26 de abril de 2019

Levas as águas/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda 26/04/2019





Levas as Águas
Ao ver as desoladoras imagens das consequências das recentes chuvadas nas cidades de Luanda, Lobito, Catumbela e Benguela vejo-me a recuar à noite de 20 para 21 de abril de 1963 na Luanda, que vivia rodeada de arame farpado.
                Era um garoto, mas lembro-me perfeitamente da azáfama que foi desde o fim do jantar até altas horas da madrugada a tirar a água e terra que entrava por todo o lado.
                Vivia num beco que tinha um portão para as traseiras do então Liceu Salvador Correia, onde hoje é a entrada da rua que circunda a escola Alda Lara. A água revoltosa galgava os muros e a maior parte conseguiu que o portão a aguentasse. O nosso quintal contiguo às barrocas do Liceu era terra, que demorou dias a ser removida, para que conseguíssemos desterrar o carro da casa, um velho Chevrolet dos anos 50.
                No dia seguinte, demos conta que nem tínhamos muita razão de queixa pois segundo os relatos a cidade estava um caos, e terão morrido vinte pessoas, mas o “diligente” CITA (Centro de Informação e Turismo de Angola) terá feito circular uma nota “desoficiosa” em que “não se tolerariam mais mortes”!
                Do que me lembro foi ver as ruas que circundavam a Câmara Municipal, hoje Governo Provincial, transformadas em crateras, que quando por lá andei, já tinham tirado os veículos que por lá teriam estado. Na rua do Notícia, a que vai dar ao largo onde está o MIREX, que ao tempo era conhecido como o “Palácio do Comércio”, uma cratera serviu para fazer desaguar na baixa da cidade lama, que inundou armazéns, lojas, oficinas e hotéis. O Colégio de S. José de Cluny, talvez por “imposição divina”, ficou sem uma parte dos seus muros, mas manteve-se altaneiro no morro, desafiando os destinos da natureza, permanecendo hirto e firme! Na Boavista, que já não eram as Quipacas de outros tempos, a terra vermelha inundou armazéns, e misturou-se com terra preta, que era excelente, em sítios onde havia algumas hortas, que eram o sustento suplementar de alguma gente que trabalhava na Textang ou nos Caminhos de Ferro, no Bungo! O Miramar, obra emblemática do orgulho da burguesia luandense de então, quase que desabava nessa noite em que tudo parecia vir abaixo, tantos eram os raios e trovões como a água que jorrava de um céu que nem se via.
                A terra vermelha assolava tudo e desde a Samba, na Maianga do povo até à picada do Prenda era tudo terra vermelha, como que fosse premonitório que um dia outro vermelho e negro pudesse fazer o mesmo à cidade.
                Na verdade, a pronta e decisiva intervenção da então Câmara Municipal de Luanda conseguiu atenuar os efeitos dessa noite, em que nunca terão sido tão pertinentes os versos de Manuel da Fonseca: …que levas as águas/ correndo de par em par/ lava a cidade de mágoas/ leva as águas para o mar/ Lava-a de crimes espantos/ roubos fomes terrores/ leva a cidade de quantos/ do ódio fingem amor…! Este poema adaptado da canção “Tejo que levas águas”, cantada por esse saudoso amigo de Angola, precocemente desaparecido, Adriano Correia de Oliveira!
                Foi aí que se deu um grande impulso às obras de saneamento da cidade, com a construção de um colector central que tentasse minorar os efeitos de tempestades deste tipo. Fizeram-se muros de suporte de terras, que hoje albergam muita habitação precária e construiu-se uma rede de valas a céu aberto, em que a mais conhecida é a do Rio Seco.
                Os efeitos dessas obras foram testados em 1967, quando desabou uma tempestade do tipo da de 1963, em que se repetiu a azáfama lá em casa, em que naturalmente fui mais interveniente.
A Samba, a Boavista e os pontões na Corimba entre outros acabaram por ser as zonas mais fustigadas pelo deslocamento das lamas, mas não se repetiu o cenário dantesco de quatro anos antes.
Luanda hoje tornou-se em dia de chuva uma montureira em movimento, em que tudo vai parar ao mar, transformando um oceano límpido num verdadeiro desastre ambiental, a que todos parecem indiferentes, não se ouvindo sequer um reparo por parte dos responsáveis para evitar a repetição continuada destas situações.
Quando olhamos para um lago de plásticos, metais e detritos de outro tipo, ficamos perplexos, quando se quer vender no exterior Angola como um país de turismo em África.
Há responsáveis que tem nome, rosto e posição e são obrigados por inerência dos cargos a dar respostas claras sobre como se inverte o actual estado de coisas, sem as megalomanias costumeiras e a sobranceria com que  os que ocupam os lugares de topo olham para este tipo de situações.
Voltando ao poema de Manuel da Fonseca:” lava palácios vivendas/ casebres bairros da lata / leva negócios e rendas/ que a uns farta e a outros mata”
Como dizia o ostracizado Padre António Vieira: “Quem fez o que devia, devia o que fez. E ninguém espera paga de quem pagar o que deve”!

Fernando Pereira
22/4/2019

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