“Proibido Proibir”
Comemora-se o cinquentenário da aventura de uma
geração, em que nada a partir de então ficou como tinha sido até àquele momento!
O Maio de 1968 surge numa Europa,
que curiosamente vivia um dos melhores períodos de euforia económica do pós
2ªguerra mundial aliada a uma paz social como ainda não se tinha visto no
século XX, e o seu epicentro é numa das cidades do mundo que foi sempre um
local de culto pela defesa da liberdade, Paris.
O dia 3 de Maio de 1968 é a data
marcante da grande revolta estudantil, quando em resposta à concentração contra
o encerramento da Sorbonne se inicia um período de grande explosão social, sem
paralelo na europa contemporânea de então.
Os estudantes barricam-se no Quartier Latin e
rapidamente as manifestações e confrontos generalizam-se por toda a cidade e um
pouco por todo o País. As adesões à luta dos estudantes por novos valores e
outras opções de participação popular multiplicaram-se, e de um momento para o
outro 10 milhões de trabalhadores dos mais variados sectores de atividade
estavam em greve paralisando toda a atividade económica de França.
Os estudantes e os movimentos cívicos contestavam
a “velha ordem” instalada nos estabelecimentos de ensino superior, e reclamam um
ensino conservador equidistante da realidade quotidiana dos cidadãos.
De Gaulle, ao tempo presidente francês, herói da
resistência ao nazismo perde por completo o controle da situação, entrando em
clara rotura com a rua que diariamente se agiganta em adesões e também em
choque com o seu primeiro ministro Pompidou que tenta arranjar uma solução de
compromisso que permita à França sair de uma situação de caos quase generalizado.
O movimento do Maio de 1968 furou o
convencionalismo dos partidos tradicionais, e foi olhado com alguma reserva
inicial pelo movimento sindical francês, muito cético “porque os estudantes
eram os filhos da burguesia”, mas a verdade é que em determinada fase a própria
CGT, a maior confederação sindical francesa aderiu a uma contestação que não
tinha liderança e que queria discutir tudo.
Para se ter a dimensão da mobilização, a título de exemplo, foram
editados em serigrafia, litografia ou gravura mais de 500.000 cartazes com
cerca de 400 motivos diferentes, feitos por estudantes, professores, artistas e
grupos de bairro.
A Bolsa de Paris ardeu, algumas igrejas foram
locais de reunião, as salas de aula foram utilizadas para se discutir a ordem,
a desordem e a pós-desordem.
Tudo era
posto em causa e palavras como: “O sonho é realidade”, “Todo o poder abusa. O
poder absoluto abusa absolutamente”, “Não me libertem, eu encarrego-me disso”, “A poesia está na rua”,” A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”, “A Revolução tem
de deixar de ser para existir”,” Abram o vosso cérebro tantas vezes como a
braguilha”,” É proibido proibir”, “Tomem os vossos desejos pela realidade”, “Não
reivindicaremos nada. Não pediremos nada. Conquistaremos. Ocuparemos,” Um homem
não é estúpido ou inteligente: ele é livre ou não é” e muitas outras que
passaram a entrar no quotidiano das revoluções que se foram operando um pouco
por todo o mundo.
Numa
reportagem um jornalista ouvia um conjunto de intervenções e quando se dizia
“Contestai, é preciso contestar tudo”, perguntou: “Mas não há nada que vocês
não contestem?”” Há” respondeu alguém: “O direito que todo o homem tem a viver
dignamente”.
No Odeon, um
dos lugares míticos de debate contínuo nesses dias de permanente agitação há
este diálogo captado por um jornalista: Uma mulher magra, de meia idade, algo
irritada com frases do tipo “enforcar o ultimo padre nos intestinos do ultimo
capitalista” grita do alto do balcão: “Atenção, Irmãos, Deus está vivo, está lá
fora à porta”. Logo, alguém lhe respondera: “Então que entre depressa, já vem
atrasado”.
O Maio de 1968
marca uma viragem em novas conceções políticas, abertas a novas doutrinas e
mobilizadoras para vivencias diferentes do contexto centrado nalgum dogmatismo
organizativo do seculo XIX e no princípio do seculo XX. Foi um tempo em que
Marcuse, Sartre, Dérrida, e outros aparecem a ocupar os lugares que Marx,
Engels, Lenine, Trotsky,Staline, Mao e outros disputam. Volta-se a Saint Simon,
Fourier, Owen, Hegel e Goethe para perceber Dabord, Aragon, Althusser, Aron,
Garaudy, Beauvoir, etc. Reinventa-se a história sem que o dogmatismo da luta de
classes permaneça, e procura-se algo de hedonismo social, mas de contornos
muito difusos, e nalguns casos pouco coerentes.
Nos EUA a
contestação à guerra do Vietnam torna-se o motivo central da contestação
estudantil, e o início das conversações de paz entre os EUA e o Vietname
começam em Paris em Maio de 1968, o epicentro das múltiplas revoltas que se
espalham um pouco por todo o mundo e que nalguns casos se revelam dramáticas
para os manifestantes, por exemplo no México onde morrem algumas centenas pelo
uso desproporcionado da policia e exército no que foi o triste massacre de Tlatelolco.
Cinquenta anos
depois no mundo parece que quase não houve nenhum Maio de 1968, pois os o
voluntarismo, o apelo de libertação, o espírito solidário,e outros valores desvaneceram-se,
e a geração desse tempo engravatou-se e esgaravata-se em fazer prevalecer a
ordem económica assente numa economia de mercado, de desmesurada ferocidade
para com os trabalhadores, imigrantes e povos de países em vias de
desenvolvimento.
Passou-se à
concorrência feroz, à disputa de mercados e um apelo ao consumismo desregrado
que empobrece povos, enriquece alguns e multiplica a fome e a indigência por
milhões que não tem direito a rigorosamente nada. As mais valias que eram
extorquidas aos trabalhadores no processo produtivo, gerando emprego, foram
substituídas na forma de ações, títulos, participações e outras formas subtis
de transferência de capital ao nível global.
O ano de 1968
foi o ano de todas as contestações desde as sucessivas manifestações contra a
guerra do Vietname um pouco por todo o lado, o início da Primavera de Praga e o
seu esmagamento por tropas soviéticas, revoltas estudantis em Espanha,
Alemanha, Bélgica e Itália, para além do assassinato de Marthin Luther King em
Menphis quando se preparava o maior movimento grevista nos EUA.
Na musica, nas
artes-plásticas, no vestuário e noutras áreas da cultura houve uma mudança com
o aparecimento de novas tendências e o ousar passou a ser o banal, acabando com
o convencionalismo que então era quotidiano nas sociedades tecnologicamente e
economicamente mais desenvolvidas.
Se ao tempo
nada ficou como antes, passados os 50 em que Geismer, Sauvageot e Cohn-Bendit
deram a cara por um Maio que fez abanar os fundamentos do “estado burguês”, temos
hoje um mundo mais desigual, ideologicamente monocromático e que a democracia
passou apenas a ser instrumentalizada para domínio do económico em detrimento
de um social cada vez mais apagado.
“Sejamos
realistas, exijamos o impossível”
Fernando
Pereira
29/5/2018