23 de outubro de 2012

O CHÁ,/ "EU, KARIPANDE" / "O POETA DA INCOMODIDADE" Nº 2- Setembro de 2012 / Luanda






EDITAL
Foi afixado
nos locais do costume
que É PROIBIDO MENDIGAR.
Logo mão que se descobre
escreveu a tinta por baixo
MAS NÃO É PROIBIDO SER POBRE.
Joaquim Namorado (A Poesia Necessária, 1966)

“ O poeta de Incomodidade desde sempre escolheu a não comodidade de se entregar de corpo e alma, muito mais do que à sua obra, ao afã quase secreto de organizar e dinamizar culturalmente e ao, não menos importante, de preparar novos organizadores e dinamizadores”- Disse Mário Dionísio numa das últimas homenagens feitas em vida a Joaquim Namorado, em 1983, na Figueira da Foz.
Joaquim Namorado e Mário Dionísio tinham muita coisa em comum na literatura enquanto cultores do neorrealismo, nas cumplicidades políticas de luta contra o fascismo e o colonialismo português, na forma solidária como se habituaram a viver e terem sido ambos meus professores em períodos distintos da minha longa vida académica.
Todos os estudiosos desse fecundo período da literatura portuguesa, são aliás unânimes a tal respeito. Alexandre Pinheiro Torres, por exemplo, no seu livro sobre o neo-realismo refere-se a Namorado como “corajíssima e exemplar personalidade” em torno do qual gravitou, em Coimbra, o movimento neo-realista, tal como aconteceu em Lisboa relativamente a Mário Dionísio. Jorge de Sena e Eduardo Lourenço partilham essa opinião e o segundo, num ensaio que lhe dedica no seu livro “ Sentido e forma de poesia neo-realista” (Dom Quixote, Lisboa), atribui a Joaquim Namorado o papel de “polarizador de energias de um grupo, a sua referência ativa e ativista, tanto como ética”.
“Só a revelação da insuficiência e incapacidade do esteticismo para efetuar uma transformação social que se tornava premente e nos levaram a defender uma arte inspirada nas circunstâncias corretas da vida real que achávamos imperioso modificar. Isto é uma arte que era ao mesmo tempo sujeito e agente transformador do real em que se inseria”, assim definia o neo-realismo, Joaquim Namorado, um homem que nasceu no Alentejo em 1914 e faleceu na Coimbra em 1986. Nesta cidade, onde sempre viveu, licenciou-se em matemáticas na Universidade onde foi proibido de lecionar, foi preso pela PIDE algumas vezes, tendo sido reintegrado após o 25 de Abril de 1974. Foi ainda aqui que exerceu a atividade cultural e intervenção cívica que o transformaram num pilar de coerência e determinação, símbolo para muitas gerações de gente que por lá passou e na qual me incluo.
Recordo-me de ter ido, numa tarde cinzenta, no dealbar dos anos 70, a sua casa pedir-lhe para me dar explicações de matemática, onde me recebeu, na sua sala” desarrumadamente” pejada de livros, jornais e discos. Com um ar matreiro perguntou-me de onde era e eu disse-lhe que “era de Luanda”. Indagou-me então se sabia o que eram os musseques e quem lá vivia. Fiquei surpreendido com a pergunta, mas respondi de forma algo titubeante que eram os negros. Perguntou-me se eu vivia lá, e eu respondi-lhe que não, limitando-me a vê-lo encolher os ombros e pegar num disco de José Mário Branco, “ Margem de uma Certa Maneira”, que tinha entretanto saído e imediatamente sido censurado e proibida a sua venda no Portugal de Caetano. Foi com Joaquim Namorado que ouvi este álbum pela primeira vez e também o “Portugal-Angola “do Luis Cília editado pelo “Les Chants de Lutte” em meados dos anos 60, a primeira denúncia em disco das atrocidades do colonialismo português. Aí já tinha percebido o alcance das perguntas que me deixaram tão surpreendido no primeiro contacto.
A relação de Joaquim Namorado com várias gerações de angolanos onde avultam os nomes de Agostinho Neto, Antero de Abreu, Eugénio Ferreira, com quem partilhou a liderança da “Vértice”, Manuel Rui Monteiro entre outros sugere terá havido uma forte influência do neo-realismo na fase debutante dos conhecidos percursos literários de autores africanos, sugerindo uma reflexão sobre o assunto.
Tive o privilégio de o ter acompanhado em várias ocasiões desde manifestações, convívios, homenagens, e tê-lo quotidianamente como companheiro de café, no velhinho “Tropical” em Coimbra, lugar de muita inspiração, algumas aspirações e poucas bem sucedidas conspirações.
Assumidamente comunista, pouco dado a transigir nas suas arreigadas e determinadas convicções, nunca temeu nem nunca vergou, mesmo quando o quiseram ostracizar na ditadura, e já depois na democracia, na “revanche” de uns quantos que nunca conseguiram ser como ele na defesa firme nas suas inabaláveis certezas.
Percebi o sentido do “não gosto de velhos” repetido nas múltiplas discussões que mantinha com Deniz Jacinto, Orlando de Carvalho, Jaime Serra, seus contemporâneos e Soveral Martins, Henrique Faria, Cristóvão de Aguiar, gente mais nova que ainda convivia connosco, os benjamins do grupo.
Ora, quando se pensa que o grupo neo-realista de Coimbra nos deu escritores tão importantes como Fernando Namora, Carlos de Oliveira, João José Cochofel ou Álvaro Feijó, e o de Lisboa como Manuel da Fonseca, Mário Dionísio, Alves Redol e Sidónio Muralha, etc, logo se alcança a importância de Joaquim Namorado num período relevante da vida portuguesa.
Sempre desenvolveu uma intensa atividade de dinamização cultural, colaborando na redação ou direção de revistas tão significativas como “O Diabo”, “Sol Nascente”, “Latitude”, etc. Foi desde sempre o animador da “Vértice”, presença ativa e constante na resistência cultural ao fascismo e, durante muitos anos, espécie de “órgão oficioso” do neo-realismo.
Joaquim Namorado : Um homem e poeta “incómodo”, que não esquecemos!

Fernando Pereira
19/9/2012
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