12 de maio de 2017

EVOCAÇÃO / O Interior / Guarda / 11-5-2017








EVOCAÇÃO

“A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”
Sophia de Mello Breyner Anderson

                A morte recente do Vasco Queiroz, apesar de anunciada, deixou-me num estado de quase prostração emocional e a certeza que vai ser um luto difícil de abandonar.
                Conheci o Vasco há quarenta e cinco anos, quando fomos contemporâneos no Liceu D. João III em Coimbra, no cinzentismo de uma primavera marcelista que mais não conseguia ser que um salazarismo a sorrir. 
                Com o alvor da democracia nesse 25 de Abril de 1974 embriagámo-nos com a festa da liberdade, de um tempo novo, de uma primavera que nunca esquecemos. Durante décadas comemorámos este Abril com um jantar que invariavelmente acabava numa noite longa de cantoria, recordações e copos á mistura. Fizemo-lo pela ultima vez neste 25 de Abril de 2017, com o Vasco já muito doente, mas ainda com a força bastante para à meia noite fazermos o tradicional brinde com um espumante. Sabíamos os dois que era o nosso ultimo convívio de Abril, mas era-me obrigatório cumprir este ritual junto do homem que era só o melhor de todos nós.
                Empenhamo-nos juntos em processos de luta pela edificação de uma sociedade mais justa e solidária. Divergíamos no acessório, estávamos de acordo no essencial. O combate nesses anos de esperança vivida deu-nos força, mas também sobreveio a revolta quando vimos que “houve por aí alguém que se enganou”!
                Actor do CITAC (Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) nunca ao longo da vida deixou de fazer teatro, e foi um dos pioneiros da criação do “Calafrio”, estrutura cultural que tem desenvolvido algum trabalho cultural na Guarda nestes dois últimos anos da sua atividade continuada.
                Depois de alguns anos em que cada um fez o seu percurso pessoal e profissional, o acaso juntou-nos num local improvável, a Guarda.
                Aqui o Vasco revelou-se como uma das nossas referencias, mantendo a sua coerência política, uma postura cívica exemplar, um ser solidário permanente e acima de tudo uma preocupação continuada para com os outros, o que fez dele um dos mais respeitados e amados clínicos da sua geração na Guarda e cidadão impoluto e interveniente na sociedade.
                Destransigia com a venalidade, com o oportunismo e era exigente consigo própria na hora de aceitar algo que pudesse ser suscetível de manchar a sua idoneidade profissional e a sua independência enquanto cidadão. 
                O Vasco Queiroz era um indefetível benfiquista, exigente com o seu clube, mas isso não o impedia de partilhar algumas vitórias internacionais do meu Futebol Clube do Porto e festejar comigo esses eventos. Nunca aconteceu com o Benfica, mas julgo que eu era incapaz de fazer o mesmo. Nestas poucas coisas em que divergíamos ele mostrava ser diferentemente melhor que eu!
                A Guarda devia estar agradecida por ter tido este ilustre filho adotivo, porque no campo profissional, na atividade cultural e no contexto solidário foi um homem que abraçava as causas, empenhava-se com todo o seu esforço e com toda a sua enorme capacidade intelectual para que tudo tivesse um sucesso que teimava em partilhar com todos.
                Intelectualmente era um inconformado, porque queria assimilar tudo o que o pudesse enriquecer culturalmente, mesmo sobre coisas que às vezes outros julgavam pueris.
Fizemos muitas viagens de lazer juntos, e havia uma frase recorrente: “Temos que arranjar aí um programa cultural para que a viagem não seja só copos”! Lá arranjávamos um roteiro que lhe fizesse essa vontade e que nos trazia novas descobertas.
Em determinada altura chegou a ser deputado municipal na Assembleia Municipal da Guarda, mas rapidamente saiu completamente desiludido, com a maquinação dos interesses e da politiquice rasteira que vai minando os alicerces de uma democracia que sonhou diferente, naquela primavera longínqua de 25 de Abril de 1974.
Raras vezes o via exaltado, mas manifestações de racismo, xenofobia e apelo a valores do fascismo eram motivo mais que suficiente para o pôr maldisposto e fazê-lo retirar intempestivamente de qualquer lugar onde a discussão se tornasse estupidificada.
Jonh Huston na cerimónia fúnebre de Bogart “Não temos razões para ter pena dele, mas sim de nós porque o perdemos” ou como diria Mia Couto, “Não morre quem se ausenta, morre quem é esquecido”. Só o esqueceremos quando um dia formos ter com ele!
Com o seu desaparecimento físico, há temas que por força das múltiplas cumplicidades que tinha com o Vasco Queiroz irão passar a estar no “sótão” da memória, pois só com ele conseguia partilhar num tempo vivido ao longo de décadas abruptamente cortadas neste infausto seis de Maio de 2017.
Vasco Queiroz faz-nos tanta falta que acho que nem ele teria noção disso, pois foi sempre de uma humildade exasperante. A mim cabe-me agradecer tanto de bom que me deu, e tanto que me enriqueceu.
Vamos fazer algo que perpetue a sua memória junto dos cidadãos da Guarda e dos vindouros? Estou nessa e acho que somos muitos a pensar o mesmo.
Certa vez deu-me a ler este provérbio mexicano: “Habitue-se a morrer antes que a morte chegue, porque os mortos apenas podem viver e os vivos apenas podem morrer”! Hoje percebo porque o mostrou!
Vais continuar a fazer parte da minha vida pelas melhores razões.
Obrigado meu amigo!

Fernando Pereira
8/5/2017








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