14 de outubro de 2011

LÁGRIMAS EM COMISSÃO /Ágora / Novo jornal nº195/ Luanda 14-10-2011





“LIBERDADE EM SEGURANÇA
Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e
viseira erguida.
O juiz pôs a touca com um pequeno jeito de mão direita. Afirmou
- Levante-se o queixoso.
O queixoso estava deitado. Não se levantou.
- Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os
réus? - Insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca.
O queixoso nada disse. Continuava deitado.
- Dadas as circunstâncias atenuantes e outras, declaro os três réus
inocentes. O queixoso demonstra à sociedade ser provocador. E
silencioso. Revolucionário alterante de ordem estabelecida.
Destabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se
retirem. Em segurança e liberdade.
Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continência com a mão direita.
E saíram. Pela porta da direita.
Saíram os meirinhos. Pela porta do fundo.
E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente.
Saíram todos.
O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de
informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.”
Mário Henrique Leiria
Já não é a primeira vez que me socorro do MHL para ilustrar qualquer coisa que às vezes anda no ar, mas que não temos as palavras escorreitas para a definir com precisão. Fica mais uma deliciosa história do “Gin Tónic” para lembrarmos o quotidiano.
Uma das efemérides da semana transacta foi a passagem do quadragésimo quarto aniversário do assassinato de Che Guevara. Como bem dizia uma amiga: “Não o mataram, semearam-no”!
Li o último livro do António Lobo Antunes, “Comissão das Lágrimas”, e digo apenas: foi um esforço ciclópico conseguir acabá-lo. Só o tema sobre as vicissitudes de uma ex-guerrilheira do MPLA envolvida no 27 de Maio de 1977, fez com que não o tivesse largado quase no primeiro terço.
A fase actual do ALA enquanto romancista e “opinador” gera justificadas reservas, muito longe da aura do fim dos anos setenta do século passado, em que era uma das minhas referências primeiras no conjunto dos escritores de língua portuguesa, mas este livro era portador de algumas expectativas que podiam revelar-se interessantes, que só acabaram por justificar o que há algum tempo “dispenso” da sua obra.
Os três primeiros livros que publicou numa pequenina editora, a Vega, surgida duma “dissidência” da Assírio e Alvim, a partir de 1979, “Memória de Elefante”, “Os Cus de Judas” e “Explicação dos Pássaros”, colocaram-no num pedestal tão elevado que nesta duradoura fase tem-no mantido perigosamente periclitante. Muitos dos seus livros e crónicas de outros tempos estão sublinhadas e são referências importantes numa forma idiossincrática de ver o mundo e a vida como me agradava. Os seus últimos trabalhos são penosos, e este livro é capaz de ter sido o ultimo que leio para evitar desiludir-me de forma irreparável o que não desejaria que acontecesse.
A meio dos anos sessenta a “Notícia”, uma revista referente no bom jornalismo que se fazia em Portugal e colónias, tinha uma colaboradora de grande qualidade, Natália Correia. Nessa revista, em que muitos dos seus exemplares são disputadíssimos em leilões de publicações, muita gente comprava-a pela qualidade dos trabalhos dos seus colaboradores. Dificilmente nas letras portuguesas houve alguma publicação que tenha tido colaboradores tão bons como um Pedro Tamen, Herberto Helder, Luis Pacheco, Mário Cesariny, Ernesto Lara Filho, Natália Correia e tantos outros, que no tempo do Charrula de Azevedo e do Manoel Vinhas transformaram uma revistinha de uma provinciana Luanda num espaço de cultura.
Já que se fala de cultura e escritores, leiam o último do Pepetela, “ A sul, o sombreiro”, porque é realmente cativante, na linguagem “gingada” que o autor já nos habituou, mesmo para falar de um período da história de Angola e de um Cerveira Pereira, que provavelmente o melhor que tinha e quiçá o mais confiável era o ultimo apelido.
Jorge de Sena observou um dia sobre os portugueses, que se adapta na perfeição aos angolanos: "O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito".

Fernando Pereira
9/10/2011
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