14 de dezembro de 2022

Bonitas palavras não engordam gatos! / o Interior 14-12-2022

 




Bonitas palavras não engordam gatos!

 

O meu saudoso companheiro de algumas horas boas que vivi, o Ruy Duarte de Carvalho, um dos mais brilhantes escritores da lusofonia, tem uma frase que vai fazendo o meu quotidiano, e que é tão útil nos tempos que desvivemos: “Há o que vi porque mo disseram, há o que vi sem mo terem dito, há o que conto e o que não conto”!

Vivemos tempos estranhos e simultaneamente entranhos, porque estamos perante uma realidade que tem um léxico ficcionalmente otimista e exageradamente enganoso.

Perante um conjunto de problemas que nos vão afetando a todos, na saúde, na educação, nos transportes, nas respostas sociais entre outros assiste-se a uma verve de tantos milhões que às vezes não sei se estou em Portugal ou trancado no cofre forte do tio Patinhas, uma das detestadas figuras do delator Walt Disney.

Acho que o que se está a assistir acaba por ser kafkiano, porque me parece estarmos com um discurso político de euforia por parte dos que dirigem, quando no terreno a realidade é muito diferente e os problemas avolumam-se sem que haja respostas locais. Em muitos sectores da atividade económica e social há verdadeiros dramas, e quando os dirigentes são confrontados com falta de recursos, por incumprimento do Estado as pessoas pouco conhecedoras desafiam a mostrar os milhões apregoados todos os dias nas parangonas da imprensa ou redes sociais.

Enquanto se conseguir estancar  a montante, tudo vai correndo na perfeição do discurso do otimismo e as situações desagradáveis que se vão desenvolvendo, sempre vão tendo a desculpa dos danos causados por uma guerra que veio mesmo a calhar numa altura em que se anteviam momentos difíceis na União Europeia e no tal mundo globalizado que deixámos construir!

Confesso que faço minhas as palavras do Millor Fernandes, escritor brasileiro recentemente falecido: “O desespero eu aguento. O que me apavora é essa esperança”!

Cada vez temos menos respostas para tudo aquilo que julgámos adquirido, e alguma falta de recato de quem nos dirige, traz em cada vez mais sectores da população uma vontade de mudar para quem lhe oferece tudo que não lhe pode dar, na proposta de alterar os princípios da democracia!

A estupidificação começou com a concorrência entre canais de televisão e generalizou-se através do uso das redes sociais, onde prolifera a devassa, a ignorância e a altivez de tantos, local ideal para denegrir instituições e pessoas que são gente valorosa e que lutam ou lutaram pela democracia e liberdade.

            É nestas alturas que me recordo sempre de uma ideia de Umberto Eco. O escritor e filósofo italiano apontou uma característica às redes sociais, que dão o direito à palavra aos "imbecis que antes apenas falavam nos bares, depois de uma taça de vinho, mas sem prejudicar a coletividade". Acrescentou Umberto Eco que "normalmente, eles eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel".

Esta ideia de Umberto Eco, que também foi uma autoridade no campo da semiótica, foi lançada em 2015. Já lá vão uns anos. Mas o escritor fez questão de acrescentar a seguinte ideia: "Antes das redes sociais, a televisão já havia colocado o 'idiota da aldeia' num patamar em que este se sentia superior. O drama da Internet é que ela promoveu o “idiota da aldeia” a detentor da verdade", disse Umberto Eco quando um recebia mais um prémio na sua prestigiada carreira. (José Abranches).

 

Resta-me desejar umas Boas Festas e um Bom dia da Família a quase todos!

 

 

 

Fernando Pereira

10/12/2022

 

 

 

1 de dezembro de 2022

Era uma Casa! /Jornal de Angola/ 29-11-2022

 









Era uma Casa!

“Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor Num universo de sim ou não, branco ou negro eu represento o talvez”

Pepetela “Mayombe”

                O título deste artigo é o início de uma canção do Vinícius de Morais que trauteávamos nos idos sessenta do século passado.

                Como estamos em tempo de efemérides, e neste caso os 47 do nosso 11 de Novembro era justo trazer à lembrança o que foi a Casa dos Estudantes do Império, e o que representou no contexto da luta de libertação nas colónias portuguesas.

                Muitas vezes a CEI foi propositadamente esquecida no contexto da luta, e ainda hoje, ultrapassadas muitos anos parece que ainda se evita coloca-la num contexto importante na afirmação dos valores independentistas, entre uns quantos que a frequentaram de 1944 a 1965, data do seu encerramento.

                A CEI, ou a Casa, tinha instalações em Lisboa, na Av. Duque de Ávila, no Arco do Cego, num prédio que ainda lá está e recuperado, em Coimbra num edifício já demolido junto ao Penedo da Saudade e no Porto, de curta duração. A Casa em Coimbra fechou em 1961, quando praticamente não tinha actividade, embora tivesse editado um boletim cultural, “O Meridiano”, de que terão saído poucos números.

                Para além das actividades culturais, o nascer da afirmação de liberdade e libertação e outras, a Casa conseguiu algo que raras vezes vejo salientado.

                Foi importante que angolanos se conhecessem, e que estes estabelecessem ligações com estudantes das outras ex-colónias.

                Na realidade os angolanos que vinham estudar para Portugal só se conheciam dos bancos do Salvador Correia em Luanda, e do Liceu Diogo Cão na então Sá da Bandeira. Não se conheciam, salvo um caso ou outro, porque todos os do Sul de Angola, e aqui incluíam-se as províncias em que a fronteira era a linha do Caminho de Ferro de Benguela, iam estudar para o Liceu Diogo Cão, que era quem absorvia as gentes dos colégios, missões e liceus do centro-sul do território. Todos os alunos do centro-norte da “província” em iguais circunstâncias iam para o Liceu Salvador Correia em Luanda. 

                Os finalistas dos liceus de Angola conheceram-se em Lisboa na CEI, porque até aí nem sabiam muito bem o que se passava num ou noutro estabelecimento de ensino.

Foi aqui que esta gente se juntou, e se o espirito do então ministro das Colónias Francisco Vieira Machado, secundado pelo comissário geral da Mocidade Portuguesa Marcelo Caetano, seria juntar numa casa todos os estudantes das colónias para criar uma elite de continuadores da “dilatação da fé e do Império”, conseguiu precisamente ajudar a criar um grupo importante de gente que se afirmou disponível para lutar pela libertação das colónias portuguesas, e que de certa forma foi o fermento de uma estrutura chamada de CONCP (Conferencia das Organizações nacionalistas das colónias portuguesas), que juntou muita gente da CEI engajada nos movimentos de libertação!

Quando se fala da CEI há a convicção que todos os milhares de pessoas que por lá passaram ao longo de 20 anos eram, ou tornaram-se convictos independentistas. Nada de mais enganador.

A maior parte utilizava a CEI porque tinha um posto médico, uma procuradoria que ajudava os estudantes em actos administrativos, fazia muitos bailes, projectava uns filmes com apoio de cineclubes, saraus, desporto, promovia viagens e jogos florais. Era significativo  o numero dos que se dedicaram à causa independentista, mas no geral foram muito mais os que não ligavam a rigorosamente nada e queriam era só estudar, alguns quantos que subiram nas estruturas do regime de então e muito poucos que até deram informações à PIDE sobre actividades da Casa e algumas pessoas foram presas por isso!

Sobre a CEI já muito se disse, e já há muita publicação, mas convém dizer que a gente da CEI, que optou por “dar o salto” foi sempre olhada com muita desconfiança no seio do “maquis” por razões que se percebem. Afinal eram os privilegiados, porque podiam ter estudado, enquanto outros eram os “condenados da terra” de que falava Fanon.

Se esta situação já era complicada nos tempos da luta de libertação, ela tornou-se “silenciosamente visível “nos primeiros anos de independência, onde perante algumas posições de algum oportunismo, o argumento de que “andavas na CEI a divertir-te enquanto outros comeram o pão que o diabo amassou” era quase chamar pequeno-burguês com mentalidade colonialista.

Hoje as coisas já não estão tão extremadas e este quase sinete da CEI já pouca gente utiliza, porque a maioria dos frequentadores da Casa ou já morreram ou já estão com uma provecta idade, e aos filhos não lhes foi transmitida grande parte desta situação que existiu ao longo dos primeiros vinte anos da nossa independência.

Ao dizê-lo hoje, faço-o com a convicção que foi defenestrada gente porque esteve na CEI, porque a opção, oportunista na maior parte dos casos, em determinado contexto era a do operário-camponês na direcção de estruturas políticas e económicas, e depois resultou no que vimos em determinada altura.

Ainda vamos a tempo de dar valor a essa juventude que na CEI sonhou o futuro, e que afinal vai dizendo “não foi isto que se combinou”!

 

Fernando Pereira

26/11/2022

 

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