29 de junho de 2012

Perguntas de um Operário Letrado/ Ágora/ Novo Jornal 232/ Luanda 29-6-2012




Perguntas de um Operário Letrado

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas
Bertold Brecht (1898-1956)
Com este novo “shuttle” entre Angola e Portugal desenvolveram-se novas apreciações sobre o nosso País por parte dos expatriados contratados com o objetivo de trabalharem por cá em empresas que localmente não encontram quadros para cumprir cabalmente as exigências do mercado.
A maior parte das vezes há cá trabalhadores qualificados, mas faz-se uma manigância nas condições de concurso que impede encontrar angolanos para a empreitada. Talvez ainda se chegue ao tempo em que só poderá concorrer um engenheiro civil que tem que ao tempo do concurso viver na R. S. António à Lapa nº 18 em Lisboa ou um arquiteto da Torre da Mantinha lote 4-16 no Seixal e por aí fora!
Olho com alguma preocupação o germinar de alguns conflitos que pontualmente começam a ensombrar as relações de trabalho entre estrangeiros e angolanos, o que acabará por se generalizar e as consequências decorrentes passam a assumir foros de outro tipo de segregação bem mais perigosa e com consequências desagradabilíssimas.
Porque já começo a ter idade e vivências suficientes para ter memória sempre foi recorrente chamar-se indolentes e irresponsáveis aos trabalhadores angolanos, algumas vezes para justificar erros de planeamento.
Vamos por partes, desde tempos imorredoiros que o angolano é tratado com particular virulência por todos os que por Angola demandaram na busca da “vida boa que procuro e não encontro cá”, como diz o estribilho de uma canção alentejana de emigração.
O léxico que invariavelmente anda em torno da indolência do trabalhador angolano fez-me recordar Brecht, e o seu “perguntas de um operário letrado”, como também me lembro de perguntar quando circulo nas cidades de Angola, todas feitas pelos seus cidadãos trabalhando muitas vezes em condições inumanas e aviltantes da sua dignidade de cidadão e trabalhador com direitos.
A Angola dos portugueses que chegam e de onde os progenitores, tios, amigos ou simples conhecidos que zarparam do País em 1975 foi integralmente feita por angolanos, e não foi por serem indolentes que deixaram por fazer espaços urbanos e vias de comunicação que os colonos se orgulhavam.
É da mais elementar justiça que se respeite o angolano e isso urge ser feito com novas leis de proteção, menor diferenças no leque salarial, apoio à saude, ao ensino, cultura e acima de tudo proteger as realidades culturais com que o povo angolano se identifica e se reconhece.
Ninguém pode ou deve em circunstância alguma questionar o absentismo por causa de um komba pois faz parte de uma tradição secular entre os povos de cultura bantu, e que os tecnocratas de gravata albardada contestam com o argumento da defesa da sacrossanta “produção e o mercado”.
O expatriado vai para Angola ganhar dinheiro, não vai para mais nada, pelo que se dispensam dichotes ou comentários que os locais que os acolhem não merecem em circunstancia alguma, pois recebem-nos como a maioria não os receberia nas suas terras.
Numa recente visita a Bath, perto de Bristol no Sudoeste de Inglaterra, visitei alguns colégios que conheci há alguns anos e onde fiz então algumas amizades. Num tradicional chá das 5h, com scones quentinhos ouvi lastimarem-se professores de dois prestigiados colégios internos ingleses, um em Bath outro em Salisbury, pela falta de alunos ingleses de família da média-alta burguesia, principais utilizadores desses estabelecimentos.
Perguntei as razões e fiquei petrificado quando eles me disseram que a nova onda é enviar estudantes de muitos países da Commonwealth para colégios privados na India. As razões que me foram apontadas têm a ver com o rigor da disciplina, que os colégios ingleses foram obrigados a aligeirar para cumprirem determinações do ministério da educação inglesa, que proibiam castigas dos mais insignificantes. Os colégios da India têm também excelentes projetos pedagógicos, magníficos professores, muito bem equipados e com um sucesso na empregabilidade muito bom.
Os meus amigos dizem-me que todo o ensino de top inglês anda alarmado e que o entusiasmo dos pais ingleses é tão grande nesta inovação que cada vez mais novos levam as crianças para os colégios da “maior democracia do mundo”.
Antes que acabe peço-vos que leiam de novo o poema de Brecht que é capaz de dar para muita coisa nos tempos que se avizinham!
Fernando Pereira
29/06/2012

22 de junho de 2012

Fotografia a la minute/ Ágora/ Novo Jornal 231/ Luanda 22-6-2012







Com a proliferação de demolições, gruas, tapumes e condicionamentos de toda a ordem no Kinaxixe, veio-me à lembrança a enorme mafumeira que por lá havia num tempo em que as pessoas de Luanda julgavam conhecer toda a gente na cidade.
Ciclicamente, todo o largo e as lagoas anexas se cobriam com um ténue manto branco, que invariavelmente me fazia espirrar ininterruptamente pois a minha rinite não se compadecia com a sumaúma que, depois de recolhida, servia para encher almofadas e um ou outro colchão de alguém mais abonado que tivesse meios para substituir o colchão de folha e sabugo de milho seco.
A mafumeira, que não sabia a idade, era o verdadeiro centro do largo e local que acolhia um conjunto de pessoas que tinham misteres diversos. Entre os profissionais que os ramos frondosos da árvore abrigavam estava o “fotógrafo de rua”, profissão que hoje desapareceu de todo, com o advento das máquinas digitais e telemóveis que dão para tudo.
Todos os dias lá estava a sua máquina com tripé, com fotos a cobri-la, e aquele pano preto longo, que me fascinava em miúdo, porque imaginava tudo o que lá pudesse haver dentro sem conseguir ter qualquer certeza; No chão, o balde, a corda com as molas onde secavam as fotos e um lençol branco esticado numa espécie artesanal de estirador num canto, onde estava pendurada a gravata e o casaco, indispensáveis para que qualquer um fosse fotografado a rigor. Um caixote de sabão, cadeirinha e um espelho completavam o quadro que eternamente me fascina, hoje como uma saudade distante. A mafumeira já foi há muito ano deitada abaixo; o fotógrafo também se transferiu para outra mafumeira que ficava no que é hoje o Largo da Independência, e que também foi destruída para dar lugar à que hoje é a Av. Ho-Chi-Min. Com ela desapareceu o homem que metia a cabeça no pano preto e com a mão fazia de sinaleiro para a melhor posição do fotografado.
Já que falo de fotos, vem-me à lembradura uma situação curiosa que ocorreu comigo uns anos depois da independência. Amiúde ia à baixa comprar café numa casa esconsa que ficava ao lado do Quintas e Irmão (hoje loja da Moviflor) e que dava àquela rua um cheiro inigualável. O ritual era passar no “Aníbal de Melo”, ver as fotografias que por lá colocavam regularmente relativas a eventos de “Estado e Partido” em Luanda e nas províncias. Costumava deixar o carro em frente à “Lusolanda”, e como as montras nesse tempo eram pouco apelativas, nem sequer olhava para ver o que quer que fosse. Um dia, nem sei bem a que propósito, olhei para um expositor do que era a “Foto Castro”, e digo para alguém que me acompanhava: “Deixa cá ver quem são os colonos que estão aqui na foto!”. No meio de uma quantidade de fotos a preto e branco, desbotadas e empoeiradas, dou com uma foto minha num postal de Natal, que mirei e remirei vezes sem conta para ver se era efetivamente eu, e recordei-me então de ter tirado aquela foto na primeira metade dos anos sessenta. Poucos anos mais tarde quando a quis mostrar a um familiar, vi que o expositor tinha sido vandalizado e as fotos tinham desaparecido, admitindo contudo que não terá sido por minha causa.
No tempo em que se tentavam edificar os caboucos da sociedade socialista de Angola havia algumas bizarrices que hoje são recordadas com particular nostalgia e vão fazendo parte do historial humorístico do quotidiano do País.
Certa vez no Lubango, por ocasião de uma viagem de serviço, passeava no “Picadeiro”, nome por que se designava a “Pinheiro Chagas”, fazendo tempo para jantar. Entrei na “Tirol”, que era uma pastelaria emblemática da colonial “Sá da Bandeira”, e entre espelhos primorosamente limpos, vi que havia três balcões de vidro. Num deles havia um expositor cheio de rebuçados de cores diversas e com magnífico aspeto. Perguntei às duas meninas que estavam ao balcão o preço dos drops e elas responderam que “não sabiam porque o camarada responsável por aquele balcão não estava, nem já viria nesse dia”. Procurei perceber a lógica e então compreendi que cada vitrina tinha um responsável, e que, na ausência de qualquer um deles, "despodíamos" ter acesso aos poucos produtos que havia. No dia seguinte ainda lá voltei, mas o “camarada responsável pelos rebuçados e correlativos”, e que tinha consigo a chave do balcão, não tinha aparecido, ficando sem poder adoçar a boca.
Isto aconteceu quando o ex-Beatle Paul MacCartney tinha cerca de quarenta anos. Já que ele fez esta semana setenta, todos conseguem, com umas continhas, determinar em que ano sucedeu este episódio “Tirolês”.
Parabéns Sir Paul e obrigado por tudo o que nos ajudaste a sonhar com o que compuseste e cantaste.
Fernando Pereira
19/6/2012

19 de junho de 2012

Um homem perdido no baldio de ser





Deslembro que no passado 10 de junho fez 35 anos que Jorge de Sena discursou na cidade da Guarda, na ocasião do “Dia de Portugal de Camões e das Comunidades”, o primeiro realizado depois do 25 de abri de 1974, felizmente longe do ambiente enlutado do Terreiro do Paço, local normalmente centro das comemorações e das condecorações. Por causa de ontem e de hoje lembro-me da letra de Carlos Té: «Que eu nunca vi pátria assim, pequena e com tantos peitos».

…«Esse vício centralista da nossa tradição administrativa – um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas – deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista, quando se veem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, é não é senão repetição de outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. Também dos limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que são camonianas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação secular da humanidade que exportou. E poucos países do mundo, ao longo dos tempos, terão exportado, proporcionalmente, tanta gente como este.

Sejamos francos e brutais. Há neste momento, milhões de portugueses dispersos pelo mundo em mais de um continente, e não só na Europa de que são mão-de-obra. O país pensa neles, e deseja recordar-se deles. Mas o país, pura e simplesmente, na situação económica que herdou e em que se encontra e toda a gente sabe desastrosa, não pode prescindir do dinheiro deles, ou do dinheiro que eles costumam enviar para a santa terrinha, ao contrário do que faziam e fazem portugueses do território nacional, que mandavam o seu dinheiro para o anonimato dos bancos da Suíça. Deste modo, celebrar as Comunidades Portuguesas no dia do santo nacional que celebrou a expansão imperial do país é, ao mesmo tempo, um belo ideal e um cálculo muito prático. Há quem diga e quem pense que celebrações como esta – de Camões ou das comunidades – são uma compensação para a perda ou derrocada do Império oferecida ao sentimento popular, e que isso das comunidades é mesmo ainda pior: uma ideia do fascismo. Antes de mais, neste país há que pôr um basta não só ao fascismo ele mesmo, mas à mania de atribuir tudo ao fascismo, até as ideias. Porque, por esse caminho, ficamos todos sem ideias de que precisamos muito, e os fascistas ou os saudosistas deles acabam convencidos de que tinham ideias, quando ter ideias e ser fascista é uma absoluta impossibilidade intelectual e moral. O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspetos que a representa: o pertencer-se direta ou indiretamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção, que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora»…

Foi só o evento mais importante da Guarda na segunda metade do século XX, mas continuadamente deslembrado.


Fernando Pereira

16 de junho de 2012

O nome da ausência./ Ágora / Novo Jornal 230 15-6-2012








Na passada semana resolvi arrumar as minhas atulhadíssimas estantes. Os livros já começam a estar em terceira fila, e revistas, documentos, pastas com textos diversos, são colocados nas velhinhas malas de porão recuperadas depois de tanto cruzarem os mares e escaparem às térmitas e ao salalé.
Acreditem que é um exercício cansativo e simultaneamente demorado, dura alguns dias, e no fim fica tudo atulhado na mesma, com menos espaço, mas com a vantagem de ter avivado a memória relativa a obras que me vou esquecendo que estão por lá.
Redescobri o “Velho e o Mar” de Ernest Hemingway, traduzido para português por Jorge de Sena, um dos mais incompreendidos e esquecidos enormes escritores da língua portuguesa. Datado de 1951, foi o indiciador de que, a seguir a um Pulitzer, em 1953, lhe seria atribuído o Nobel, em 1954 e terá sido um dos romances que comigo funcionou como iniciação à literatura de qualidade.
"Um homem pode ser destruído, mas não derrotado" é o mote desta comovente saga de um ser frágil em luta desigual contra as mais inclementes forças da natureza. "Hei-de lutar enquanto tiver remos", diz para si próprio o velho pescador Santiago, protagonista do livro. No final, perdido o espadarte que pescara no alto mar e esgotadas as forças, basta-lhe a recompensa de nunca ter virado a cara à luta - mensagem que transcende épocas e modas, tornando-se numa alegoria da condição humana.
Cojimar, uma belíssima baía de Cuba, foi o lugar central desta novela e Jorge de Sena escreveu no prefácio à edição portuguesa do livro: "Esta é uma obra que nos eleva à contemplação da dignidade do homem e do mundo".
A recordar o “Velho e do Mar” e simultaneamente a assistir às imagens da saída das tropas angolanas da República da Guiné-Bissau, no âmbito da “Missang”, lembrei-me com saudade do Viriato Pã.
Meu contemporâneo em Coimbra no dealbar dos anos setenta, Viriato Pã era um guineense que causava uma enorme empatia em todos os que com ele se cruzassem no quotidiano de farra e folia que ia reinando nos estudantes das colónias que por lá viviam nesse tempo.
O Viriato Pã, Balanta, era assumidamente um adversário da fórmula que Amílcar Cabral e o PAIGC preconizavam para a Guiné, o que irritava bastante os cabo-verdianos adeptos confessos desse projeto finado em 14 de Novembro de 1980, com o golpe de Estado de Nino Vieira. Foi deposto Luis Cabral, acusado de tudo que de mau tinha acontecido na Guiné, desde o assassinato dos comandos africanos, tropa de elite portuguesa recrutada localmente, até à míngua de produtos no circuito comercial. A velha máxima de que a “história dos vencidos é escrita pelos vencedores”, sempre presente no quotidiano.
Viriato Pã era um brilhante comunicador, com uma capacidade argumentativa notável e não se furtava a discussão nenhuma, fosse com quem fosse, quando o tema era a Sua Guiné Bissau. Foi no tempo em que esteve em Coimbra, onde iniciou o curso de direito, um dos poucos indivíduos da Guiné que partilhava companhia com toda a gente, o que de facto não acontecia com os seus conterrâneos que inclusivamente chegavam ao ponto de chantagear colegas que manifestassem desejo de participar em farras ou eventos desportivos e culturais em que os estudantes das ex-colónias arranjavam motivos para conviver.
Era intransigente na defesa de algumas posições próximas da FLING (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné) e naturalmente que, depois do 25 de Abril de 1974, as situações extremaram-se com os defensores do PAIGC. Nunca deixou contudo de manter as suas posições como também nunca alterou a sua postura em relação ao convívio com outros ou a amizades entretanto constituídas.
Foi para Lisboa, onde finalizou com grande brilhantismo o seu curso, e de vez em quando encontrávamo-nos e lá vinha a eterna conversa sobre a Guiné-Bissau e a “sua subordinação a Cabo-Verde". Aquando do golpe de 14 de Novembro de 1980, Viriato Pã regressa a Bissau cheio de sonhos que acabam todos quando é vítima de fuzilamento, um dos muitos de um País que cada vez menos faz por merecer o respeito da comunidade internacional e a indiferença generalizada dos cidadãos e estruturas de países da CPLP.
Foi com muita tristeza que soube do seu cobarde fuzilamento, por parte de Nino Vieira que, de uma penada e de forma soez, afastou quem ousava fazer-lhe frente, ou talvez nem isso!
Aliás, o posterior assassinato selvagem de Nino Vieira não me mereceu qualquer espécie de comiseração, apesar de o ter idolatrado na minha juventude pela sua figura de um guerrilheiro intrépido, a quem depois passei a olhar com desprezo.
Ao Viriato Pã a minha homenagem sincera, ainda que peque por tardia.
Fernando Pereira
11 /6/2012


8 de junho de 2012

Escrever na areia./ Ágora/ Novo Jornal nº229/ Luanda 8-6-2012








Rui Ramos é um jornalista angolano que conheceu as agruras das prisões do colonialismo português, e na Angola independente voltou ao cárcere pois sempre se afirmou coerente na luta por uma sociedade angolana igualitária, em liberdade e democracia.
Hoje, reformado, depois de um percurso profissional por diversos órgãos da comunicação social, mantém viva a sua militância no MPLA. Há muitos que são hoje do “Maioritário”, mas Rui Ramos é convictamente do MPLA desde um tempo em que era muito difícil parecê-lo, quanto mais sê-lo.
Rui Ramos tem aproveitado o espaço e o alcance extraordinário das redes sociais para fazer um trabalho de pedagogia importante, mormente para as gerações de angolanos mais novos; tem colocado diariamente posts de particular interesse relativos à história recente do País, dos que lutaram num tempo em que era difícil fazê-lo, e ainda posts de cultura, etnologia, antropologia que começam a ter muitos seguidores participantes ativos nas discussões.
A ideia que vai prevalecendo entre alguns angolanos que participam em vários fóruns de discussão na blogosfera é a de que não tem sido feito um trabalho continuado para dar aos muitos que ajudaram a construir o País a visibilidade e a notoriedade que merecem, pois foram obreiros de um projeto que está aqui presente e dinâmico apesar das inerentes contradições.
Por vezes, há panegíricos desmesurados em relação a uma ou outra figura, mas isso não tolda o ambiente da discussão, aparecendo, pontualmente, um ou outro “desaguisado” verbal, algo normal nestes fóruns. Assiste-se a um interesse generalizado por parte do angolano em conhecer o passado do seu País. Podemos dizer que o acesso à internet é muito limitado por parte dos cidadãos, e os que o têm não representam o tecido social de Angola. Sobre isto não discordamos, mas há um fator importante que tem ressaltado, que se revela no quotidiano da população de Angola e que é salutar: a angolanidade é hoje tão presente como a necessidade de beber um copo de água.
Que o trabalho do Rui Ramos se multiplique para que a Angola sofrida seja conhecida da geração que felizmente usufrui da paz, democracia e liberdade.
Mudando de assunto, vem-me à lembrança uma história que se contava amiúde, nos anos sessenta, sobre dois médicos, na pacata cidade de Luanda. Na moralidade balofa do salazarismo, onde a prostituição era um devaneio de outros lugares, exigia-se às meretrizes que frequentavam cabarets e correlativos, estar na posse do cartão de sanidade actualizado. Aviltante da dignidade das mulheres, assumia contornos de racismo soez quando essa obrigatoriedade excluía nas colónias “as nativas”.
Na rua que ladeia a Igreja do Carmo, num prédio que tinha no rés-do-chão uma casa de desporto, propriedade de um pescador inveterado e campeão em muitas provas no território, havia um conjunto de consultórios, um dos quais o do médico que “fiscalizava “ as prostitutas finas; do outro lado, havia o consultório de um médico que, suponho, era dentista, e que fazia parte da lista de deputados de Angola à Assembleia Nacional portuguesa pela União Nacional.
Um dia, um casal reverente q.b. bate levemente à porta do médico das meretrizes: “ Boa tarde senhor deputado!”. O clínico diz: “ Desculpem, mas eu sou o médico do putedo, o meu colega da frente é que é o deputado”.
Se lerem isto cacofoniando, vão perceber da mesma forma como o Dr. Mário Soares, no seu francês “esmerado”, apresenta a esposa e a sogra num evento: “Ma femme et la mère delle”. Se não entenderem, paciência, peçam som!
Há muitas coisas que aparentemente «correm bem», não se desse o caso de estar trocado o tempo em que acontecem e o modo como acontecem, ou até as pessoas com as quais acontecem. Como escreveu Winston Churchill, «o jantar teria sido esplêndido se o vinho estivesse tão gelado como a sopa, o bife tão mal-passado como o serviço, o brandy tão velho como o peixe, e a criada tão disponível como a duquesa».

Fernando Pereira
5/6/2012

1 de junho de 2012

CAMINHOS DAS PEDRAS /Ágora /Novo Jornal 228/ Luanda 1-6-2012





Fernando Batalha viveu muito, lucidamente, e o seu desaparecimento deixa um vazio enorme nas corroídas trincheiras da defesa do património histórico em Angola.
A morte acaba por ser um detergente eficaz para limpar inúmeras situações desagradáveis com que as pessoas se vão confrontando ao longo da vida; o histórico acaba por ser desanuviado quando se deixa o mundo, e invariavelmente as pessoas passam a ter qualidades que dificilmente se lhes reconhecem em vida.
Fernando Batalha viveu em Angola de 1935 a 1991 onde encetou, dinamizou e lutou pela preservação do património histórico no território. Fê-lo com a mesma convicção na Angola colonial como o fez na Angola independente, embora a luta tivesse contornos de quixotismo, pois os interesses imobiliários e outro género de prioridades relegaram a preservação do património para as prateleiras poeirentas dos serviços onde aguardam despachos.
Tinha uma conceção de certa forma ligada a uma história de Angola que era muito mais próxima dos valores defendidos pelo colonialismo do que por uma Angola independente que olhava com desconfiança para monumentos que “ perpetuavam a opressão do povo angolano”, exacerbando demasiado o contexto ideológico. Por isso, era sempre olhado com reserva, mesmo pelos seus colegas, com quem mantinha relações algo encrespadas.
Havia no meio de tudo isto a vontade inabalável do homem na defesa das suas convicções e não hesitava em confrontar as pessoas para fazer valer a sua vontade de ver o património histórico de Angola como alguma coisa que desse ao passado um futuro de que Angola e Portugal se orgulhassem. Conheci-o, li os seus trabalhos publicados, vi alguns dos seus esquissos e projetos amarelecidos, mas nunca gostei da sua exagerada obstinação. Por isso evitei alguns encontros, não deixando nunca de lhe dar valor como o maior defensor do património edificado no País.
Há uns dias, num evento social, encontrei umas pessoas com quem ocasionalmente mantinha umas discussões. Começámos a partir de certo momento a divergir e a dada altura, um dos intervenientes resolveu utilizar o argumento do cartão. Mostrou-nos um que “legitimava “ estar ele melhor colocado para discutir um determinado assunto “já que era militante do Partido”. Naturalmente que perante o “arrojo” do argumento deixámos cair a discussão, mas fiz-lhe lembrar que ser militante não lhe dava supremacia argumentativa numa discussão ideológica; debalde, diga-se de passagem!
Mais a propósito disto que a despropósito, recuei ao ano de 1978, numa ocasião em que fui à festa do jornal comunista francês “L’ Humanité” no Bosque de Vincennes nos arredores de Paris. A atração principal eram os “Genesis” e a festa de “L’ Huma” era um verdadeiro espaço em que se misturavam velhos resistentes comunistas com jovens anarquistas e gente que não era nem uma coisa nem outra.
Habituado à militância de certas festas ideologicamente mais “purificadas”, a festa parisiense parecia-me mais uma feira popular culturalmente um pouco mais arrojada.
Uma das situações que me deixou perplexo foi a entrega de uns impressos para aderirmos ao PCF, assim algo do tipo de preencher um formulário para algum concurso de uma qualquer marca de aspiradores que estivesse a fazer o seu lançamento no mercado.
Em toda a feira havia uns placards gigantes que estavam sempre a mudar números. Era, nem mais nem menos, a contagem dos militantes arregimentados pelo PCF durante a festa. Esses enormes quadros eletrónicos tinham o patrocínio da Pepsi-Cola, o que me deixou algo chocado, apesar de só ser um sucedâneo da “água-suja do imperialismo”, como então se chamava a Coca-Cola na ortodoxia comunista. Não me caiu mal venderem a Pepsi-Cola no recinto, o que de facto me desgostou foram as mensagens publicitárias sobre a Pepsi e outras que se ouviam entre as manifestações de júbilo dos locutores cada vez que o número de filiados alcançava dois ou três dígitos.
Entre a música de Ferrat, Regianni, Mikis Theodorakis, Brassens, Johnny Hallyday, Mirelle Mathieu e outros, lá ia aparecendo o spot publicitário que marcava o anúncio de que “o PCF passou a ter mais uns quantos militantes na última hora”.
Habituado às regras algo espartanas da militância ativa, a situação com que me confrontava era no mínimo aviltante dos princípios do marxismo-leninismo, e a deceção da festa acabou por ser então grande. Hoje, no entanto, é completamente normal porque as realidades são diferentes e talvez nos importem pouco alguns detalhes.
Nesses tempos, no segundo fim-de-semana de Setembro, lá se ia em romagem, de mochila às costas e uma tenda remendada, na busca do que serão hoje os “salteadores da ideologia perdida”.

Fernando Pereira
28/5/2012

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