30 de março de 2012

Do Minho a Timor/ Ágora / Novo Jornal nº219/ Luanda 30/3/2012





"Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador". Diógenes Laércio, o cínico.
Nestes últimos dias de Março de 2012 comemorou-se em Portugal, com alguma descrição diga-se em abono da verdade, os cinquenta anos da maior repressão policial que há memória sobre os estudantes portugueses, e que no léxico da resistência ao fascismo e colonialismo foi apodado de “Crise de 1962”.
O “acto” central foi Lisboa, embora o rastilho tivesse sido Coimbra, onde um conjunto de estudantes universitários na defesa da sua associação tinha sido preso pela PIDE. As razões de solidariedade acabaram por servir de mote à contestação ao regime e a um apelo à democratização, ao fim da guerra colonial e a implantação de um regime de liberdade.
A polícia de choque sem motivo justificado invadiu a cantina universitária, outros espaços da Universidade de Lisboa, e depois de inusitada violência prendeu um conjunto significativo de estudantes, entre os quais Jorge Sampaio, que anos mais tarde foi Presidente da Republica, entre outros que se foram notabilizando na vida política, social, cultural e cívica de Portugal.
A carga foi tão descabelada que o próprio reitor, o professor Marcelo Caetano pediu a demissão depois de exigir a saída da guarda pretoriana de Salazar, das instalações da universidade.
A participação de estudantes angolanos neste movimento foi relativamente insignificante, pois muitos já tinham optado por “dar o salto” para integrar os movimentos de libertação das então colónias, e os poucos que restavam reservavam-se pois desde o 4 de Fevereiro de 1961 eram olhados sempre com particular suspeita pelas autoridades.
Ontem como hoje, há manifestações boas ou más, consoante o ponto de vista, mas há pelo menos uma coisa que julgo que todos temos que estar de acordo e tem a ver com a condenação pela brutalidade excessiva das forças de intervenção, pois inevitavelmente só aumenta a razão dos que protestam.
Evocar os dias de Março de 1962 é também lembrar que 40% da população da então Metrópole era analfabeta, nas colónias era de 92% e o acesso à universidade só era possível aos filhos dos que dispunham de uma situação económica confortável. A realidade é que curiosamente também foram eles a cavar a sepultura de um regime que aparentemente os protegia.
Não sei o que será Timor-Leste depois da saída de Ramos Horta da presidência da Republica, mas pelo menos uma coisa talvez venha a saber: o pior que lhe podia suceder era ficar igual.
Fui durante anos um entusiasta da luta de Timor-Leste contra o regime de Suharto, mas nessa quase militância conheci uns poucos timorenses e a maioria deles muito mal formados. Em Angola tivemos alguns que não souberam aceitar a generosidade do País, que aliás era magnânimo até para alguns movimentos que pouco representavam em certos países.
Um dos exemplos flagrantes da falta de sentido patriótico dos dirigentes da resistência timorense foi uma reunião de vários dias num hotel de Peniche em 1998, já no estertor da presença indonésia no território, onde nem um documento mínimo conseguira apresentar, o que deixava transparecer dificuldades inultrapassáveis numa futura nação.
A demarcação de Ramos Horta e de Xanana Gusmão da Fretilin nunca foi muito bem explicada, e depois de manigâncias várias para a afastarem do poder, são cúmplices num dos maiores embustes da política democrática ao arredá-la da governação, quando foi o partido mais votado em eleições livres, tendo sido formado um governo de alianças espúrias entre partidos menores.
Timor-Leste começou a ser cobiçado pelas riquezas naturais na sua zona económica exclusiva, mas a realidade é que a população continua com os níveis de indigência que tem desde os tempos da presença de Portugal.
A Igreja timorense fortemente implantada nunca explicou o afastamento do Bispo D. Martinho Lopes da Costa, que morreu na miséria em Portugal, e da resignação intempestiva de Ximenes Belo. A Igreja não é uma democracia e não tem nada que explicar, mas também não tem nada que se imiscuir em assuntos de estados laicos. Um País que nasce de joelhos tem que fazer um esforço maior para se pôr de pé.
Talvez Timor-Leste acabe finalmente com trocas e baldrocas politiqueiras em que Ramos Horta e Xanana foram os rostos mais visíveis e se encare o progresso como alternativa coerente e viável ao determinante que o timorense tem que ser eternamente pobre.
Só se pede aos timorenses que não sigam o provérbio português: “Guarda o que não presta, encontrarás o que precisas”.

Fernando Pereira 26/3/2012

23 de março de 2012

Corpo de Delito ou Delitro? / Ágora / Novo Jornal nº218 / Luanda 23-3-2012





Em 1971 o mundo industrializado estava prestes a viver o primeiro choque petrolífero, provocada pela guerra do Kippur. A história nesse momento começaria a ser diferente e o político e jornalista francês Serban-Shreiber (1924-2006), fundador do L’Express em 1953, tão bem explicou no conjunto de artigos que foram coligidos em livro, “O Desafio Mundial” (D. Quixote 1982), e que ocasionalmente releio, para retemperar ideias e conceitos.
Na artificial modorra que Portugal parecia estar,  um grupo de diletantes resolveu pregar ao vetusto e prestigiado jornal “O Século” a maior partida que há memória na imprensa escrita de expressão portuguesa.
A notícia surgira, através de alguém da TAP, pelo que um membro do governo ter-se-á deslocado apressadamente de Coimbra para tentar um contacto com os visitantes, os quais talvez pudessem ser a chave para a flexibilização das condições altamente restritivas em que Portugal então vivia, no tocante a fornecimentos de petróleo. “Fonte muito bem informada” disse ao José Mensurado, recentemente falecido, que iriam estar algumas horas em Lisboa uns árabes próximos do Xeque Yamani, o senhor todo-poderoso da OPEP, para discutirem com Portugal a questão do petróleo contextualizando a então insipiente produção de Cabinda na discussão. Como a reunião era sigilosa os árabes iriam permanecer muito pouco tempo em Lisboa, chegando à Portela num voo da TAP de manhã, almoçariam no “Tavares Rico”, ao tempo o restaurante de topo em Lisboa, e regressariam a Paris no voo da tarde. O Rolls Royce de Jorge Correia de Campos , chega ao Tavares, sempre acompanhado desde o aeroporto de uma discreta segurança de duas motas, e o repórter Roby de Amorim que estava a acompanhar o “furo” pelo “Seculo” chama o José Mensurado, que aparece deixando “os árabes” aparentemente muito aborrecidos porque queriam a maior descrição possível. Os “xeiques” não falavam português e a pouca “lengalenga” era traduzida por um intérprete, que respondia às questões colocadas pelo chefe de redação José Mensurado que não escondia a indisfarçável euforia de ter nas mãos um furo deste calibre. Naquela encenação ainda cabia um “representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal” para dar maior legitimidade ao evento. Almoço aviado, umas fotos de permeio e ei-los a caminho da Portela, onde embarcaram segundo o testemunho do repórter do jornal.
No dia seguinte, a toda a largura da página em letras garrafais, o “Século” noticiava: “Árabes discutem petróleo em Lisboa”, e no subtítulo a referencia ao petróleo de Angola. Nas páginas centrais do jornal, a entrevista, as fotos e um texto encomiástico a tão ilustres personagens foram a cereja no cimo do bolo do que foi até hoje o maior “barrete” da história da imprensa escrita portuguesa.
Os “árabes” eram uns meninos de “china na bota e papá na algibeira” (Ary), que se vestiram a preceito, arranjaram um décor perfeito e conseguiram iludir toda a gente para que o jornal de maior tiragem de então propagandeasse tamanha partida. Gente com pedigree social na Lisboa de então, como o Chefe Michel da Costa, Manecas Mocelek, Jorge Correia de Campos e o nosso conhecido corredor de automóveis em Angola Nicha Cabral entre outros.
Não fora a censura e a história teria tido proporções maiores, mas a realidade é que esta história motivou a gargalhada geral no jornalismo português.
José Mensurado já tinha estado em evidência pelas piores razões, quando moderou a celebérrima mesa “arredondada” em 1965 em direto na RTP sobre a atribuição do prémio a Luuanda de Luandino Vieira pela Sociedade Portuguesa de Autores, que lhe valeu a vandalização das suas instalações seguida de ordem de encerramento. Nessa mesa, José Redinha, Amândio Cesar, Geraldo Bessa Victor e Mensurado, o mais que conseguiram foi tentar calar a voz dissonante de Mário António de Oliveira e fazerem um exercício que apenas serviu para justificar o injustificável assalto por parte de “milícias” enquadradas por legionários pedófilos a uma instituição de cultura.
Esta história sugeriu-me relembrar Brecht e a “Queima dos Livros”:
“Quando o Regime ordenou que queimassem em público
os livros de saber nocivo, e por toda a parte
os bois foram forçados a puxar carroças
carregadas de livros para a fogueira, um poeta
expulso, um dos melhores, ao estudar a lista
dos queimados, descobriu, horrorizado, que os seus
livros tinham sido esquecidos. Correu para a secretária
alado de cólera e escreveu uma carta aos do Poder.
Queimai-me! , escreveu com pena veloz, queimai-me!
Não ma façais isso! Não me deixeis de fora! Não disse eu
sempre a verdade nos meus livros? E agora
tratais-me como um mentiroso!
Ordeno-vos: Queimai-me!”

Fernando Pereira
20/3/2012

15 de março de 2012

No Antanho/Novo Jornal nº215/216/217 / Luanda / Ágora 16/9/2 de Março de 2012



NO ANTANHO!
(Iª PARTE)
Estou pouco para escrever, mais para copiar.
Esta carta de Luanda que por razões de espaço divido em três partes, é acima de tudo uma imagem bem ilustrativa de uma cidade de Luanda onde só parte da sua ambiência e as suas gentes são faladas. Era a vida!
Recordar Loanda Antiga através da pena de Henrique Paço D’Arcos faz-nos sentir como se lá tivessemos vivido nessa época hoje já longínqua em que a saudade e a esperança se misturam e desvanecem como fumo e sombras na bruma do tempo...
Pelo seu valor humano, histórico e literário, transcrevo na íntegra, e obedecendo à ortografia da época, o prefácio escrito por Henrique Paço d’Arcos dedicado ao seu amigo de juventude, colega de muitos anos no Banco de Angola, e distinto historiador luandense Manuel da Costa Lobo, na obra deste “Subsídios Para a História de Luanda” (edição do autor, Lisboa, 1967).


“Querido Manoel
Éramos naquele tempo dois rapazinhos novos que com o escasso intervalo de meses aportámos à velha cidade de São Paulo da Assumpção de Luanda.
A viagem para lá só se fazia então por mar, com escalas no Funchal e em São Tomé, e durava entre 17 e 20 dias.
No porto de Luanda os navios ficavam a uma distância enorme de terra sendo a ligação com esta feita por batelões e pelos gazolinas do Canelas e de mais dois ou três, uns melhores do que outros.
Na cidade, com a chegada do navio, era dia de São Vapor. Homens, mulheres e crianças, brancos, negros, mestiços - os homens com fato de brim e capacete colonial - íam nos gazolinas esperar os recém-vindos. O desembarque fazia-se, ao fim de uns quinze a vinte minutos de travessia, nas “Portas do Mar”.
Foi assim que um dia puzeste pé em São Paulo da Assumpção de Luanda, onde eu te havia precedido de uns meses.
Luanda era então uma pequenina cidade que do Morro da Fortaleza à Mãe Isabel, ao longo de uma praiasinha suja e semeada aqui e além de dongos, se debruçava sobre a baía. Tinha como limites a encosta vazia da Praia do Bispo, as quatro casas do Bairro do Saneamento, a Brito Godins e a Avenida do antigo Cemitério.
À Ilha, em frente, ía-se por uma velha ponte de madeira sobre pilares de cimento, que por baixo dava passagem às canoas de pescadores e aos gazolinas que demandavam em passeio turístico as praias de Belas ou as edénicas ilhas das bandas da Corimba.
As ruas não eram asfaltadas e alumiavam-se à base dos velhos «Petromax», salvo uma ou outra residência ou serviço público com gerador privativo que, como por cordelinhos, ia de extensão em extensão e aos soluços servindo a vizinhança amiga.
A àgua vinha, ainda como hoje, do famoso Bengo, mas não era tratada, sendo preciso decantá-la em pedras de Moçamedes e em filtros de velas para, fervendo-a, a tornar potável, e bem assim usar filtros de pressão nas torneiras e nos chuveiros para aligeirar no banho a sua côr de chocolate.
Em matéria de transportes públicos, havia os dois machimbombos do Crista - um deles mais parecendo feito de tábuas de caixote - com términus na Baixa, no Largo do Bíker, junto ao Clube dos Pés Frios, e, na Alta, em frente à Casa às Riscas. Havia as tipoias dos Barros e meia dúzia de automóveis de aluguer que hoje seríam objectos preciosos de museu e que faziam na praça no Largo D. Fernando. Pertenciam ao Joaquimzinho, aos Macedos, ao Carvalho, ao Sério, ao Tavares, ao Fonseca.
E houve ainda um mágico que resolveu montar um comboio bébé que pela Praia do Bispo ía até à Samba, empreza que foi um insucesso.
Pontos de reunião eram o Biker, o Gêlo, a Bijou, onde pontificava o Gonçalves, a Portugália, com o Faria à sombra da árvore secular, a Rotunda da ponte da Ilha, à tardinha, ou a «árvore» sobranceira à baía, para lá dos então terrenos da Marconi.
NO ANTANHO (IIª PARTE)
Na Ilha, com meia dúzia de casas, havia o Freitas banheiro e a Ermelinda onde se comiam mariscos.
A praia não tinha a estacaria que hoje tem e era frequentada (fracamente) durante a semana a horas mais que matutinas, antes do início das labutas diárias. Aos Domingos e feriados havia maior movimento, fazendo-se a pé a travessia da ponte.
Como outros divertimentos tinhamos o Cine-Parque - ainda não havia sequer o Nacional - onde tocava piano, nos intervalos, o maestro e escrivão Leão de Almeida; as comidas e bebidas no Canelas e na Casa Branca; as rebitas nas Ingombotas e os batuques nos Muceques; as caçadas a que quasi sempre me esquivei; as partidas de ténis nos Coqueiros; e - supra-sumo do chiquismo - os bailes no Naval. Tambem aos Domingos, uma vez por outra, os leilões do Mónis ou aqueles almoços no Cacuaco ou alhures, como incipiente e exclusiva actividade do nóvel e parodiante Club dos Rotários, cujos Estatutos, elaborados pelo Fiúza, consistia de um Artigo Único - «Chatices, não» - frase lapidante que concisamente expressava a filosofia dos rotariantes.
Éramos ao todo, então, uma vintena: os Pombais, Pais, filhas e filhos, morando naquela casa antiga que, na Cidade Alta, era ponto de reunião; o Zé Correia de Barros (o Pai dele e teu Tio era então o Director do Banco; o António Oliveira Monteiro, cheio de espírito e louco por correrias de automóveis; o Pai Ricciardi, que em breve regressaria a Lisboa, bafejado pela Sorte Grande que enlouqueceu Luanda; o Figueiredo; o Lipari (has visto a Figueiredo?); o Luis Câmara Leme; o Isidoro Martins dos Santos; o António Fiúza; os Estarrejas; os Brandões de Melo; o Gaspar Cunha Lima (este um pouco mais tarde); tu; e nós os dois P. A., Manoel e Henrique.
Raparigas, além das Pombais e da Eugénia Brandão de Melo, eram as Patos (o Calçado Espanhol, lembras-te?); as Soares de Campos (os olhos verdes da Lili); a Edith; as Leites (por afinidade); e, mais tarde, aquela que encheu de luz a tua vida, Maria Amélia, minha linda comadre.
Figuras gradas ou pelo menos características da Luanda desse tempo, eram os já falados Faria da Portugália e Gonçalves da Bijou, o Trinta e Um, mais tarde substituido na sua baiúca pelo Graça da Havaneza (depois Lusitânia); o Videira, com o seu monóculo e a sua verve; o Gil, com a Dona Chica, a cadela bull-dog para a qual guardava um prato ao almoço no Hotel Paris; o Simões Raposo, escondido com o seu valor e a sua asma; o Alberto Correia, de impecável fato branco e as longas barbas; o velho Dr. Cunha, a eminência parda, de barba em riste e sotaina; os médicos Cruz, Antunes e Ornelas e, mais tarde,o Levy e o Silveira Ramos; o nosso bom Sampaio e o seu irmão João (o frei João sem cuidados); o Avelino, o Costinha; o Chico Simões; o Assoreira; os irmãos Leite, um dos quais o Henrique, tinha com o Granaxo e o Alberto Teles a casa de modas elegantes desse tempo, que era o Matos & Teles, ali no Largo D. Fernando, ao lado do Correio; a familia Lé-lé da Farmácia; o Fernando Tavares; o Capitão Barros; a familia Brandão de Melo; o Noronha e a D. Ema, o Nolasco e a D. Fábia; o Alfaro; o Boaventura; o Azevedo da Vacuum e a sua Aninhas; o Guilherme Leitão e o primo Aníbal Gonçalves; o Berman e a Opperman, depois Mrs. Berman; o Virgilio Monteiro e a sua bengala; o Brito Pires, velhíssimo; o Major Amaro; o Amaral Fernandes e a D. Henriqueta; os Mexias; o Ricardo Pires; o casal Esquível da CAOP; o Hollis com os seus colarinhos; o velho Constantino Reis, em cuja casa alugada, tivémos a nossa primeira república; o Reis barbeiro, antecessor do Neves, em relação a nós; o Palege, enfermeiro; o Semeão Victória e a Mulher; o casal Lopes Alves, com o Nuno ainda infante; o Sousa Machado com a sua eterna luta; o velho Cochat; enfim, uma longa fileira de sombras.
NO ANTANHO (IIIª PARTE)
E entre elas, avultando, a nobre figura do meu Pai que, quando os Pais Correia de Barros saíram de Luanda, vos albergou a ti e ao Zé, na casa do Balão, onde nós vivíamos com ele, paredes meias - lembras-te? - com a simpatia do casal Pessa.
Com a vinda do meu Pai para a Europa, mudámo-nos para a tal casa do Constantino Reis - ali à Mutamba - e passámos depois para uma segunda república, no fim da então Avenida Neves Ferreira, hoje Avenida Serpa Pinto, frente à Estação da Cidade Alta (que há muito não existe). Vinhamos os dois então para o Banco por um caminho de pé posto, deserto de casas, a desembocar no fundo da Avenida do Hospital, à esquina das Obras Públicas.
A vida começava cedo. À 1 hora, acertavam-se os relógios pelo tiro da Fortaleza que dessa forma assinalava tambem a chegada do paquete da Metrópole com a mala ansiosamente esperada.
Bebia-se a rodos cerveja alemã - não havia entrado ainda em moda o Whisky ou as nossas algibeiras não davam para tanto. Os fósforos eram de graça. Tudo o mais se jogava. Jogava-se aos dados as bebidas e os almoços e quando já não havia que «endossar», jogavam-se fatos, gramofones, «raquettes» de tennis, e o Videira (ao que dizem) jogou uma vez o automóvel (não aquele com paisagens de caça pintadas no verde da carrosserie).
A imprensa era representada pela Provincia de Angola, depois passada a diário, pelo Comércio de Angola e pela folhinha de couve do Doutor Seabra (faz hoje anos que a nossa excelsa esposa...), seguidos tempos volvidos pelo Diário de Luanda e pelo Apostolado.
No jornalismo e na slides literárias surgiram os nomes do Adolfo Pina, do Albuquerque Cardozo, do Manoel de Rezende, do Júlio de Castro Lopo, do Melo (Jeremias Pacato), do Salinas de Moura, do próprio Videira, do Correia de Freitas, do Maximino Conde e, «the last but not the least», do inspirado Tomás Vieira da Cruz, passeando a sua Saudade Negra e a rompante cabeleira como uma flama de revolta contra a monotonia do oficio a que a profissão o escravizara. Nas artes davam os primeiros passos o Neves e Sousa e o Roberto Silva.
Livros - ainda não aparecêra a Lello - vendiam-se na Havaneza, na Minerva do Ramiro e no «Printemps», anexo do Matos & Teles, once creio ter feito uma das minhas primeiras aquisições em Luanda: as «Claridades Siderais» de Octávio Augusto (tu saberás completar o nome do autor). Compravam-se discos de gramofone no Centro Comercial e no Matos & Teles.
Não havia aparelhos de rádio (fomos nós dos primeiros a tê-lo, lembras-te? Uma espécie de barulhento receptor de bordo que um dos nossos companheiros manobrava, armado em Arturinho sem-filista); não havia frigoríficos; não havia ar-condicionado. Havia calor em barda e frio (!) no cacimbo.
Foi nesta paisagem tranquila que brotou para sempre a nossa amisade.
Durante anos, trabalhámos lado a lado no Banco, o já hoje velho Banco de Angola, no seu antigo edifício à Avenida Salvador Correia, que era então a Avenida dos Coqueiros (one estão eles, esses coqueiros, em fila, as altas copas ondulando?).
Ali vivemos intensamente a nossa vida de bancáriose, com elas, as altas e baixas marés da economia da Província.
Estou a ver-te mostrando-me na mão o telegrama de Lisboa, acabado de decifrar, mandando que se limitassem as transferências às coberturas à vista, prenúncio do grande calvário que foi por tanto tempo, como agora voltou a sê-lo, o problema cambial de Angola.
Os anos rolaram sobre os anos. Angola foi vencendo uma a uma as sucessivas crises, a quebra vertical das cotações, a praga dos gafanhotos, a guerra e os «navicerts», a euforia das altas cotações, como os alcatruzes, tudo isto entremeado de acidentes da política local mais ou menos graves, de que no vinte de Março chegaram a atingir foros de tragédia, e, por fim, o golpe profundissimo de 61 que nós, velhos peoneiros, ainda sentimos na alma.
Os anos rolaram sobre os anos. Luanda é hoje uma cidade maravilhosa, a querer rivalizar, da banda de cá do fosso atlântico, com a outra da canção brasileira. Angola, através das suas altas e baixas marés, é uma confirmação espantosa de vitalidade, num mundo em perdição.
Vai longa e fastidiosa esta carta. Relendo-a, acho-a sem encanto. Porque insisto pois em enviá-la?
Por que mesmo sem encanto, sem estilo, sem valor literário algum, haverá porventura nela um sabor agri-doce, que é o sal da saudade.
A culpa é tua. Amante de Angola e das suas velharias, criaste com os teus opúsculos, agora a reunir em livro, o pano de fundo onde aquelas sombras todas do nosso passado comum se veem mover contracenando com todas as outras que o teu poder de evocação foi arrancar ao limbo das velhas memórias de Angola.
Cenário de milagre este em que se dão as mãos, numa roda infindável, os grandes e os humildes, os mortos e os vivos, a saudade e a esperança.
Tu que tens filhos nascidos em Angola, eu que tenho filhos nascidos em Angola, damos a mão à esperança”.
Lisboa, Dezembro de 1966
Henrique Paço d’Arcos”

8 de março de 2012

O mando e o dogma/ O Interior /8 de Março 2012




“É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias, acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que quer e há-de ser” (Alexandre Herculano, na Carta aos Eleitores do Concelho de Sintra, de 1858).
O poder é um calvário. E é simultaneamente uma sedução. Tanto para aqueles que lhe imaginam as delícias, como para os que já lhe sofreram os espinhos.
Existe pois no bicho-homem seja o que for que o leva a pagar sem regateio o que o poder exige de quem o serve. Mesmo nos momentos em que a fé e as energias se esgotaram, mesmo quando o jugo das responsabilidades e o cárcere das aparências se tornam insuportáveis e tudo em nós grita por libertação, mesmo quando outro já espera nas antecâmaras da cobiça a oportunidade de nos render. Nem assim o homem do “poder” , que lhe bebeu a cicuta (Esta é muito óbvia)e lhe sofreu a tirania , acredita que chegou a hora do regresso a um viver normal. Ele apesar da consciência dividida , ainda está pronto a imolar-se para além dos fisiológicos limites da resistência física e moral.
Porque somos uma região de emigrantes e paradoxalmente têm IMI-grandes, vamo-nos entretendo com um onanismo de Bacalhau, vulgo salada de Bacalhau, que desde o Zambito à Maunça pouco mais há para discutir! Como estou entretido e lambuzado com bacalhau fininho, cebola, alho, colorau e azeite fico-me enchendo o texto com palavras de outros, para dizer o que se me vai ocorrendo no pensar!
“Era uma vez um surdo completamente surdo, um paralítico completamente paralítico e um calvo completamente calvo. Viviam juntos e de tanto se aborrecerem decidiram partir. A fim de alcançarem o ponto mais distante do mundo puseram-se a caminho a pé, ou seja: o paralítico ia deitado numa maca, porque era tão completamente paralítico que nem sequer se podia sentar, e o calvo e o surdo transportavam a maca. O surdo ia à frente.
A certa altura da viagem foi preciso atravessar uma floresta. Quanto mais os três homens penetravam nela mais o mato era denso e a folhagem cerrada: Por causa disso e do anoitecer, escurecia.
Iam a meio de uma clareira quando o surdo disse: «Poisa a maca.»E deixou de andar, o que obrigou o calvo a parar também. O calvo e o surdo puseram a maca no chão.
E o surdo disse assim: «Esta floresta está cheia de assassinos e malandros. Há já um bom bocado que oiço o restolhado deles.» O calvo respondeu: «Estou em crer nisso, porque sinto que os cabelos se me estão a pôr em pé.» Então o calvo e o surdo desataram a correr, seguindo o trilho que tinham aberto no mato.
O paralítico ficou sozinho na clareira. E ele pensou: «Não gosto de estar nesta floresta. Parece-me que vou mas é fugir daqui.»
“Directa” de Nuno Bragança
Fernando Pereira
6/3/2012
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