29 de janeiro de 2016

Diferença entre o Sino e o Signo!/ Novo Jornal / Luanda 29-1-2016





Mais um tema sobre o futebol, dos sorrisos da vitória e da “estúpida vontade de chorar das tardes de derrota", como disse um dia um homem que foi guarda-redes num clube de Argel e se chamou Albert Camus.
Não vou falar da seleção nacional de futebol que continua no continente a manter os seus níveis de incumprimento num quadro que se alastra há tempo demais, e quando se pretendem encontrar culpados mete-se algo escatológico na mão e abre-se a ventoinha espalhando-se tudo para cima dos mais expostos: Selecionador e jogadores!
O problema é mesmo um e difícil de ser agarrado: falta de politica desportiva, e inerentemente criar uma estrutura de responsabilidade partilhada por muitos agentes, de hábitos consolidados, que quando as coisas acontecem de mau, assobiam para o ar, quando das poucas vezes correm bem, eis que aparecem logo na primeira fila e a assumirem um protagonismo risível.
Isto traz-me à lembrança um filme dos anos ontem, o “Trevo de Quatro Folhas” que reproduz num ambiente jocoso a derrota da seleção portuguesa em Madrid em 1934 por 9-0!
Uma das muitas histórias que se conta que, no dia seguinte ao encontro, um jogador português, ao ser interpelado pelo criado do hotel castelhano com o habitual “Desayno?”, respondeu: “Desayuno, não. Nove a Zero!”
Barrigana foi um dos grandes guarda-redes portugueses, e durante muitos anos foi o baluarte das balizas do Futebol Clube do Porto nos anos 50 do século passado. Era corticeiro de profissão, e quando chegou ao Porto não sabia ler nem escrever, situação normal no quotidiano da maioria dos jogadores de futebol ao tempo! Como tinha que dar autógrafos resolveu fazer uma assinatura numa chancela e carimbava todos os papéis que lhe eram estendidos. As crianças nos treinos ovacionavam-no gritando “Barrigana, Barrigana” e ele chegava ao pé deles e dizia: “Barrigana não, Senhor Barrigana”
A propósito, que a crónica é uma conversa e as “conversas são como as cerejas”, lembrei-me que se contava que Sammy Davis no princípio da sua carreira e no final dos seus espetáculos, com uma multidão de admiradores lá fora, manifestou a Sinatra, que o apadrinhava, a sua grande apreensão em relação aos autógrafos. Não sabia escrever. Sinatra disse-lhe o que só um Sinatra poderia dizer: «Não faz mal! Faz uns gatafunhos! Chega…».
Barrigana foi contemporâneo do angolano Miguel Arcanjo, que alguns anos depois de acabar o futebol resolveu estudar e foi colega do filho no curso de direito na Universidade de Coimbra, tendo-se licenciado os dois no mesmo dia.
Num estágio da seleção de Portugal nessa altura e num estágio antes de um Portugal-Áustria, em plena concentração em Braga surgiu um tema aliciante: O problema da existência de Deus.
O debate foi animado, visto que havia uma clara divergência de opiniões.
Até que o Barrigana foi perentório na sua afirmação: Acreditava na existência de Deus e podia prova-lo! Claro que a assembleia “exigiu” imediatamente essa justificação.
“Quando se aproximava da minha baliza um avançado contrário isolado-explicou o guardião nortenho- faço rapidamente uma prece mental e o certo é que acabo por defender”
“Nesse caso - retorquiu-lhe um dos seus companheiros de equipa – tu nunca sofrias um golo…”
A resposta do homem a quem durante muito tempo foram confiadas as balizas da seleção portuguesa de futebol foi rápida e decisiva: “ Eu sou o melhor guarda-redes português. Há bolas que tenho obrigação de defender, mesmo sem recorrer a Deus!”.
Barrigana foi para Angola no dealbar dos anos setenta treinar a equipa dos “Dinizes de Salazar”, que era uma equipa financiada pelo maior capitalista da região, Santos Diniz. Os treinos eram à porta aberta no bar do clube, no Hotel Paixão, na Pensão Chique e acima de tudo no Bar Oásis, onde a hidratação à base de cerveja era continuada, o que levou o Barrigana a estar pouco tempo em Salazar (N’Dalatando). Recordo-me dele se queixar que tinham que fazer uma viagem ao Moxico, ao Lubango, a Porto Alexandre (Tombwa) e demorarem dois dias num autocarro sem a modernice do “ar condicionado” , o que obrigava os jogadores a “acompanhar” o treinador e dirigentes em exercícios de rehidratação continuada em sumo de cevada e lúpulo fermentado!
Os” Dinizes” que andaram uns anos na divisão maior do futebol angolano tinham sob orientação de Barrigana uma equipa onde pontificavam Carlos Alberto, Azevedo, Chipau, Nélson, Lóló, Cardeal, Pirolito, Sá Pereira, Rudolfo, Beto Truka, Jorge, Rómulo, Arlindo Soares, Dudu, Mendonças(2), Oliveira Duarte, Napoleão ,Rosas, Caipira, Bira, Noé e Carmona.
Uma passagem atribulada e curta do Sr. Barrigana por terras de África, pois os resultados desportivos estavam na proporção aritmética da proporção geométrica da cerveja consumida!
Engraçado mesmo, é que o título nada tem a ver com a crónica!

Fernando Pereira
26/1/2016

22 de janeiro de 2016

Futebol por causa!/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda 22-1-2006



Futebol por causa!
Vou retomar o tema do futebol no contexto colonial, recuperando o tema do recente artigo que fiz para este jornal com o título “Desporto por linhas entortadas”!
“Football is not a matter of life and death; it’s much more importante than that” (O futebol não é uma questão de vida ou de morte; é muito mais importante do que isso), referiu a propósito do futebol, Bill Spankly, um dos mais importantes treinadores do futebol mundial, que esteve à frente do Liverpool de 1959 a 1974.
O futebol desempenha um papel preponderante na transmissão cultural intergeracional. Com os anos, o futebol, tanto a sua prática como o seu consumo enquanto espetáculo, tornou-se um elemento fundamental da relação entre pais e seus filhos no quotidiano de vida.O futebol atenua algumas das ruturas que a vida do dia-a-dia provoca no seio das famílias!
Em 1953, o Goal fez uma outra reportagem sobre o futebol dos subúrbios, desta vez a propósito de uma competição organizada pelo próprio jornal:” Dois terços da cidade vivem para além da cidade formada pela Brito Godins (hoje conhecida no anedotário luandense pela Brito Lenine), Emílio de Carvalho (Hospital Militar) e a estrada denominada da Circunvalação. Do Mota ao Sambizanga, do Pedrosa ao Cayate, da Pepita às proximidades do Braga, todos aqueles musseques fervilham de vida, numa amálgama impressionante de gentes de diversa condição rácica, económica e social. Mais de 100 mil indígenas coabitam com alguns milhares de brancos e mestiços (…) Aos sábados e aos domingos toda aquela vasta zona populacional se anima. São os bailes e as reuniões, os batuques e os “risca-risca”, vibrantes harmonias e ritmos, produzindo ruídos que mordem singularmente o silêncio da noite”
Nos campos da Boavista e da ESMIPA (propriedade da Missão de S. Paulo, onde os padres asseguravam a organização e a segurança) havia pouco mais do que as balizas. Salientava a reportagem a utilidade do desporto com um velho argumentário:” Os rapazes precisam de quem os oriente (…) assim não vão para a taberna”.
O regulamento do torneio determinava duas condições fundamentais para a participação. Por um lado só podiam concorrer clubes não filiados na Associação de Futebol de Luanda (AFL). Procurava-se com esta medida convocar um conjunto de clubes que se encontravam afastados da organização oficial do futebol local e das suas competições, revelando uma intenção inclusiva. Noutro sentido, o regulamento excluía os jogadores que não possuíssem o estatuto de “assimilados”, o que significava que os “indígenas” ficavam de fora.
Nesse mesmo ano de 1953 o Presidente da AFL sugeriu a necessidade de ser criada uma segunda divisão do campeonato local que “serviria para regular a vida dos inúmeros clubes existentes na área urbana da cidade”. O torneio iniciado em Julho foi um teste, em que se colocaram os clubes de “assimilados” na segunda divisão. O campeonato decorreu no campo do Ferrovia e participaram o Bungo, o Malhoas, o Vasco da Gama, o OK Clube, o Canaxixe, o Vila Clotilde, o Ocidental e o ASA. Integrados os “assimilados” na vida colonial, os clubes formados por “indígenas” continuaram a organizar o seu campeonato, no campo da Boavista.
No projeto colonial, o desporto não desempenhava um papel decisivo. A Liga de Football de Luanda nasceu em 1914 (a AFL em 1929). O Conselho Provincial de Educação Física surgiu em 1956. O Sporting de Luanda surge em 1920 e o Sport Luanda e Benfica em 1922, clubes marcadamente elitistas. Acompanhando o ritmo de crescimento da população colona, as delegações do Benfica e do Sporting espalharam-se por todo o território, sendo os únicos focos de associativismo colono em algumas localidades. A popularidade destes clubes alargou-se e passou a haver disputas clubísticas no informal jogo de rua, em que as equipas escolhiam os nomes desses clubes para se defrontarem.
As grandes empresas viram no futebol uma forma excelente de poderem dar aos trabalhadores uma forma organizada de gestão do seu pouco tempo livre, e por exemplo a Diamang fazia campeonatos internos entre os trabalhadores das suas minas. A organização desportiva criada dentro da própria empresa, tanto na sua vertente de oferta de lazer, sem objetivos competitivos, como enquanto base de constituição de clubes desportivos a competir em provas oficiais, reproduziu formas prevalecentes de descriminação e desigualdades sociais.
Como a própria hierarquia das empresas revelava uma estrutura social que reforçava as lógicas de desigualdade económica, étnica, religiosa e de género, a oferta de desporto era feita discriminatoriamente.
Este tema suscita-me particular curiosidade, e penso que não se esgotará num conjunto de crónicas que tenho feito sobre o desporto no período colonial. Faz parte de um projeto que tive em mente desenvolver quando fui o 1º diretor do Centro Nacional de Documentação e Informação da ex- Secretaria de Estado de Educação Física e Desportos, mas que por razões do foro pessoal me foi impossível levar a bom termo, apesar do entusiasmo de todos no Organismo e do apoio nunca regateado.
Voltarei, e quero desde já agradecer a contribuição do Professor Dr. Nuno Domingos, através do seu trabalho, “O desporto e o Império Português”, sem o qual estaria limitado na organização, de um conjunto de dados que pudessem dar corpo a estas crónicas!

Fernando Pereira
13/1/2015

15 de janeiro de 2016

A geração entupida! / Ágora / Novo Jornal/ 16-1-2016/ Luanda


A geração entupida!
Um dos livros relevantes da literatura angolana é “A Geração da Utopia” de Pepetela, o autor traz para a escrita os anos de sonhos, utopias, poucas dúvidas, excesso de certezas num futuro a construir num quadro de igualdade e solidariedade.
Na sociedade angolana assistimos, há já a alguns anos a esta parte, ao desmoronar de um sonho coletivo assente na solidariedade, na democracia, na liberdade, e todo um conjunto de valores, que levaram a geração dos entas a lutar pela construção de um país e concomitantemente aquele “homem novo” que pertencia a um tempo que havia de vir sem ser futuro.
Habituei-me a olhar para um grupo alargado de pessoas, a grande maioria mais velha que eu, de uma forma quase reverencial do ponto de vista ideológico, alicerçado naturalmente no seu percurso de luta e resistência contra o colonialismo e o fascismo. Vi nessa gente a alegria de construir, a vontade de criar, a persistência no aprender e de facto o MPLA ganhou o respeito, a credibilidade e a adesão de muita gente, um pouco por todos esses exemplos transmitidos.
Para nós, e para esses mais velhos era completamente despiciendo que houvesse desorganização, purgas, fome, tribalismo e racismo na luta armada, como nos confidenciavam os que por lá passaram nas conversas que tínhamos num tempo em que nos juntávamos, e também quando militantemente nos ajuntavam!
Que importavam as dificuldades do quotidiano da novel RPA se o que interessava era construir e “o mais importante era resolver os problemas do povo”! E víamos as pessoas entusiasmadas a fazer, mobilizadas no querer e no meio de tanto voluntarismo, asneiras, imponderáveis ideológicos, as pessoas confiavam que o futuro estaria a passar por ali.
Afirmámos tanta coisa, irritámo-nos com todos os que nos diziam que nunca poderia ser assim nem mais assim, fazíamos juras às convicções mais pueris e gritávamos a plenos pulmões: “Ao inimigo nem um palmo da nossa terra”! Um tempo em que sabíamos que a diferença entre ser membro do governo ou do CC era o azul ou o branco do carro distribuído, e a maior indignação era ter que ver o “Bem-amado” segunda vez porque um qualquer mwata não tinha visto o episódio todo.
Era um tempo em que nos indignávamos pela gravidade de situações que hoje se revelam cândidas e banais no quotidiano da nossa sociedade!
Estávamos com a confiança em pleno e havia inimigos comuns e alguns que ao tempo nos pareciam amigos, deviam ter estado bem disfarçados, para trinta anos depois serem exatamente o que são.
A verdade é que os da minha geração e anteriores se deparam hoje com um dilema terrível, que é não conseguirmos assumir a plenitude do nosso fracasso. Os anglo-saxónicos têm uma frase que sintetiza tudo: Permanecemos com os esqueletos nos armários! A minha geração muito pouco, mas a geração anterior foi quem montou um esquema mental e tentou criar uma carapaça que defendesse a luta por um coletivo que pudesse ser digno de merecer “o seu bocado de pão”!
Essa geração está num perfeito estado de quase “catatonismo” porque não consegue discernir se defende o status-quo prevalecente no País, se aceita passivamente tudo!
Nós, angolanos destas gerações temos um problema grave entre mãos: Ou damos o flanco e vamos dizer aos que durante quarenta anos ou mais, que no essencial tinham razão e que quem estava errado éramos nós, ou perpetuamo-nos nalgumas mentiras agitando as bandeiras descoloradas de uma sociedade em que cada vez nos revemos menos.
Há sempre uma fuga, e isso é patente nas redes sociais, e tem a ver com a dificuldade que com o avançar da idade cada vez temos mais dificuldade de despir uma camisa, que está ideologicamente enrodilhada e com as convicções cheias de buracos.
Do marxismo que tentámos implementar resta muito pouco, e por vezes o que sobra é muito mal utilizado. A partir de determinada altura largou-se Karl Marx para se adequar a sociedade ao Groucho Marx: ”Estes são os meus princípios. Se você não gosta deles, eu tenho outros”.
Olho com um certo esgar os que acham que somos idiotas em defender algumas ideias que dizem ser passadistas, mas na realidade o que assistimos é que o conformismo assaltou muita gente que julgávamos ter convicções inabaláveis. Ortega Y Gasset em pleno na sociedade angolana de hoje com a estafada frase que “a vida somos nós e as circunstancias”?
Agitam os números de participantes em comícios, percentagens eleitorais de grande dimensão, publicitam os encómios dos que perpetuam os mercados dos favores e dos tráficos de toda a ordem e desordem, mas ainda não consegui esquecer que um autocarro completamente lotado ao entrar em contramão numa autoestrada não tem razão nenhuma quando colide com carro de pequena cilindrada com um só ocupante que vinha na via certa. Muitos continuam a usar as palavras de ordem de um passado perdido para justificar o que não é fácil perante as evidências quotidianas.
Hoje tornámo-nos na geração entupida porque nos recusamos a fechar o ciclo virtuoso das nossas convicções para ao invés entrarmos no niilismo que é o ciclo vicioso da Angola atual.

Fernando Pereira
10/1/2015


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