África em 1914, mas ao tempo contra os alemães, no decorrer da primeira guerra mundial.



No decorrer destes combates contra as tropas alemãs que tentavam a todo o transe conquistar o sul de Angola, onde havia uma razoável colónia de alemães, alguns de segunda geração, foi no forte Roçadas que se concentraram as tropas portuguesas.
A “Ilustração Portuguesa” de 11 de Janeiro de 1915, através do articulista António Penalva, com o título “ A defeza de Angola contra os Alemães” referia em tons encomiásticos a resistência das tropas portuguesas: “Os alemães talaram novamente o nosso território de Angola realizando os seus planos hostis e ambiciosos de muitos anos. Desde longa data que eles acumulam na sua colónia de sudoeste muitas tropas e material de guerra, sobressaindo artilharia grossa. A fera tinha bem preparado o salto que deu agora. Ao ardil com que o preparou corresponde a vilania e traição com que o deu. Sem declaração de guerra, sem o menor respeito pelos mais sagrados preceitos do direito das gentes, irrompe pelas nossas fronteiras em hostes cerradas e procura trucidar quantos encontra desprevenidas.Ou agora, ou nunca pensaram os invasores. Mal tinha tempo de ali haver chegado a nossa primeira expedição, insuficientíssima, apezar do valor e patriotismo do soldado portuguez, para fazer face a tão desproporcionado numero. Essa desproporção era ainda agravada pela longa viagem, seguida de fortes marchas que os nossos soldados acabam de fazer, ao passo que os alemães entravam em combate com o descanço e mais recursos de uma longa preparação, estando já afeitos a um clima tão adverso ao soldado europeu. Não havia que duvidar sobre o êxito d’uma luta que se aceitasse com essa massa esmagadora em terreno que oferecesse a ambos os combatentes igualdade de circunstancias.Mas ainda assim se lutou, ainda se sacrigficaram vidas, porque o portuguez nunca foge mesmo deante d’ estas surpresas traiçoeiras, a que os outros devem os seus efémeros triunfos.”
“E lutou-se com bravura…” Assim ia descrevendo António Penalva, “correspondente de guerra”, numa peça literariamente notável com o título “Como Nós Vencemos no Cuamato”, cada momento da refrega nesse longínquo Janeiro de 1914:
“A região dos Gambos é rica em massambala, massango e milho, que formam a alimentação do indigena.É curioso que fóra da povoação ainda o preto em geral desconhece o dinheiro e só se consegue obter gallinhas, ovos, ou outros productos seus a troco de pannos, aguardente e especialmente sal. Os carregadores tambem acceitam mantas vermelhas, missangas e uns collares feitos de uma concha especial do Ambriz, denominados quiranda de dongo. (…)
“Passa-se depois uma extensa matta de espinheiros em que o solo, alagado pelas chuvas torrenceais, se abre em enormes fendas com o sol do tempo secco. Ahi ha muita caça e as gangas (gallinhas de matto) vêem-se ás centenas. (…)A estrada desde a Chibia nada tem de interessante; toda por entre mattas de muthiati ou espinheiro cortadas por arimos de massambala ou pequenos prados de capim e apparecendo de quando em quando os enormes e deselegantes imbondeiros com o seu monumental tronco assemelhando-se ao corpo de polvo de onde partem innumeros tentaculos”.
“O rio Cunéne, que nasce perto do limite do districto de Benguella, corre desde a altura do Capelongo, proximamente a sul, inflectindo para SW, depois do Quiteve, povoação onde ha alguns europeus e mestiços. Segue depois proximamente essa direcção até que passada a Dongoena, onde existe um posto militar, desvia-se para N. seguindo proximamente a direcção W. até se perder na areia na grande faxa arenosa que separa a costa do interior. É n’este ultimo percurso que o rio vence o desnivel de mais de cem metros da serra da Chella, dividindo-se em tres braços e formando as importantes cataractas de Nanguári. Depois d’este ponto ainda tem muitos rapidos e cataractas que o tornam innavegavel.”


“As comunicações teem que ser feitas em barcos, chegando-se a poder ir assim ao Humbe, e a agua invade as povoações das proximidades do rio, embora ellas estejam construidas nos pontos mais elevados, obrigando por vezes os seus habitantes a abandonal-as. (…)Um facto curioso nos m’lolas é que a agua nem sempre corre na mesma direcção. Explica-se isto pela pequena inclinação que tem n’esta região o leito do rio, que faz com que, quando passa a cheia, haja em pontos mais a juzante um nivel muito superior aos leitos das m’lolas, do que resulta refluir a agua em sentido inverso ao curso habitual, voltando novamente para traz logo que a cheia passa.”




“O Cunéne fóra da epoca das chuvas é vadiavel em muitos pontos, especialmente nos annos de secca, sendo notaveis n’esta região o vau do Cácuma, o vau do João e do Cácua. É navegavel para embarcações de pequeno calado desde perto do Mulondo até á Dongoena. Actualmente existe ali a lancha-canhoneira Cunéne para a policia do rio.”
“A região do Ovampo é essencialmente plana, apenas cortada por ligeiras ondulações. As partes mais baixas formam as chanas cobertas de esplendido capim capaz de alimentar milhares de cabeças de gado. O solo é aqui argiloso, alagando-se no tempo das chuvas e tornando-se intransitavel. As partes um pouco mais elevadas estão em geral cobertas de matto, onde abunda especialmente o mutialt, que n’alguns pontos chega a ter dimensões razoaveis.”
Esta descrição de uma guerra esquecida no sul de Angola, num tempo conturbado em que só a Europa era centro das atenções, mereceu-me alguma atenção e surgiu a partir do momento em que procurava detalhes sobre a forma como a implantação da República em Portugal foi recebida nas colónias.



Fernando Pereira
12/12/2012


1 de fevereiro de 2013

PLANO QUINQUENAL CUMPRIDO / Novo Jornal 263 / Luanda 1/2/2013




O Novo Jornal comemora o seu quinto aniversário e desde a sua criação procurou assumir-se como um jornal de referência no panorama da imprensa escrita angolana.
Enquanto colaborador desde o primeiro número, não acho que conseguisse ser suficientemente imparcial para fazer uma abordagem sobre o percurso deste semanário, relativamente importante, porque julgo ser referenciado por muita gente, nos mais diversificados sectores de atividade.
Com vários jornalistas premiados, alguns muito novos e com um futuro promissor pela frente, esta equipa que faz o Novo Jornal conseguiu começar a tratar de assuntos que não eram “atualidade” no quotidiano dos assuntos que são mediatizáveis no País.
Nasceu este projeto na euforia de uma Angola de crescimento económico enorme, o que augurava que os anos que se seguiriam fossem de uma prosperidade que o País já não vivia desde o dealbar da década de setenta, então colónia de Portugal.
Conseguimos mostrar que a essa euforia não correspondiam avanços inerentes a um desenvolvimento social harmonioso, e fomos, sem o enfatizar, dando relevo ao que de menos bom ia acontecendo no nosso País, sem que o jornal entrasse pelo facilitismo das parangonas que se transformam rapidamente em labelos de autênticos assassínios de carácter de pessoas e que, nalguns casos, de forma soez, tolheram carreiras políticas promissoras.
O Novo Jornal tem que crescer, mas tem que o fazer com otimização dos seus recursos humanos, que são dedicados, trabalhadores, mas que também devem assumir a humildade de que o futuro merece-se conquistando, e a vida de um jornalista faz-se passo a passo e com a modéstia que é apanágio de uma profissão mais vezes incompreendida e tolerada do que desejada. Napoleão Bonaparte dizia a propósito que “tinha mais medo de um jornalista que de um exército inteiro”.
Se me perguntarem o que falta ao Novo Jornal acabo por ter a sensação de que há muita coisa a melhorar e rubricas a ir incluindo para que mais gente nos leia e a sua base de idades seja alargada.
O Novo Jornal, por vezes, torna-se maçador quando pretende fazer uma grande reportagem. Digo-o como um leitor que até tem o privilégio de nele poder escrever o que pensa, sem nunca ver coartada qualquer opinião ou censurada qualquer crónica, ainda que de forma sub-reptícia, como já me aconteceu noutros órgãos de informação, que ao tempo se chamavam órgãos de difusão massiva.
Acho que deveria haver uma página de “mujimbice”, quase telegráfica, em que se passasse para o prelo algumas situações que se circunscrevem aos corredores do poder, ou aos restaurantes da cidade, e a maior parte das vezes com os pés na água no Mussulo ou nas salas de espera dos aeroportos de Luanda ou de outras cidades do mundo onde a Angola dos bons e maus negócios se movimenta, por vezes, com soberba em demasia.
Talvez neste quadro se desenvolvesse uma das maiores pechas do jornalismo angolano - falo de toda a informação - a quem falta a tradição do jornalismo de investigação. Já vamos aprendendo a ler melhor as informações que a Angop vai dando, já temos uma quantidade e qualidade maior de recursos a fontes que não tínhamos há uns anos, mas continuamos a funcionar com muitas “ofertas”, e as noticias que elas envolvem e volvem, sem nos preocuparmos muito na procura "da notícia".

É um trabalho duro para o jornalista, pois exige muita coerência de princípios e também uma solidariedade, não só retórica por parte dos superiores hierárquicos, mas sobretudo por parte de administradores, que não se devem alhear dos problemas do jornal. Mas a história, a solidez e o prestígio dos jornais fazem-se só com isto. O resto, todos adquirem, porque é o mais fácil.
Em determinada altura assistiu-se em Angola a “imitações” , ainda que algo artesanais de “Citizen Kane”, esse imorredoiro filme de Orson Welles de 1941, que é uma critica enorme aos barões dos “media”, que iam proliferando numa América que se preparava para dominar, no universo, o mundo da informação.
A maior parte desses projetos foram jazendo pelo caminho, com um corrupio de credores à espera do dinheiro que nunca irá aparecer. Outros para lá caminham e fazem o que é normal numa fase de estrebuchar: diminuem o número de páginas, o mesmo jornalista assina quatro ou cinco artigos com um nome diferente, mas indisfarçável porque os erros são os mesmos em todos os trabalhos, recorrem a notícias de mails, normalmente de duvidosa proveniência, e outros ardis e subtilezas recorrentes para manter o jornal à tona.
Já agora, em jeito de fim de festa, só me apetece dizer que o Novo Jornal é melhor que os outros porque nos tem a nós, e teve outros que saíram e que nos ajudaram a ser bons, e se quiserem saber a excelência desta equipa acaba por ser fácil, estamos todos na Ficha Técnica do Novo Jornal em que o único que não conta no grupo é o Guilherme Pereira Inglês.

Fernando Pereira
19/1/2013



18 de janeiro de 2013

OH MUSA DO MEU FADO…/ Ágora / Novo Jornal nº261/ Luanda 18-1-2013




Acompanhei, de forma quase militante, os trinta e seis episódios de “ A Guerra”, série documental coordenada pelo Joaquim Furtado, um dos mais prestigiados jornalistas portugueses, presente na “história” do 25 de Abril de 1974 por ter lido os primeiros comunicados do MFA a partir dos estúdios da Rádio Clube Português em Lisboa.
A série é, provavelmente, o trabalho mais honesto que se fez sobre um tema que só há pouco tempo começou a ser possível discutir e tratar nos media portugueses sem os constrangimentos que o mantiveram como um tabu na sociedade, nos meios de comunicação e na classe política em Portugal e nas ex-colónias.
Durante dez anos, Joaquim Furtado e uma multidisciplinar equipa, procuraram fazer um trabalho isento, ouvindo centenas de depoimentos, manuseando milhares de documentos. Finalmente, ficou um legado de grande valor e rigor jornalístico propiciador de múltiplos caminhos.
Depois de um trabalho em livro de João de Melo,” Os Dias da Guerra”, que inclui a fotobiografia da “Guerra Colonial” editada em 1988 pelo Circulo dos Leitores, e outros depoimentos avulsos em livros que têm aparecido no universo editorial da lusofonia, esta série é, indiscutivelmente, o melhor que se conseguiu fazer.
Acaba com mitos que nos foram sendo servidos anos a fio pelas forças em confronto, e de certa forma repõe a verdade de algumas coisas. O proselitismo com que abraçávamos algumas causas pode ser abalado aqui e ali por um ou outro depoimento, mas, em rigor, esta série não vai alterar, no essencial, a convicção de que o que alguns de nós defendíamos estava certo; o que provavelmente estaria errado era sonharmos que podia ser de outro modo ou, como dizem os antigos da resistência ao colonialismo: “Não foi nada disto que combinámos”.
Alguns dos depoentes já faleceram, mas deixaram testemunhos importantes que irão certamente alterar alguns aspetos da histografia oficial de Portugal e ex-colónias, principalmente no que foram os anos do fim do regime de Salazar e Caetano.
Vi a série toda, revi alguns episódios, principalmente os que tinham a ver com a realidade angolana. Surpreenderam-me alguns depoimentos de certas pessoas, fora da lógica da linguagem oficial. Situaram-se num contexto de abjurar algo do seu discurso circunstancial e, simultaneamente, num exercício catártico relativo a situações com que foram confrontadas, numa realidade que nada tinha a ver com o quotidiano dos que hoje olhamos para os episódios de um trabalho magnífico, e que tenta ser sério e o mais revelador possível do cinzentismo dos dias do fim do colonialismo.
O episódio trinta e seis, o último, todo sobre Angola, mostra a situação militar no dealbar dos anos setenta, as divergências no seio do MPLA, a estreita colaboração da UNITA com as autoridades coloniais e a quase nula atividade da FNLA, restringida aos seus santuários no ex-Zaire.
Para além das intervenções de múltiplas figuras, há uma realidade que, involuntariamente, fica a pairar depois de ouvirmos todos os depoimentos: a de que " a guerra em Angola estaria militarmente ganha, já que as atividades dos movimentos eram incipientes e demonstravam uma desorganização enorme, aliada a uma desmoralização evidente entre os guerrilheiros mal preparados, mal equipados, desnutridos e sem capacidade combativa.”
Curiosamente, apenas Adolfo Maria diz: “ Uma guerra de guerrilha não se ganha”, e também um capitão dos Flechas, Tropa da PIDE-DGS, diz: “Nós movimentávamo-nos à vontade em toda a Angola, mas os guerrilheiros também”. Tudo o resto atesta a supremacia, ao que se julga evidente, da tropa portuguesa no teatro de guerra angolano.
Há no conjunto dos episódios uma questão que acabou por me escapar sobre a guerra colonial, e que tem a ver com a necessidade de manter o recrutamento regular de mais de 160.000 efetivos para três teatros de guerra, num Portugal em que se emigrava em catadupa, e onde a maior parte dos emigrantes eram jovens ou refractários da tropa. Acho que a série peca por isso, já que foi "a pergunta não feita" e cuja resposta teria de certa forma dado outro conteúdo à discussão sobre o tema. Em 1974, Lisboa, Porto, Paris, S. Paulo, Luanda e Lourenço Marques eram as maiores cidades portuguesas do mundo em população, o que evidenciava a enorme emigração portuguesa.
Aqui terá estado o verdadeiro “Nó Górdio” do fim da perpetuação militar portuguesa em África, e tudo o resto não passa de justificadilhos. A guerra colonial estava perdida do ponto de vista político e o colapso militar viria mais cedo que tarde, porque a retaguarda estava exangue de gente para mobilizar.
Em jeito de sugestão, agradeço a leitura deste texto com o fundo musical do “Fado Tropical” de Rui Guerra e Chico Buarque.

Fernando Pereira
15/1/2013

11 de janeiro de 2013

No Antigamente, no Testamento / Ágora/ Novo Jornal 260 / Luanda 11/1/2013





"Com cento e trinta anos Adão gerou um filho... e pôs-lhe o nome de Set. Após o nascimento de Set, Adão viveu oitocentos anos e gerou filhos e filhas. Ao todo, a vida de Adão foi de novecentos e trinta anos; depois morreu. Génesis, 5.3,4,5”. Passados uns anos fundou-se o MPLA.
O Antigo Testamento não teve continuidade e é muito lido e relido mormente por um conjunto de tipos vestidos de preto, com chapéus esquisitos donde saem umas tranças tubulares e a abanarem a cabeça, numa imitação paupérrima de Parkinsónikos, virados para um muro desgrafitado de todo.
Hoje estou numa de desopilar o fígado depois do massacre das noites festivas que fui tendo neste Dezembro de passagem para um Janeiro que cada vez promete menos novidades a não ser a expectável fraca prestação de Angola no CAN, porque na realidade nada se faz para inverter o estado geral a que está a chegar o desporto angolano.
O futebol é gerador de uma enorme movimentação popular e devia dar-se uma maior atenção aos aspetos organizativos e à formação. Mas hoje não estou muito para aí virado, embora contente pelo Recreativo do Libolo contratar o “jovem” João Tomás, o que poderá ser uma mais-valia para o meu 1º de Agosto aproveitar, para ver se este ano é que é! Parece a linguagem habitual dos tipos do Benfica de Lisboa, e que os do Sporting já esqueceram perante o poderio do Futebol Clube do Porto, que não anda à procura de carcaças para reforçar o plantel. Um dia destes voltarei ao tema!
Numa passagem pela imprensa, o habitual: quem apoia o governo acha que Angola está colocada, a nível de desenvolvimento económico e social, entre os da Noruega e do Liechtenstein, com tudo a funcionar no pleno. Quem desapoia, acha que Angola está mais ou menos como a Somália em que tudo é uma desgraça, cada angolano que seja chefe é um corrupto e todos os epítetos disponíveis na Priberam, agora que o Torrinha passou de moda. Cá está a imagem que vamos tendo num Janeiro monótono, em que, depois das visitas dos jornalistas às barragens que abastecem Luanda, se descobriu o que nunca deveria ter sido feito e se fez, e o que estava planeado é que se devia ter feito a tempo e não quarenta anos depois, no caso o alteamento de Cambambe, um projeto previsto nos célebres planos quinquenais de Marcelo Caetano para os anos setenta. Um recadinho de quem não percebe nada de barragens, albufeira e águas: não se esqueçam de fazer a ponte entre as duas margens, antes de a albufeira encher, porque a que está a ligar as duas margens do Kuanza a montante vai ficar debaixo de toda a água quando a albufeira subir. Não me tentem convencer que vão colocar uma jangada para a malta ir até ao Wako-Kungo e Huambo!
Lá estou eu a falar de coisas sérias, e de facto lastima-se que o Luandense já não consiga viver sem aquele zumbido nos ouvidos que quando o não sente acha estranho porque os geradores não estão a funcionar. Faz-me lembrar a história dos índios que viviam ao pé das cataratas do Niagara e que tinham as orelhas grandes e a testa recuada. Todas as manhãs, quando acordavam, faziam concha no ouvido para perceberem que ruído era aquele e puxavam a orelha para tentar ouvir melhor; mal percebiam que era o barulho da água, batiam com a palma da mão na cabeça e diziam: “ Possa, esqueci-me, são as cataratas do Niagara”!
Comecei com o Antigo Testamento, que, numa leitura de uma pessoa pouco abiblicada, faz “Salo ou os 120 dias de Sodoma” do Passolini numa verdadeira canção de embalar do tipo “Vitinho”, do meu virtuoso amigo e ex-colega do Salvador Correia José Maria Pimentel. Vou acabar com mais uma citação, que me remete para as demolições para se fazerem as cidades novas e inabitadas ou os condomínios fechados tão na moda na cidade que cada vez é menos de alguém!
" O Senhor disse a Moisés: ordena aos filhos de Israel que expulsem do acampamento todo o leproso, todo o que tiver um fluxo e todo o que tiver sido contaminado por um cadáver. Expulsai-os, sejam homens ou mulheres, afastai-os do acampamento, para que não manchem estes recintos nos quais tenho a Minha morada."
Números -5.2,3.
Fernando Pereira
7/1/2013

OS ADESIVOS / O INTERIOR / 10-1-2013





Raul Brandão (1867-1930),jornalista mediano, militar por obrigação e um talentoso e esquecido escritor português, conta que, durante o derradeiro ministério da monarquia portuguesa, João Chagas, um dos proeminentes da revolução que então se urdia lhe falara assim: « (…) . – Que me importa a província! Que me importa mesmo o Porto! A república fazemo-la depois pelo telégrafo»
O caudilho tinha toda a razão: triunfando a revolução em Lisboa, a República seria telegrafada para a província, para as ilhas e para as colónias.
Ainda hoje é cada vez mais assim e a realidade com que nos confrontamos é que poderemos daqui por uns anos estabelecer um cordão sanitário à volta de um território com cada vez menos gente, mais abandonado nas suas culturas tradicionais e sobretudo um adeus a um mundo rural que só poderemos ver no canal História ou num qualquer jogo de tipos esquisitos a atravessarem zonas inabitadas numa qualquer game box comprada numa FNAC numa cidade que se veja.
Sou do tempo em que FNAC era mesmo só ar condicionado e deu emprego a tanta gente num projeto coletivo que não fora a ganancia de uns poucos podia ser um modelo para muito do sector produtivo do País, num tempo em que os governos de Soares e Cavaco o começavam a desmantelar a soldo dos interesses dos “eurocratas”.
Mas já que veio à liça o 5 de Outubro de 1910 lembro que uma das palavras que rapidamente entrou para o léxico foi o “adesivo”.
O “adesivo” era nem mais nem menos que o politiqueiro, empresário, ou até clérigo que dava no dia 4 de Outubro vivas à monarquia, desfraldava a repressiva bandeira azul e branca, hoje clubisticamente falando um símbolo da liberdade, e no dia 6 de Outubro de 1910 eram os mais entusiastas da bandeira verde-rubra, e dos proeminentes seios da estátua da Republica.
Mudou o léxico, a palavra adesivo passou a designar outras coisas, substituída no tempo do fascismo pelo penetralho em oposição ao reviralho, que eram os do contra, e hoje é termo adaptado ao chato.
A verdade é que como observador pouco atento das realidades locais e nacionais vejo um cada vez maior entusiasmo adesivista nas vitórias dos que ambicionam alguma coisa e que podem dar algumas migalhas aos pombos que arribam às vezes sabe-se lá de onde.
Já que falei em eleições ou conclaves, e se não falei infere-se, tenho que me sentir incomodado quando o pessoal da Guarda se mobiliza com o lugar do Sancho, não o Pança que esse virá em Outubro, e despreocupa-se com realidades tão evidentes como a falta de desenvolvimento, a falta de linhas férreas, a falta de emprego e a desmoralização continuada das pessoas desmotivadas para um futuro coletivo que se desejou diferente.
Está na hora de voltarem os “Adesivos”, pelo menos que consigam ser hipoalérgicos.
Fernando Pereira 7/1/2013
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