7 de fevereiro de 2013

A Batalha do Adesivo / O Chá nº4 / Novembro-Dezembro 2012 / Luanda





Raul Brandão (1867-1930),jornalista mediano, militar por obrigação e um talentoso e esquecido escritor português, conta que, durante o derradeiro ministério da monarquia portuguesa, João Chagas, um dos proeminentes da revolução que então se urdia lhe falara assim: « (…) . – Que me importa a província! Que me importa mesmo o Porto! A república fazemo-la depois pelo telégrafo»
O caudilho tinha toda a razão: triunfando a revolução em Lisboa, a República seria telegrafada para a província, para as ilhas e para as colónias.
Em Angola, quando se deu o 5 de Outubro de 1910, que marca o fim do regime de monarquia constitucional, é governador geral o tenente-coronel Alves Roçadas, militar português chamado a ocupar as terras dos mulondos que viviam entre os rios Calculevar e Cunene, tendo instalado um forte, o forte Roçadas, que depois da independência da RPA passou a ser Xangongo.
Alves Roçadas foi conhecido como mais um dos “adesivos”, denominação adaptada a todos os que adormeceram convictamente monárquicos e católicos, e nalguns casos com cargos de chefia, e acordaram com redobrada fé republicana e rotundamente anticlericais. A adesão de Alves Roçadas ao novo regime teve ainda o aspeto um tanto caricato de ter vestido de República uma filha sua, hábito que, aliás, na então Metrópole (Meloia na corruptela popular actual), se fizera corrente, a ponto de Raul Brandão referir como um dos “topos” do tempo essas meninas de quarto-andar vestidas à Mariana.
Alves Roçadas seria substituído depois, no governo angolano, por um herói do 31 de Janeiro de 1891, na primeira tentativa de instaurar a República na cidade do Porto, Manuel Maria Coelho, deportado pelo governo ditatorial de João Franco.
O jornal neo-franquista “Correio da Manhã” não perdoa a Alves Roçadas a confissão de que “tinha tido dois dias gloriosos na sua vida, aquele que recebeu a espada pelo feitos no Cuamato e aquele que lhe tinham confiado a bandeira verde e vermelha para ser arvorada na Camara de Luanda.” Para um servidor da bandeira azul e branca da monarquia, convém salientar que foi um “adesivo” bem apressado!
Alves Roçadas voltaria a combater em África em 1914, mas ao tempo contra os alemães, no decorrer da primeira guerra mundial.



No decorrer destes combates contra as tropas alemãs que tentavam a todo o transe conquistar o sul de Angola, onde havia uma razoável colónia de alemães, alguns de segunda geração, foi no forte Roçadas que se concentraram as tropas portuguesas.
A “Ilustração Portuguesa” de 11 de Janeiro de 1915, através do articulista António Penalva, com o título “ A defeza de Angola contra os Alemães” referia em tons encomiásticos a resistência das tropas portuguesas: “Os alemães talaram novamente o nosso território de Angola realizando os seus planos hostis e ambiciosos de muitos anos. Desde longa data que eles acumulam na sua colónia de sudoeste muitas tropas e material de guerra, sobressaindo artilharia grossa. A fera tinha bem preparado o salto que deu agora. Ao ardil com que o preparou corresponde a vilania e traição com que o deu. Sem declaração de guerra, sem o menor respeito pelos mais sagrados preceitos do direito das gentes, irrompe pelas nossas fronteiras em hostes cerradas e procura trucidar quantos encontra desprevenidas.Ou agora, ou nunca pensaram os invasores. Mal tinha tempo de ali haver chegado a nossa primeira expedição, insuficientíssima, apezar do valor e patriotismo do soldado portuguez, para fazer face a tão desproporcionado numero. Essa desproporção era ainda agravada pela longa viagem, seguida de fortes marchas que os nossos soldados acabam de fazer, ao passo que os alemães entravam em combate com o descanço e mais recursos de uma longa preparação, estando já afeitos a um clima tão adverso ao soldado europeu. Não havia que duvidar sobre o êxito d’uma luta que se aceitasse com essa massa esmagadora em terreno que oferecesse a ambos os combatentes igualdade de circunstancias.Mas ainda assim se lutou, ainda se sacrigficaram vidas, porque o portuguez nunca foge mesmo deante d’ estas surpresas traiçoeiras, a que os outros devem os seus efémeros triunfos.”
“E lutou-se com bravura…” Assim ia descrevendo António Penalva, “correspondente de guerra”, numa peça literariamente notável com o título “Como Nós Vencemos no Cuamato”, cada momento da refrega nesse longínquo Janeiro de 1914:
“A região dos Gambos é rica em massambala, massango e milho, que formam a alimentação do indigena.É curioso que fóra da povoação ainda o preto em geral desconhece o dinheiro e só se consegue obter gallinhas, ovos, ou outros productos seus a troco de pannos, aguardente e especialmente sal. Os carregadores tambem acceitam mantas vermelhas, missangas e uns collares feitos de uma concha especial do Ambriz, denominados quiranda de dongo. (…)
“Passa-se depois uma extensa matta de espinheiros em que o solo, alagado pelas chuvas torrenceais, se abre em enormes fendas com o sol do tempo secco. Ahi ha muita caça e as gangas (gallinhas de matto) vêem-se ás centenas. (…)A estrada desde a Chibia nada tem de interessante; toda por entre mattas de muthiati ou espinheiro cortadas por arimos de massambala ou pequenos prados de capim e apparecendo de quando em quando os enormes e deselegantes imbondeiros com o seu monumental tronco assemelhando-se ao corpo de polvo de onde partem innumeros tentaculos”.
“O rio Cunéne, que nasce perto do limite do districto de Benguella, corre desde a altura do Capelongo, proximamente a sul, inflectindo para SW, depois do Quiteve, povoação onde ha alguns europeus e mestiços. Segue depois proximamente essa direcção até que passada a Dongoena, onde existe um posto militar, desvia-se para N. seguindo proximamente a direcção W. até se perder na areia na grande faxa arenosa que separa a costa do interior. É n’este ultimo percurso que o rio vence o desnivel de mais de cem metros da serra da Chella, dividindo-se em tres braços e formando as importantes cataractas de Nanguári. Depois d’este ponto ainda tem muitos rapidos e cataractas que o tornam innavegavel.”


“As comunicações teem que ser feitas em barcos, chegando-se a poder ir assim ao Humbe, e a agua invade as povoações das proximidades do rio, embora ellas estejam construidas nos pontos mais elevados, obrigando por vezes os seus habitantes a abandonal-as. (…)Um facto curioso nos m’lolas é que a agua nem sempre corre na mesma direcção. Explica-se isto pela pequena inclinação que tem n’esta região o leito do rio, que faz com que, quando passa a cheia, haja em pontos mais a juzante um nivel muito superior aos leitos das m’lolas, do que resulta refluir a agua em sentido inverso ao curso habitual, voltando novamente para traz logo que a cheia passa.”




“O Cunéne fóra da epoca das chuvas é vadiavel em muitos pontos, especialmente nos annos de secca, sendo notaveis n’esta região o vau do Cácuma, o vau do João e do Cácua. É navegavel para embarcações de pequeno calado desde perto do Mulondo até á Dongoena. Actualmente existe ali a lancha-canhoneira Cunéne para a policia do rio.”
“A região do Ovampo é essencialmente plana, apenas cortada por ligeiras ondulações. As partes mais baixas formam as chanas cobertas de esplendido capim capaz de alimentar milhares de cabeças de gado. O solo é aqui argiloso, alagando-se no tempo das chuvas e tornando-se intransitavel. As partes um pouco mais elevadas estão em geral cobertas de matto, onde abunda especialmente o mutialt, que n’alguns pontos chega a ter dimensões razoaveis.”
Esta descrição de uma guerra esquecida no sul de Angola, num tempo conturbado em que só a Europa era centro das atenções, mereceu-me alguma atenção e surgiu a partir do momento em que procurava detalhes sobre a forma como a implantação da República em Portugal foi recebida nas colónias.



Fernando Pereira
12/12/2012


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